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domingo, 9 de novembro de 2025

O acaso a meu favor - Página 69

Por Verônica…

A tarde e a noite se arrastaram entre planilhas, atendimentos e reuniões que eu mal consegui registrar.
O relógio parecia zombar de mim, girando em círculos lentos, enquanto minha cabeça teimava em voltar sempre para o mesmo ponto: Clara.

A conversa que tivemos — o jeito como ela falou de amor, de perda, de acaso — ficou reverberando dentro de mim como uma música que não se cala.

E o pior: me peguei sorrindo sozinha mais de uma vez, lembrando das caretas que ela fazia tentando entender os gráficos.
Que droga. Eu, sorrindo feito uma idiota por causa de alguém que trabalha pra mim.

Respiro fundo, tentando me concentrar no relatório à frente.
Olho pela grande janela de vidro fumê que dá visão total ao mercado, e observo o movimento apressado dos funcionários, todos tentando encerrar o dia o mais rápido possível.

Já estávamos na reta final do expediente, todos exaustos, mas ainda empenhados em dar o melhor de si para o dia seguinte começar sem tantos ajustes.

Vejo Clara, juntamente com os rapazes, carregando caixas e sacos de lixo para o descarte. E, mais uma vez, deixo escapar uma risada nasal — essa menina parece ter uma energia que desafia o próprio cansaço.

Passo pelo açougue para conferir o fechamento.

— Bruno, tudo bem por aqui? — pergunto, mais por hábito do que por desconfiança.

— Tudo sob controle, dona Verônica. — responde ele, confiante.

Aceno, satisfeita, e continuo o trajeto, passando por cada corredor, checando prateleiras, iluminação e limpeza. Parte da rotina, mas também uma forma de organizar meus pensamentos — ou tentar.

Por ser o primeiro dia do açougue aberto, redobro o cuidado. Amanhã, Bruno já começa o turno no horário fixo, e espero que se mantenha nesse ritmo.

Enquanto caminho pelos corredores, avisto o motivo dos meus conflitos.
Clara.

Ela estava no caixa, concentrada, ajudando as meninas com o fechamento do sistema. A expressão séria, a postura focada — e mesmo assim, aquele sorriso leve de quem gosta do que faz.

Chego perto, e nenhuma das duas nota minha presença de imediato.

— Tudo certo aí, meninas? — pergunto num tom leve.

Clara levanta o rosto e sorri. — Tudo sim, Verônica.

— Ótimo. Assim conseguimos ir pra casa o mais rápido possível, não é? — brinco, e ambas riem, cansadas, mas contentes.

Os rapazes começam a apagar as luzes, e logo só resta o brilho dos caixas. Clara termina de conferir tudo e me entrega os dois envelopes com os fechamentos do dia — organizados, como sempre.

As meninas se despedem e vão embora.
Só nós duas ficamos.

Clara tem o hábito de me esperar do lado de fora, até eu trancar o portão e entrar no carro. Sempre ofereço carona, e quase sempre ela recusa, dizendo que gosta de andar um pouco. “Pra pensar na vida”, ela costuma dizer.

Guardo os envelopes, desligo computadores, ar-condicionado e luzes. Estou prestes a sair quando ouço vozes altas vindo da rua — um grupo de jovens, rindo alto, claramente embriagados.

Mas o que me fez congelar não foi o barulho.
Foi ouvir a voz dela.

Clara.
E entre as risadas, uma outra voz, feminina, firme, carregada de familiaridade.

Essa tal, Elise.

Meu corpo inteiro reagiu antes que minha mente entendesse.
Um calor subiu até o rosto, e o ar pareceu rarear.

Deixo a bolsa sobre o balcão e caminho até a porta, os passos acelerados, o coração descompassado.
E, lá fora, a cena que se desenhava já era o suficiente para me fazer perder a razão.

Clara estava do lado de fora, parada na calçada com o uniforme ainda amassado do expediente.
A rua estava parcialmente iluminada pelos postes, e o grupo que a cercava parecia ter acabado de sair de algum bar próximo. Risadas, vozes arrastadas, gestos amplos.
Mas o meu olhar encontrou só uma pessoa.

Casaco de couro, sorriso atrevido, o tipo de presença que enche o espaço como um perfume forte.
E ali, ela falava com Clara de um jeito que me fez querer atravessar o vidro e colocá-la dentro do carro à força.

— Mas está tarde… — ouvi Clara dizer, num tom leve, quase risonho.

E então Elise respondeu, com aquela insolência natural que só quem conhece os limites gosta de testá-los:

— Eu te levo em casa. Toma um banho, se arruma, e a gente se diverte um pouco…

Foi o suficiente.
O sangue ferveu.
Nem pensei. Só fui.

Empurrei a porta e atravessei o pequeno espaço entre o mercado e a calçada com passos firmes demais para quem fingia calma.
O ar noturno bateu no meu rosto, mas não serviu pra esfriar nada.

Clara me olhou surpresa, o grupo se calou por um instante — aquele tipo de silêncio que antecede um desconforto.

— Clara — disse, seca. — Está pronta? Te deixo em casa.
Não foi um convite. Foi uma sentença.

Ela piscou algumas vezes, confusa, e depois assentiu devagar, num gesto quase tímido.

Ao ouvir a confirmação que eu precisava, abri a porta. Mas parece que a tal Elise não gostou do meu tom. Ao olhar para Clara, e já à ver indo em direção ao meu carro, ela solta: 

— Você só vai se quiser, Clara! — disse, a voz alterada, e a mão dela, firme demais, segurava o pulso de Clara como se a possuísse.

Foi automático. Senti o sangue ferver. Em um segundo, já estava diante das duas, tirando Clara daquele toque que me incomodava como fogo na pele.

— Como é que é? — soltei, num tom baixo, mas cortante, me colocando entre elas.

Não era ciúme. Pelo menos, não queria que fosse. Era instinto. Proteção. Aquela mulher estava alterada, bêbada, talvez drogada, e o grupo ao redor — uns quatro rapazes — riam, debochados, todos visivelmente embriagados.
Eu jamais deixaria Clara ficar ali. Nem por vontade dela.

