Ao me confrontar de maneira direta, ficando a poucos centímetros de mim, ela lança a pergunta — firme, precisa, quase um golpe calculado:
— Você tem algo importante pra fazer hoje, Clara?
Na mesma hora, um arrepio percorre minha espinha. O convite de Elise me atravessa a mente como uma lembrança inoportuna.
Será que ela ouviu justamente essa parte?
Claro que ouviu — é óbvio que ouviu! — um tapa mental na testa confirma o desastre.
— Fora isso, preciso que fique. — A voz dela corta meus pensamentos, doce o bastante para disfarçar o veneno por trás.
Ergo o olhar e a encaro com um meio sorriso cansado. Estava exausta, é verdade, mas não o suficiente para enfrentar um segundo turno sob o olhar dela. Ainda assim, algo me diz que Verônica não estava num dia bom — ou talvez fosse eu que tivesse escolhido as palavras erradas.
— Claro... pedindo assim, com “jeitinho”, quem é que recusa? — murmuro, mais para o ar do que para ela.
Achei que fosse o fim da conversa. Ledo engano. Os passos firmes soam atrás de mim, aproximando-se num ritmo que faz o chão parecer menor. Instintivamente, recuo — só um pouco.
De repente, ela está ali. Perto demais. O perfume amadeirado me envolve antes mesmo que eu consiga respirar direito. O decote dela paira à altura do meu rosto, e o olhar... o olhar carrega uma fúria contida, como se uma faísca a mais fosse suficiente para incendiar o mundo. Juro que, por um instante, vi fumaça subir.
E então, ela age.
Com unhas impecavelmente feitas — e afiadas o bastante para marcar o que quisessem —, Verônica segura meu braço com firmeza, o toque possessivo e inegociável. Inclina-se devagar, até que sua voz me alcance, baixa, áspera, apenas para mim:
— Não brinque comigo, Clara.
Não sei se a intenção era me intimidar. Talvez fosse. Mas o efeito foi completamente o oposto.
Uma risada quase escapou, tímida, sufocada. Porque, no fundo, a cena era absurda demais para o medo — e intensa demais para ser ignorada.
O corpo dela tão próximo, o perfume, o calor... tudo pareceu parar por um segundo.
E, naquele breve intervalo, percebi que Verônica podia ser muitas coisas — menos previsível.
Por um instante, nenhuma de nós se moveu. O silêncio era espesso, quase palpável, e só o som de nossas respirações preenchia o espaço entre uma provocação e o perigo.
O olhar de Verônica se fixou no meu — firme, indecifrável — e, pela primeira vez, não encontrei nada para dizer. Era como se o mundo tivesse diminuído até caber naquele instante: o toque dela ainda no meu braço, o perfume amadeirado que me envolvia, a proximidade sufocante e, ao mesmo tempo, irresistível.
Ela não precisou dizer nada. O corpo falava por ela.
E o meu… respondeu.
Um segundo, talvez dois, e o ar pareceu mudar de temperatura. Senti o coração bater no fundo da garganta, e as palavras, aquelas que sempre me salvavam, me traíram completamente.
Verônica inclinou levemente a cabeça, o olhar descendo até minha boca. Foi o bastante. A tensão se transformou em algo quase tangível — o tipo de silêncio que antecede um erro delicioso.
Mas o destino, como sempre, tem um senso de humor cruel.
— Verônica! — a voz de Igor ecoou pelo corredor, firme, prática, completamente fora de tom com o que acabara de acontecer. — Preciso que veja uns papéis do financeiro comigo.
Ela piscou devagar, como quem desperta de um transe. Afastou-se apenas o suficiente para que o ar voltasse a circular entre nós, mas o olhar... o olhar ficou.
— Depois conversamos, Clara. — disse, num tom baixo demais para o irmão ouvir.
E, antes de sair, jogou os cabelos mais uma vez para trás, em sinônimo de nervosismo de quem soube exatamente o efeito que causou — e não tem pressa alguma de desfazê-lo.
Fiquei ali, parada no meio do corredor, tentando me convencer de que era só o nervosismo falando. Mas, no fundo, eu sabia.
Havia algo entre nós.
E, depois daquele olhar, negar seria inútil.
Fiquei parada por alguns segundos, sem saber se respirava ou ria do que tinha acabado de acontecer. O corredor parecia menor, o ar mais denso — e o perfume dela, teimosamente preso em mim.
Levei a mão ao braço, exatamente onde ela me segurara. Ainda sentia o calor. O toque.
Era quase ridículo o quanto aquilo me afetava. Eu, que sempre soube me manter no controle, agora me via completamente tomada por uma energia que não sabia nomear — ou talvez soubesse, mas preferisse não admitir.
— “Não brinque comigo, Clara.” — a voz dela ecoava na minha cabeça, repetida e cada vez mais perigosa.
Suspirei, encostando-me à prateleira atrás de mim.
Talvez eu tivesse cruzado uma linha invisível, e o pior é que... parte de mim queria cruzá-la de novo.
Olhei em direção ao escritório, de onde vinham vozes abafadas — Verônica e Igor, discutindo algo sobre relatórios e números. O tom dela já não era o mesmo de minutos atrás. Profissional, frio, impassível. Como se nada tivesse acontecido.
Mas aconteceu.
E eu senti.
Ajeitei a flanela no ombro, na tentativa patética de disfarçar o próprio tremor das mãos. Senti vontade de rir — de mim mesma, dela, da situação absurda.
Deusa amadeirada, era isso que ela era. Entrava no ambiente e mudava o ar, a temperatura, o meu equilíbrio.
Passei os dedos nos lábios, sem perceber, e a lembrança do olhar dela fez meu estômago revirar de novo.
Havia algo ali, inegável.
Mas, como tudo o que vinha de Verônica, também era perigoso.
E o pior é que, por mais que eu tentasse negar… parte de mim já estava disposta a correr o risco.
Próxima página - O acaso a meu favor ... Página 63
Nenhum comentário:
Postar um comentário