As palavras de Clara ainda ecoavam na minha cabeça.
“O que realmente dá valor a um sentimento, é o acaso.”
Ela disse isso rindo, mas havia algo por trás do riso — uma melancolia calma, madura, quase poética. E aquilo me atravessou de um jeito que não sei explicar.
Fiquei em silêncio, observando-a, e tive vontade de dizer alguma coisa… qualquer coisa que preenchesse o espaço entre nós.
Mas não consegui.
Era raro ver alguém falar de dor com tanta serenidade.
Clara não se vitimizava, não fazia drama — ela apenas deixava a ferida respirar.
E eu, que sempre me orgulhei de ser controlada, fria, prática… percebi que estava completamente desarmada diante daquela mulher.
Os olhos dela, ainda úmidos de lembrança, tinham uma luz que não combinava com a tristeza das palavras.
Era uma luz viva. Quente.
A mesma que me desconcertava todos os dias, mesmo quando ela só passava por mim com aquele sorriso rápido, quase distraído.
— Você fala do acaso como se ele fosse um presente. — murmurei, mais pra mim do que pra ela.
Clara me olhou, e por um instante, esqueci como se respirava.
— E não é? — respondeu com um meio sorriso.
— Às vezes, o que mais muda a gente é justamente o que não estava nos planos.
Fiquei olhando pra ela, sem conseguir disfarçar o que estava sentindo.
E ali, naquele instante simples, percebi que algo em mim havia cedido.
O acaso.
Era disso que ela falava.
E talvez… o acaso tivesse nome e estivesse sentada bem à minha frente.
Desviei o olhar por um segundo, tentando reencontrar a compostura.
Mas ela me observava com tanta calma que parecia ler os pensamentos que eu lutava pra esconder.
Meus dedos começaram a tamborilar na mesa, inquietos, denunciando o nervosismo que eu fingia não sentir.
— Sabe o que é engraçado? — disse, tentando soar leve, mas falhando miseravelmente.
— Eu passei a vida acreditando que sentimentos eram distrações perigosas. Que quanto mais você se envolve, mais vulnerável fica.
Ela sorriu de canto. — E ainda acredita nisso?
Sorri de volta, sem graça.
— Estou… reconsiderando.
Clara inclinou a cabeça, curiosa, e o silêncio que se instalou logo depois parecia pulsar.
Entre nós, havia uma energia estranha — uma tensão doce, feita de respeito, curiosidade e algo que eu não ousava nomear.
Quis dizer mais, mas a garganta travou.
Apenas deixei o olhar pousar sobre ela, e foi suficiente para sentir o perigo.
Os traços suaves do rosto, a forma como o cabelo caía sobre o ombro, o leve movimento dos lábios…
Deus, ela não fazia ideia do que provocava em mim.
— O acaso, às vezes, é cruel — sussurrei, quase sem querer. — Ele coloca pessoas certas em horas erradas.
Clara baixou o olhar, e percebi o rubor subindo-lhe ao rosto.
Não era preciso dizer mais nada.
Por um breve instante, senti vontade de atravessar aquele espaço minúsculo entre nós.
De tocar o que eu sabia que não deveria.
Mas me contive — não por falta de vontade, e sim por medo do que viria depois.
Levantei devagar, tentando recuperar o controle que ela, sem perceber, havia tomado de mim.
— Acho que precisamos voltar ao trabalho — falei, num tom neutro demais pra esconder a turbulência.
Ela assentiu, e mesmo assim, o ar parecia ainda mais denso. Ao passar por mim, seu perfume misturou-se ao meu, e por um segundo, senti a pele arrepiar.
Percebi ela olhar discretamente para trás antes de sair da sala.
E eu, continuei ainda ali, a observando, com um sorriso pequeno, perdido. — desses que dizem tudo sem precisar de som.
Fechou a porta atrás de si, levando comigo um pensamento que não consegui calar:
Se o acaso é o que dá valor a um sentimento… então eu já estou perdida.
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