— Você acha mesmo que está em condições de colocá-la em perigo, do jeito que está? — disparei, já tão próxima que podia sentir o álcool evaporando da respiração dela.

— Quem vai dizer isso não é você! — respondeu, arrogante, tentando me medir com o olhar.

Aquilo me tirou do eixo. Me aproximei mais um passo, tão perto que bastava um movimento em falso para aquilo virar outra coisa. Mas antes que eu dissesse algo, Clara entrou no meio.

— Vê, por favor… — pediu ela, com a mão no meu abdômen, me afastando suavemente. — Vamos sair daqui. Depois eu resolvo com ela.

Tentei respirar, mas o toque dela — quente, firme — não ajudava.
Depois ela resolve com ela?

Essas palavras me atravessaram. O “depois” me corroeu mais do que a cena toda.

Olhei pra Clara como se ela tivesse acabado de me trair só por dizer aquilo.
Ela percebeu. E talvez tenha entendido. Porque o que fez em seguida me desmontou: segurou minha cintura, forte, e me empurrou dali, como quem quer conter uma fera antes que ela faça besteira.

O toque dela. O cheiro. O calor.
Tudo em mim se bagunçou.
Saí em direção ao carro, mas nem percebi o quanto estava tensa até ouvir a voz da outra me chamar de volta.

— Espera! — gritou Elise, com o dedo apontado em nossa direção. — Vocês… estão juntas?

Clara travou. Eu vi.
E por um instante, ela não soube o que responder.
Talvez nem houvesse resposta possível.
Mas eu, cansada daquele jogo, cansada de ver os outros ditando o que eu devia sentir, respondi antes dela:

— Exatamente. — disse, firme, abrindo a porta do carro.

— Vamos, Clara. — repeti, sem paciência.
Ela hesitou, e eu só precisei de um olhar para fazê-la entrar.

Bati a porta com força, o som seco ecoou na tua quase vazia.

Do lado de fora, risadas; do lado de dentro, o silêncio pesado de tudo o que não dissemos.

Apertei o volante, tentando disfarçar a respiração acelerada.

E no reflexo do vidro, vi Clara olhando pra mim — o susto e o desespero misturados no mesmo olhar.
Por um segundo, pensei em falar algo. Mas não.
Porque se eu falasse… eu não conseguiria parar.

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segunda-feira, 13 de outubro de 2025

O acaso a meu favor - Página 68

Por Verônica…

As palavras de Clara ainda ecoavam na minha cabeça.

“O que realmente dá valor a um sentimento, é o acaso.”

Ela disse isso rindo, mas havia algo por trás do riso — uma melancolia calma, madura, quase poética. E aquilo me atravessou de um jeito que não sei explicar.

Fiquei em silêncio, observando-a, e tive vontade de dizer alguma coisa… qualquer coisa que preenchesse o espaço entre nós.
Mas não consegui.

Era raro ver alguém falar de dor com tanta serenidade.
Clara não se vitimizava, não fazia drama — ela apenas deixava a ferida respirar.

E eu, que sempre me orgulhei de ser controlada, fria, prática… percebi que estava completamente desarmada diante daquela mulher.

Os olhos dela, ainda úmidos de lembrança, tinham uma luz que não combinava com a tristeza das palavras.

Era uma luz viva. Quente.

A mesma que me desconcertava todos os dias, mesmo quando ela só passava por mim com aquele sorriso rápido, quase distraído.

— Você fala do acaso como se ele fosse um presente. — murmurei, mais pra mim do que pra ela.

Clara me olhou, e por um instante, esqueci como se respirava.

— E não é? — respondeu com um meio sorriso. 

— Às vezes, o que mais muda a gente é justamente o que não estava nos planos.

Fiquei olhando pra ela, sem conseguir disfarçar o que estava sentindo.
E ali, naquele instante simples, percebi que algo em mim havia cedido.

O acaso.
Era disso que ela falava.
E talvez… o acaso tivesse nome e estivesse sentada bem à minha frente.

Desviei o olhar por um segundo, tentando reencontrar a compostura.
Mas ela me observava com tanta calma que parecia ler os pensamentos que eu lutava pra esconder.
Meus dedos começaram a tamborilar na mesa, inquietos, denunciando o nervosismo que eu fingia não sentir.

— Sabe o que é engraçado? — disse, tentando soar leve, mas falhando miseravelmente. 

— Eu passei a vida acreditando que sentimentos eram distrações perigosas. Que quanto mais você se envolve, mais vulnerável fica.

Ela sorriu de canto. — E ainda acredita nisso?

Sorri de volta, sem graça.
— Estou… reconsiderando.

Clara inclinou a cabeça, curiosa, e o silêncio que se instalou logo depois parecia pulsar.
Entre nós, havia uma energia estranha — uma tensão doce, feita de respeito, curiosidade e algo que eu não ousava nomear.

Quis dizer mais, mas a garganta travou.
Apenas deixei o olhar pousar sobre ela, e foi suficiente para sentir o perigo.
Os traços suaves do rosto, a forma como o cabelo caía sobre o ombro, o leve movimento dos lábios…
Deus, ela não fazia ideia do que provocava em mim.

— O acaso, às vezes, é cruel — sussurrei, quase sem querer. — Ele coloca pessoas certas em horas erradas.

Clara baixou o olhar, e percebi o rubor subindo-lhe ao rosto.
Não era preciso dizer mais nada.

Por um breve instante, senti vontade de atravessar aquele espaço minúsculo entre nós.
De tocar o que eu sabia que não deveria.
Mas me contive — não por falta de vontade, e sim por medo do que viria depois.

Levantei devagar, tentando recuperar o controle que ela, sem perceber, havia tomado de mim.

— Acho que precisamos voltar ao trabalho — falei, num tom neutro demais pra esconder a turbulência.

Ela assentiu, e mesmo assim, o ar parecia ainda mais denso. Ao passar por mim, seu perfume misturou-se ao meu, e por um segundo, senti a pele arrepiar.

Percebi ela olhar discretamente para trás antes de sair da sala.

E eu, continuei ainda ali, a observando, com um sorriso pequeno, perdido. — desses que dizem tudo sem precisar de som.

Fechou a porta atrás de si, levando comigo um pensamento que não consegui calar:

Se o acaso é o que dá valor a um sentimento… então eu já estou perdida.

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O acaso a meu favor - Página 67

Continuação por Clara...

— Mas não… — respondo por fim, tentando manter a voz firme. — Mas a promessa que fizemos foi: se o acaso nos desse outra chance, se nossas vidas estivessem mais calmas do que da última vez… não nos privaríamos.

As palavras saem com uma sinceridade que nem eu esperava.

Vejo Verônica me encarar em silêncio — um olhar que mistura irritação, incerteza e algo que, por um instante, me faz querer recuar.

Mesmo achando graça da situação, sinto o coração apertar.
Medo.
Medo de perdê-la — mesmo sem nunca tê-la, de fato.

— Quando a conheci… — começo, e vejo o modo como ela imediatamente se endireita na cadeira, a atenção toda voltada para mim.

Engulo em seco antes de continuar.

— Tinha acabado de descobrir uma traição no meu último relacionamento… — falo baixo, como se as palavras ainda cortassem por dentro.

Verônica se vira completamente para mim, apoiando os cotovelos na mesa. Os olhos dela — antes tensos, agora mais suaves — me observam com uma curiosidade silenciosa, quase protetora.

Por um segundo, sinto que o ar entre nós muda.
Não há julgamento em seu olhar.
Só presença.
E isso, vindo dela, é quase perigoso.

Fico ali, tentando sorrir, mas algo em mim treme — porque sei que, naquele exato instante, Verônica não vê só a funcionária que trabalha no mercado.
Ela vê a mulher por trás das defesas, e isso me deixa nua de um jeito que não tem nada a ver com o corpo.

— E bom… — voltei a dizer, respirando fundo. 

— Estávamos na nossa melhor fase. Em todas as áreas. Com promessas de casamento em cartório e tudo mais.

Falo sem raiva — não mais. Mas ainda há um sabor amargo, uma sombra antiga que insiste em ficar.

— Parecia loucura, pela pouca idade — continuo, mexendo distraidamente nas mãos. — Mas já estávamos juntas há dois anos. Achávamos que o tempo era suficiente para provar que o amor bastava.

Minha voz soa leve, quase distante, como se contasse a história de outra pessoa. Mas não era outra. Era a minha.
E, por algum motivo, ver o olhar de Verônica se tornando mais suave, mais acolhedor, me deu coragem.

Quanto mais eu falava, mais ela parecia me ouvir com o corpo inteiro — sem interrupções, sem pressa, como quem entende o que não se diz.
E isso… me fez querer tirar o peso do peito, mesmo que custasse um pouco da minha dignidade.

Olhei para o chão, sentindo o nó apertar.

— Na minha cabeça, nós estávamos bem resolvidas. Mesmo com os traumas, as discussões, as cicatrizes… eu ainda acreditava que o amor era suficiente.

Um sorriso sem humor me escapou.

— Mas descobri, da pior maneira, que não é assim que funciona. — murmurei, com um misto de tristeza e constrangimento pela própria ingenuidade.

Por um instante, o silêncio tomou conta da sala.
E foi ali, entre a lembrança e o alívio, que senti — com uma clareza quase cruel — que o olhar de Verônica sobre mim já não era o mesmo.

Ela me olhava diferente.
Com algo entre ternura e desejo.
E pela primeira vez, eu quis que ela não desviasse.

— E minha vida construída em dois anos, com tantas falsas expectativas, foi por água abaixo… — soltei um riso sem humor. — Como um castelo de areia sendo levado pela maré.

O som da minha própria risada ecoou fraco, quase como um alívio cansado.

— Às vezes fazem a gente acreditar que, quanto mais cedo encontramos o amor, mais valioso ele se torna — continuei, olhando para um ponto qualquer na sala, sem realmente vê-lo.

Fiquei um instante em silêncio, sentindo o ar pesado das lembranças.

— Mas eu… — suspirei, virando o rosto para ela. — Eu acredito que o que realmente dá valor a um sentimento, é o acaso.

Ri de leve, não por achar graça, mas pela ironia da própria frase.
Verônica me observava sem piscar, e havia algo no olhar dela que me fez continuar, quase num sussurro:

— Aquele que ninguém prevê… aquele que ninguém espera.

Nossos olhos se encontraram.
E, por um segundo, o mundo pareceu se calar.

O tempo suspenso entre nós tinha o gosto de algo perigoso — como se minhas palavras tivessem aberto um espaço onde o destino pudesse entrar e fazer o que quisesse.

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O acaso a meu favor - Página 66

Por Clara…

Depois do almoço, regado a conversas paralelas e muitas risadas, acabei optando por passar o intervalo no escritório dela. 

Por pura curiosidade — e talvez por querer estender um pouco mais aquele momento — pedi que me explicasse o que significavam aqueles gráficos coloridos na tela do computador.

Ela riu, daquele jeito divertido e um tanto incrédulo, como quem não esperava tal pergunta. Mas, ainda rindo, colocou os óculos de grau, e ali… minha respiração vacilou.

Era algo simples, quase banal, mas ver Verônica ajeitando os óculos e inclinando-se sobre a tela, com aquele ar de concentração e a voz firme, foi o suficiente para bagunçar meus pensamentos.

Tentei me concentrar no que ela dizia — afinal, fui eu quem pediu a explicação —, mas era difícil. Cada gesto dela, cada pausa breve entre as palavras, parecia um convite para me perder um pouco mais.

No pouco tempo que tínhamos, e dentro do que ela podia me ensinar, explicou tudo de forma tão paciente que até os números fizeram sentido.

Por isso você vê o Augusto o tempo todo ranzinza. — disse, finalizando a explicação com um sorrisinho de canto.

A forma como ela falou me arrancou uma risada, e por um instante, nossas vozes se misturaram no ar — leves, cúmplices, perigosamente próximas.

Depois da risada, um silêncio confortável se instalou — desses que não pesam, mas que fazem o ar parecer mais denso.

Verônica ainda olhava para a tela, mas seus dedos batiam distraídos sobre a mesa, como se o pensamento dela já tivesse ido para longe… ou, quem sabe, para perto demais de mim.

Eu observava o reflexo dela no vidro da tela — o contorno do rosto, a curva discreta dos lábios. Tudo nela exalava uma elegância que me deixava sem saber se devia admirar ou fugir.

— Conseguiu entender agora? — perguntou de repente, virando-se para mim.

O olhar dela me pegou de surpresa. Por um instante, esqueci completamente o que estávamos fazendo ali.
Meu coração pareceu bater mais alto que o som do ventilador da sala.

— Acho que sim… — respondi, um pouco sem voz.

Ela inclinou o corpo para frente, apoiando o cotovelo na mesa e o queixo sobre a mão, me analisando com aquele olhar que parecia ler o que eu não dizia.
Senti o rubor subir pelas bochechas, e Verônica, ao perceber, arqueou levemente a sobrancelha, um meio sorriso brincando nos lábios.

— Você fica vermelha quando mente, sabia? — disse em um tom provocante, quase sussurrado.

Sorri, sem coragem de negar.
E, por alguns segundos, ficamos ali — uma frente à outra — com o som do ar condicionado e o barulho distante da pessoas no mercado sendo a única testemunha daquele quase-acontecimento.

Entre risos e pequenas provocações, o tempo passou sem que eu percebesse. Verônica, que até então parecia relaxada, começou a me lançar perguntas curiosas — dessas que misturam curiosidade e algo mais profundo.

Eu, claro, me divertia com isso. Respondia algumas, deixava outras no ar, só pra ver o modo como ela franzia o cenho quando não obtinha o que queria.
Ver Verônica perder um pouco do controle, mesmo que por segundos, era… uma das minhas cenas favoritas.

— Mas então… — ela começou, entortando ligeiramente a boca, tentando disfarçar o incômodo sob um tom quase casual.

— Aquela mulher que veio aqui mais cedo… — pausou, e pude jurar que escolhia as palavras com cuidado, como quem anda por terreno perigoso. — Vocês se conhecem há muito tempo?

Dei de ombros, fingindo indiferença.

— Já teve, ou tem alguma coisa… ainda? — completou, tentando soar natural, mas a tensão em sua voz entregava tudo.

Por dentro, eu queria rir. Por fora, tentei manter o ar mais neutro possível — mas é difícil conter o riso quando se vê Verônica, a mulher mais fria e contida que conheço, tropeçando nas próprias palavras por… ciúmes?

A olhei de relance, e por um instante ela desviou o olhar, como se tivesse dito algo que não deveria.
Seu rosto estava sério, mas os dedos tamborilando levemente sobre a mesa a traíam.

— “Ainda?” — repeti, fingindo surpresa, arqueando uma sobrancelha. — Está me fazendo um interrogatório, dona Verônica?

Ela soltou o ar lentamente, entre um riso nervoso e um suspiro irritado.

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quinta-feira, 9 de outubro de 2025

O acaso a meu favor - Página 65

Continuação por Verônica...lll

Pouco depois do meu pedido, ouvi batidas leves na porta. Um dos rapazes entrou, equilibrando várias marmitas nos braços.

— Dona Verônica... — disse, um pouco sem fôlego.

— Essa sacola mandaram entregar diretamente para a senhora. — completou, ajeitando os óculos no rosto.

— Pode deixar aí mesmo. — respondi, me levantando.

Fui até ele e reconheci de imediato o que havia pedido: três marmitas, cuidadosamente colocadas na mesma sacola — a minha, a de Igor e a da Clara.

— Obrigada. — disse, pegando o pacote. Antes que ele saísse, acrescentei:
— Guarde essa aqui para o Igor, por favor. Pode deixar na bancada, ele ainda vai demorar.

Ele assentiu, meio atrapalhado, e obedeceu prontamente.

Em menos de dez minutos, percebi que a maior parte da equipe havia saído para almoçar em casa. Até o Augusto tinha desaparecido.

— Todos pegaram suas marmitas? — perguntei, observando o rapaz que ainda organizava o que restava.

— Sim… sim, Dona Verônica. — respondeu, nervoso, como se cada palavra precisasse de permissão para existir.

Acenei para que continuasse o serviço, e ele correu a se ocupar de novo.

Respirei fundo. O silêncio no mercado começava a se instalar — um silêncio agradável, quase íntimo.

“Clara deve estar em alguma das seções ainda”, pensei.

Olhei ao redor, vi alguns funcionários almoçando discretamente nos fundos, e por algum motivo aquilo me trouxe certo alívio.

Peguei a marmita restante — a dela — e segui pelos corredores.
Não tinha um plano exato, apenas a desculpa perfeita.

E, no fundo, eu sabia o que estava fazendo.
Sabia, e mesmo assim continuei.

A cada passo, o som do salto no piso frio parecia denunciar o que eu me recusava a admitir:
Não era apenas gentileza.
Era necessidade.

Fui em direção aos corredores, procurando por quem, sem querer, vinha ocupando todos os meus pensamentos.

Quando dobrei o corredor, percebi que ela já não estava onde eu esperava.
Soltei um riso curto, quase inaudível.
Ou ela é hiperativa, ou boa demais no que faz... ou os dois.

Caminhei mais um pouco e a encontrei na seção de vinhos — a adega. Um lugar delicado, calmo, quase sagrado entre tantas gôndolas e caixas.

Ela estava de costas, sobre uma pequena escada, limpando as prateleiras com tanto cuidado que parecia tocar algo valioso. Lia os rótulos com atenção, franzindo o cenho de vez em quando, fazendo pequenas caretas que me arrancaram um sorriso involuntário.

Acabei rindo baixo — e, claro, ela ouviu.
Clara virou o rosto em minha direção, e o que veio a seguir foi o sorriso mais lindo do dia.

— Vejo que está bem interessada nos rótulos — comentei, tentando manter o tom leve, mas a voz saiu um pouco mais... sugestiva do que eu pretendia.

Ela desceu da escada — não muito alta, apenas o suficiente para alcançar as prateleiras superiores.
Ajeitou o uniforme, tirando uma pequena teia de aranha do ombro, e respondeu com um ar quase tímido:

— Eu gosto de estudar um pouco sobre eles. — disse. — Trabalho com vinhos, às vezes, quando faço uns bicos pra Dona Vanda.

Assenti devagar, observando-a.
Havia algo hipnótico na naturalidade dela. No jeito simples com que falava, como se o mundo não pesasse nas costas.

Demorei alguns segundos demais analisando aquela criatura.
Cada gesto, cada olhar.

Ela não fazia ideia do que causava em mim — ou fazia, e fingia não saber.

Percebo que demoro tempo demais parada ali, só observando. Então, para disfarçar o constrangimento e — talvez — o que realmente me trouxe até ela, acabo soltando:

— Vamos! Vem almoçar.

Minha voz sai mais firme do que eu esperava, quase uma ordem.
Ela se vira devagar, ainda com aquele pano na mão, e me olha confusa, como se não soubesse se deve obedecer ou rir da minha súbita autoridade.

— O que você fez pra gente comer hoje? — pergunta, arqueando uma sobrancelha e me lançando um sorriso travesso.

Reviro os olhos, cruzando os braços e tentando disfarçar o riso que insiste em escapar.

— Dessa vez não cozinhei pra você… — respondo com um leve desdém teatral, apenas para provocar. — Mas pedi algumas marmitas pra todos nós.

Ela solta uma risada curta, aquele tipo de riso que vem fácil, e que de algum modo me desmonta.
Por um instante, o corredor da adega parece menor, mais quente.

Clara se aproxima, ainda segurando o pano, e há algo em seu olhar — uma mistura de curiosidade e desafio — que me faz engolir em seco.

Ela me observa por um segundo a mais do que deveria, e tenho quase certeza de que percebeu o que me passa pela cabeça.

— Então tá — diz, por fim. — Se foi a senhora quem pediu, deve tá bom.

Reviro os olhos mais uma vez, fingindo impaciência, mas no fundo sorrindo com o canto dos lábios.

E, enquanto caminhamos lado a lado em direção à sala, percebo o quanto é perigoso esse simples gesto de dividir uma refeição com ela.
Perigoso, porque é íntimo.
E íntimo, porque quero que seja.




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O acaso a meu favor - Página 64

Continuaçao Verônica...

Ao pensar, pensar e pensar… decidi criar alguma maneira de me desculpar pelo pequeno — e, convenhamos, nada profissional — gesto que tive mais cedo com Clara.

O dia passou num piscar de olhos. Clara, junto com os rapazes, foi impecável: em menos de três horas, conseguiram organizar, empilhar e precificar todas as mercadorias do novo açougue.
Reconheço — a equipe foi admirável. Mas ela… ela sempre se destaca.

Enquanto reviso alguns relatórios, percebo Clara em outra seção, concentrada, limpando e reorganizando as prateleiras. O jeito firme, o olhar atento, a calma quase irritante de quem faz tudo bem feito sem esforço algum.

Estamos a poucos dias de julho — a temida alta temporada em Caldas. Tenebrosa para os funcionários, que mal respiram, e lucrativa para nós, empresários.
Ironias do capitalismo, eu diria.

Olho para o relógio: 12h45. Hora do almoço.
Igor ainda não voltou, e pelo ritmo da ligação com Lia, duvido que volte tão cedo.

Pego o telefone e ligo para um dos muitos restaurantes da cidade, pedindo as marmitas para o pessoal que ficou e para os que irão dobrar o turno.

E é aí que o pensamento me atinge como um soco.
Não havia necessidade de colocar Clara hoje no segundo horário.

— Meu Deus... como sou horrível. — murmuro, entre um suspiro e um arrependimento mal disfarçado.

Mas, ao lembrar da cena mais cedo — dos olhos daquela mulher, a tal Elise, percorrendo Clara de cima a baixo —, sinto o sangue ferver outra vez.

Não posso permitir brechas.
Não com ela.
Não com ninguém.

Só de pensar naquela mulher olhando Clara daquela forma, meus punhos se fecham, e uma chama ácida me sobe pelo peito.

— Ridículo… — sussurro, tentando rir de mim mesma, mas o riso morre antes de nascer.

Não sei o que é pior: o ciúme em si, ou o fato de saber exatamente o que ele significa.

Ainda estava afundada nos meus próprios pensamentos quando ouvi três batidas leves na porta.

— Com licença… — a voz dela.

Clara.

Meu corpo reagiu antes da minha razão. Endireitei a postura, ajeitei o decote da minha blusa e limpei a garganta, como se o gesto pudesse apagar o que se passava na minha cabeça segundos antes.

Ela entrou com uma pasta nas mãos e um sorriso tímido — desses que parecem inocentes, mas carregam um perigo silencioso.

— O Augusto pediu pra eu trazer os comprovantes das últimas notas — disse, estendendo os papéis.

— Certo — murmurei, tentando soar natural, sem sucesso. Meus dedos roçaram nos dela ao pegar os documentos, e o toque breve pareceu tempo demais.

Por um instante, ficamos ali, caladas.
Os olhos dela se prenderam nos meus, e juro que o ar do escritório ficou mais pesado.

Havia algo naquele olhar... uma dúvida, talvez. Ou medo.
Mas também havia vontade.

E eu percebi — naquele segundo, com a mesma clareza com que se percebe o fogo prestes a escapar do controle — que ela sentia o mesmo.

Clara desviou o olhar primeiro, mordendo o canto do lábio como quem se censura. Eu, por outro lado, lutei para não sorrir.
A postura dela me entregava mais do que qualquer palavra: o jeito como segurava a pasta com força, como respirava rápido demais, como evitava erguer o rosto outra vez.

— Está... tudo certo por aqui? — perguntou, quebrando o silêncio.

— Está, sim. — respondi. — Só estou... cansada.

Ela assentiu, mas o olhar, ah, esse dizia outra coisa. Dizia “eu também”.

E, por um instante, senti vontade de confessar tudo — de admitir que meu cansaço não era dos relatórios, e sim dessa guerra silenciosa entre o que devo e o que quero.

Mas não disse nada.
Nem ela.

O som do relógio na parede foi o único a preencher o espaço entre nós. O tempo, cruel, esticava-se como se zombasse da nossa covardia.

Quando finalmente deu um passo para trás, a distância pareceu maior do que realmente era.

— Qualquer coisa... estarei lá fora. — disse, quase num sussurro, antes de sair.

Fiquei observando a porta se fechar.
E, pela primeira vez, tive certeza do que venho tentando negar.

Ela sente.
Tanto quanto eu.
E talvez esse seja o verdadeiro problema.

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O acaso a meu favor - Página 63

Por Verônica…

Hoje, juro... não sei o que está acontecendo comigo.
Um calor sem igual, um estresse fora do comum com esses relatórios, e ainda me vem uma mulherzinha de não sei onde... Brasília, não é? — tento forçar a memória da frase: “Vou poder te levar embora?”

Reviro os olhos, tentando me concentrar no que realmente importa, mas é impossível. A cena se repete na minha cabeça como um disco riscado.
A maneira como ela — Elise, era esse o nome, se não me engano — cumprimentou a Clara, toda sorrisos e intimidades não declaradas.

E o pior... foi a forma como Clara retribuiu.
Aquele abraço, aquele riso leve, aquela expressão que nunca vi quando está comigo.

Respiro fundo, tentando aliviar o nó no peito. Em vão.

Por que aquilo me incomoda tanto?
Ela é apenas uma funcionária.
Uma simples funcionária.

Mas meu corpo parece não ter entendido essa parte.
Cada vez que ela fala, meu olhar a procura.
Cada vez que ela sorri, algo em mim se contorce.


Finjo estar atenta a tudo que Igor me diz, porque sei que o assunto é importante.
Compradores, fornecedores, trocas de mercadorias, boletos, notas… — tudo ecoa como ruído distante. Tento me concentrar, mas cada palavra parece se dissolver no ar antes de chegar até mim.

Solto um suspiro mais intenso do que pretendia. O bastante para chamar a atenção do meu irmão, que pausa o que está dizendo e me lança um olhar de leve desconfiança.

— Está tudo bem, Verônica? — pergunta, franzindo o cenho.

Respiro fundo, forçando um sorriso profissional, daqueles que usei a vida toda para esconder qualquer fraqueza.
— Tudo, tudo… só me enrolei um pouco entre um assunto e outro. — respondo, ajeitando a lapiseira entre os dedos, como se o simples gesto pudesse me ancorar à realidade.

Mas sei que ele percebeu. Igor sempre percebe.

Tento voltar aos números, às tabelas, aos contratos... mas o que me vem à mente é o rosto dela.
Clara.

A voz dela ainda ressoa em algum canto da minha cabeça — e, se eu me permitir pensar demais, talvez o controle que tanto prezo se desfaça por completo.

Já estávamos há quase uma hora naquele escritório, e boa parte desse tempo me vi presa nos meus próprios pensamentos — especificamente, no ato impulsivo que tive com Clara.

— Acho que vamos dar uma pausa... — diz Igor, olhando o celular ao ouvir o toque da Lia.

Agradeço mentalmente à minha cunhada como se ela tivesse acabado de me salvar de um incêndio. Vejo Igor levantar-se, atender e sair pela porta, deixando-me sozinha. Finalmente, posso respirar.

Encosto-me na cadeira, fecho os olhos e tento organizar o caos dentro de mim.
O que está acontecendo comigo?

Como algo tão pequeno — um toque, um olhar, uma provocação — conseguiu me desarmar dessa forma?

Sinto o corpo esquentar de novo. Um calor irritante, desconfortável, que sobe até o rosto.

— Meu Deus, que calor! — murmuro, abanando as mãos, mais para espantar o turbilhão de pensamentos do que o clima em si.

Não posso dizer que é só desejo.
Porque, no fundo, há algo mais.
Carinho.
Preocupação.
Ciúmes, talvez.
E, acima de tudo, uma estranha admiração pela maneira como ela enxerga a vida — simples, leve, livre.

Mas apaixonada?
Isso, não! — digo em voz alta, para que o som das palavras me convença da mentira.

Ainda assim, o eco do que acabo de negar volta como um lembrete incômodo.
Porque, se eu não cuidar do que estou sentindo, não vai demorar para que o inevitável aconteça.

Solto o ar e me deixo cair na cadeira, permitindo que o peso dos pensamentos me domine. O teto parece girar devagar enquanto minha mente percorre uma lista de tudo que torna isso — nós — tão errado:
o mercado, a imagem, a empresa no exterior... e a Ana.

Fecho os olhos por um instante.
E percebo, com certo desespero, que nada disso é suficiente para me convencer a parar de pensar nela.

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domingo, 5 de outubro de 2025

O acaso a meu favor - Página 62

Continuação por Clara III :

Ao me confrontar de maneira direta, ficando a poucos centímetros de mim, ela lança a pergunta — firme, precisa, quase um golpe calculado:

— Você tem algo importante pra fazer hoje, Clara?

Na mesma hora, um arrepio percorre minha espinha. O convite de Elise me atravessa a mente como uma lembrança inoportuna.
Será que ela ouviu justamente essa parte?
Claro que ouviu — é óbvio que ouviu! — um tapa mental na testa confirma o desastre.

— Fora isso, preciso que fique. — A voz dela corta meus pensamentos, doce o bastante para disfarçar o veneno por trás.

Ergo o olhar e a encaro com um meio sorriso cansado. Estava exausta, é verdade, mas não o suficiente para enfrentar um segundo turno sob o olhar dela. Ainda assim, algo me diz que Verônica não estava num dia bom — ou talvez fosse eu que tivesse escolhido as palavras erradas.

— Claro... pedindo assim, com “jeitinho”, quem é que recusa? — murmuro, mais para o ar do que para ela.

Achei que fosse o fim da conversa. Ledo engano. Os passos firmes soam atrás de mim, aproximando-se num ritmo que faz o chão parecer menor. Instintivamente, recuo — só um pouco.

De repente, ela está ali. Perto demais. O perfume amadeirado me envolve antes mesmo que eu consiga respirar direito. O decote dela paira à altura do meu rosto, e o olhar... o olhar carrega uma fúria contida, como se uma faísca a mais fosse suficiente para incendiar o mundo. Juro que, por um instante, vi fumaça subir.

E então, ela age.
Com unhas impecavelmente feitas — e afiadas o bastante para marcar o que quisessem —, Verônica segura meu braço com firmeza, o toque possessivo e inegociável. Inclina-se devagar, até que sua voz me alcance, baixa, áspera, apenas para mim:

— Não brinque comigo, Clara.

Não sei se a intenção era me intimidar. Talvez fosse. Mas o efeito foi completamente o oposto.
Uma risada quase escapou, tímida, sufocada. Porque, no fundo, a cena era absurda demais para o medo — e intensa demais para ser ignorada.
O corpo dela tão próximo, o perfume, o calor... tudo pareceu parar por um segundo.
E, naquele breve intervalo, percebi que Verônica podia ser muitas coisas — menos previsível.

Por um instante, nenhuma de nós se moveu. O silêncio era espesso, quase palpável, e só o som de nossas respirações preenchia o espaço entre uma provocação e o perigo.

O olhar de Verônica se fixou no meu — firme, indecifrável — e, pela primeira vez, não encontrei nada para dizer. Era como se o mundo tivesse diminuído até caber naquele instante: o toque dela ainda no meu braço, o perfume amadeirado que me envolvia, a proximidade sufocante e, ao mesmo tempo, irresistível.

Ela não precisou dizer nada. O corpo falava por ela.
E o meu… respondeu.

Um segundo, talvez dois, e o ar pareceu mudar de temperatura. Senti o coração bater no fundo da garganta, e as palavras, aquelas que sempre me salvavam, me traíram completamente.

Verônica inclinou levemente a cabeça, o olhar descendo até minha boca. Foi o bastante. A tensão se transformou em algo quase tangível — o tipo de silêncio que antecede um erro delicioso.

Mas o destino, como sempre, tem um senso de humor cruel.

— Verônica! — a voz de Igor ecoou pelo corredor, firme, prática, completamente fora de tom com o que acabara de acontecer. — Preciso que veja uns papéis do financeiro comigo.

Ela piscou devagar, como quem desperta de um transe. Afastou-se apenas o suficiente para que o ar voltasse a circular entre nós, mas o olhar... o olhar ficou.

— Depois conversamos, Clara. — disse, num tom baixo demais para o irmão ouvir.

E, antes de sair, jogou os cabelos mais uma vez para trás, em sinônimo de nervosismo de quem soube exatamente o efeito que causou — e não tem pressa alguma de desfazê-lo.

Fiquei ali, parada no meio do corredor, tentando me convencer de que era só o nervosismo falando. Mas, no fundo, eu sabia.
Havia algo entre nós.
E, depois daquele olhar, negar seria inútil.

Fiquei parada por alguns segundos, sem saber se respirava ou ria do que tinha acabado de acontecer. O corredor parecia menor, o ar mais denso — e o perfume dela, teimosamente preso em mim.

Levei a mão ao braço, exatamente onde ela me segurara. Ainda sentia o calor. O toque.
Era quase ridículo o quanto aquilo me afetava. Eu, que sempre soube me manter no controle, agora me via completamente tomada por uma energia que não sabia nomear — ou talvez soubesse, mas preferisse não admitir.

— “Não brinque comigo, Clara.” — a voz dela ecoava na minha cabeça, repetida e cada vez mais perigosa.

Suspirei, encostando-me à prateleira atrás de mim.
Talvez eu tivesse cruzado uma linha invisível, e o pior é que... parte de mim queria cruzá-la de novo.

Olhei em direção ao escritório, de onde vinham vozes abafadas — Verônica e Igor, discutindo algo sobre relatórios e números. O tom dela já não era o mesmo de minutos atrás. Profissional, frio, impassível. Como se nada tivesse acontecido.

Mas aconteceu.
E eu senti.

Ajeitei a flanela no ombro, na tentativa patética de disfarçar o próprio tremor das mãos. Senti vontade de rir — de mim mesma, dela, da situação absurda.
Deusa amadeirada, era isso que ela era. Entrava no ambiente e mudava o ar, a temperatura, o meu equilíbrio.

Passei os dedos nos lábios, sem perceber, e a lembrança do olhar dela fez meu estômago revirar de novo.
Havia algo ali, inegável.
Mas, como tudo o que vinha de Verônica, também era perigoso.

E o pior é que, por mais que eu tentasse negar… parte de mim já estava disposta a correr o risco.

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O acaso a meu favor - Página 61

Continuação por Clara:

Ao reconhecer a figura vibrante à minha frente, não consegui conter a alegria. Meu sorriso se abriu largo, genuíno, escapando sem pedir permissão. Caminhei apressada em sua direção, enquanto ela já se preparava para me envolver em um abraço — e não era um abraço qualquer, mas aquele que me lembrava de um tempo em que tudo parecia mais leve, mais simples.

E, no entanto, não estávamos sozinhas naquela cena. Verônica observava tudo à distância, imóvel, os óculos escorregando perigosamente até a ponta do nariz. Seus olhos analisavam cada gesto, cada emoção estampada em mim, com uma calma incômoda e uma interrogação silenciosa que se desenhava em sua testa. O calor do reencontro contrastava brutalmente com a frieza calculista de seu olhar.

Ao me desvencilhar, ainda com o calor do abraço latejando em mim, deixo escapar com um sorriso enigmático:
— Bom... agora tenho motivos fortes para ficar.

Enquanto digo isso, finjo buscar algo ao meu redor, os olhos pousando na cabeleira preta como se fosse apenas um detalhe banal. Mas sabia, no fundo, que minha frase pairava no ar carregada de um duplo sentido — forte o bastante para que Elise a recebesse como um carinho, e, ao mesmo tempo, para que Verônica, atenta como sempre, a captasse como uma provocação silenciosa.

Elise, ao ouvir minha resposta, deixou escapar um olhar entristecido, mas logo um brilho maroto tomou conta de seus olhos — como quem ainda não estava disposta a desistir.

— Bom... pelo menos se divertir uma noite comigo você não vai negar, não é mesmo? — disse em tom meio brincalhão, meio desafiador.

Sem muita certeza do que realmente queria, aceitei prontamente o convite, perguntando se o número ainda era o mesmo.

— Continua sim, princesa... — murmurou com doçura, inclinando-se para me beijar na testa. O gesto parecia inocente, mas escondia uma intenção clara, como se quisesse marcar território, mesmo que de forma silenciosa.

Ela seguiu até o caixa, onde seus amigos a aguardavam. A galera, já acostumada comigo, apenas acenou em despedida. Elise, porém, fez questão de se destacar: lançou-me um gesto insinuante, acompanhando com um sorriso que dizia mais do que as palavras — “Me liga!”

Dou risada da maneira como Elise diz, divertida com sua ousadia. Mas, ao me virar, dou de cara com uma mulher de expressão dura, a cara fechada, nitidamente nada contente com o que acabara de presenciar. O choque foi tão grande que senti o riso morrer em meus lábios antes mesmo de perceber.

Conheci Elise no ano passado, junto com o grupo de amigos dela, numa tarde bem quente — como tantas outras em Caldas Novas. Lembro-me como se fosse hoje: eu atravessava uma fase complicada, tinha acabado de descobrir mais uma das traições de Camila. Só de pensar nisso ainda sinto um nó no estômago. Foi um período desgastante, doloroso, em que eu não sabia como lidar com tanta decepção.

E talvez por estar tão fragilizada, a presença de dela tenha me chamado atenção de um jeito diferente. Não era paixão, nem desejo — era apenas curiosidade. O jeito leve dela contrastava com o peso que eu carregava, e isso, por si só, já fazia diferença.

O curioso é que tudo começou com uma confusão entre um dos amigos de Elise e Augusto. No fim, o mal-entendido foi resolvido e eles acabaram se tornando conhecidos. Mas com Elise foi diferente: não sei explicar bem, havia algo no jeito dela que despertava a minha curiosidade. Não era romance, nem desejo... apenas aquela sensação de que havia mais naquela pessoa do que ela deixava transparecer.

A química, a conversa, o olhar, o abraço... nunca chegamos a ter nada de fato. Ainda assim, na nossa última despedida, houve algo nos olhares que trocamos: uma promessa silenciosa. Se o acaso resolvesse nos dar outra oportunidade, não nos prenderíamos. Nem que fosse por uma noite, deixaríamos que a vida seguisse seu próprio ritmo.

Mas hoje já não consigo afirmar se penso ou sinto a mesma vontade de meses atrás. O que sei é que foi muito bom revê-la.

Volto minha cabeça ao presente — ou melhor, para uma certa mulher de expressão amarrada, prestes a soltar sua fúria sobre todos... ou, mais precisamente, sobre mim.

Na minha humilde opinião, achei que meu horário seria o habitual, às 15h20. Mas nada como uma deusa quase descabelada para bagunçar não apenas os seus planos, mas os meus também. Meu cérebro dizia para recusar, seguir a rotina, não me deixar levar… mas havia algo em Elise — no jeito como me olhava, no sorriso quase desafiador — que tornava impossível dizer não. Estava tentada a aceitar o convite para aquela noite, mesmo que fosse apenas para aproveitar o calor do entardecer, mesmo sabendo que talvez me arrependesse depois.

Estava eu, com minha famosa flanela surrada pendurada no ombro, quando ouço passos conhecidos atrás de mim. Estava em um dos corredores da perfumaria, limpando as prateleiras e separando um produto de cada para que Verônica imprimisse o preço — já que Augusto havia saído.

Só que, nesse exato momento, eu já havia terminado e fui pega no flagra: rindo sozinha ao responder uma mensagem no celular. Virei meu corpo completamente na direção dela, tentando decifrar suas expressões. Um misto de fúria, raiva, desconforto… e até a clara vontade de me enforcar ali mesmo. Olhei para ela e pensei: “Sério, estou vendo isso mesmo ou minha flanela surrada ganhou poderes mágicos de irritar as pessoas?”

— Preciso que dobre hoje! — Ao ouvir aquilo, senti como se um balde de água gelada tivesse sido despejado sobre mim.

Sério? Justo hoje!? — pensei, completamente frustrada, antes que as palavras escapassem sem filtro:
— Sério, Verônica? — perguntei, num tom chateado, encarando-a diretamente.

Ela, que já estava de saída, parou de repente e freou os passos. Virou-se para mim, o olhar firme.
— Como é que é? — devolveu a pergunta, vindo em minha direção.

E, nessas horas, meus amigos... precisei de todo o jogo de cintura que tinha pra não deixar as pernas fraquejarem diante daquela mulher.


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O acaso a meu favor - Página 74

  Continuação — O beijo… por Verônica O “quase” entre nossas bocas dura longos segundos — segundos que esticam o mundo, que dilatam o ar ao...