domingo, 9 de novembro de 2025

O acaso a meu favor - Página 69

Por Verônica…

A tarde e a noite se arrastaram entre planilhas, atendimentos e reuniões que eu mal consegui registrar.
O relógio parecia zombar de mim, girando em círculos lentos, enquanto minha cabeça teimava em voltar sempre para o mesmo ponto: Clara.

A conversa que tivemos — o jeito como ela falou de amor, de perda, de acaso — ficou reverberando dentro de mim como uma música que não se cala.

E o pior: me peguei sorrindo sozinha mais de uma vez, lembrando das caretas que ela fazia tentando entender os gráficos.
Que droga. Eu, sorrindo feito uma idiota por causa de alguém que trabalha pra mim.

Respiro fundo, tentando me concentrar no relatório à frente.
Olho pela grande janela de vidro fumê que dá visão total ao mercado, e observo o movimento apressado dos funcionários, todos tentando encerrar o dia o mais rápido possível.

Já estávamos na reta final do expediente, todos exaustos, mas ainda empenhados em dar o melhor de si para o dia seguinte começar sem tantos ajustes.

Vejo Clara, juntamente com os rapazes, carregando caixas e sacos de lixo para o descarte. E, mais uma vez, deixo escapar uma risada nasal — essa menina parece ter uma energia que desafia o próprio cansaço.

Passo pelo açougue para conferir o fechamento.

— Bruno, tudo bem por aqui? — pergunto, mais por hábito do que por desconfiança.

— Tudo sob controle, dona Verônica. — responde ele, confiante.

Aceno, satisfeita, e continuo o trajeto, passando por cada corredor, checando prateleiras, iluminação e limpeza. Parte da rotina, mas também uma forma de organizar meus pensamentos — ou tentar.

Por ser o primeiro dia do açougue aberto, redobro o cuidado. Amanhã, Bruno já começa o turno no horário fixo, e espero que se mantenha nesse ritmo.

Enquanto caminho pelos corredores, avisto o motivo dos meus conflitos.
Clara.

Ela estava no caixa, concentrada, ajudando as meninas com o fechamento do sistema. A expressão séria, a postura focada — e mesmo assim, aquele sorriso leve de quem gosta do que faz.

Chego perto, e nenhuma das duas nota minha presença de imediato.

— Tudo certo aí, meninas? — pergunto num tom leve.

Clara levanta o rosto e sorri. — Tudo sim, Verônica.

— Ótimo. Assim conseguimos ir pra casa o mais rápido possível, não é? — brinco, e ambas riem, cansadas, mas contentes.

Os rapazes começam a apagar as luzes, e logo só resta o brilho dos caixas. Clara termina de conferir tudo e me entrega os dois envelopes com os fechamentos do dia — organizados, como sempre.

As meninas se despedem e vão embora.
Só nós duas ficamos.

Clara tem o hábito de me esperar do lado de fora, até eu trancar o portão e entrar no carro. Sempre ofereço carona, e quase sempre ela recusa, dizendo que gosta de andar um pouco. “Pra pensar na vida”, ela costuma dizer.

Guardo os envelopes, desligo computadores, ar-condicionado e luzes. Estou prestes a sair quando ouço vozes altas vindo da rua — um grupo de jovens, rindo alto, claramente embriagados.

Mas o que me fez congelar não foi o barulho.
Foi ouvir a voz dela.

Clara.
E entre as risadas, uma outra voz, feminina, firme, carregada de familiaridade.

Essa tal, Elise.

Meu corpo inteiro reagiu antes que minha mente entendesse.
Um calor subiu até o rosto, e o ar pareceu rarear.

Deixo a bolsa sobre o balcão e caminho até a porta, os passos acelerados, o coração descompassado.
E, lá fora, a cena que se desenhava já era o suficiente para me fazer perder a razão.

Clara estava do lado de fora, parada na calçada com o uniforme ainda amassado do expediente.
A rua estava parcialmente iluminada pelos postes, e o grupo que a cercava parecia ter acabado de sair de algum bar próximo. Risadas, vozes arrastadas, gestos amplos.
Mas o meu olhar encontrou só uma pessoa.

Casaco de couro, sorriso atrevido, o tipo de presença que enche o espaço como um perfume forte.
E ali, ela falava com Clara de um jeito que me fez querer atravessar o vidro e colocá-la dentro do carro à força.

— Mas está tarde… — ouvi Clara dizer, num tom leve, quase risonho.

E então Elise respondeu, com aquela insolência natural que só quem conhece os limites gosta de testá-los:

— Eu te levo em casa. Toma um banho, se arruma, e a gente se diverte um pouco…

Foi o suficiente.
O sangue ferveu.
Nem pensei. Só fui.

Empurrei a porta e atravessei o pequeno espaço entre o mercado e a calçada com passos firmes demais para quem fingia calma.
O ar noturno bateu no meu rosto, mas não serviu pra esfriar nada.

Clara me olhou surpresa, o grupo se calou por um instante — aquele tipo de silêncio que antecede um desconforto.

— Clara — disse, seca. — Está pronta? Te deixo em casa.
Não foi um convite. Foi uma sentença.

Ela piscou algumas vezes, confusa, e depois assentiu devagar, num gesto quase tímido.

Ao ouvir a confirmação que eu precisava, abri a porta. Mas parece que a tal Elise não gostou do meu tom. Ao olhar para Clara, e já à ver indo em direção ao meu carro, ela solta: 

— Você só vai se quiser, Clara! — disse, a voz alterada, e a mão dela, firme demais, segurava o pulso de Clara como se a possuísse.

Foi automático. Senti o sangue ferver. Em um segundo, já estava diante das duas, tirando Clara daquele toque que me incomodava como fogo na pele.

— Como é que é? — soltei, num tom baixo, mas cortante, me colocando entre elas.

Não era ciúme. Pelo menos, não queria que fosse. Era instinto. Proteção. Aquela mulher estava alterada, bêbada, talvez drogada, e o grupo ao redor — uns quatro rapazes — riam, debochados, todos visivelmente embriagados.
Eu jamais deixaria Clara ficar ali. Nem por vontade dela.

— Você acha mesmo que está em condições de colocá-la em perigo, do jeito que está? — disparei, já tão próxima que podia sentir o álcool evaporando da respiração dela.

— Quem vai dizer isso não é você! — respondeu, arrogante, tentando me medir com o olhar.

Aquilo me tirou do eixo. Me aproximei mais um passo, tão perto que bastava um movimento em falso para aquilo virar outra coisa. Mas antes que eu dissesse algo, Clara entrou no meio.

— Vê, por favor… — pediu ela, com a mão no meu abdômen, me afastando suavemente. — Vamos sair daqui. Depois eu resolvo com ela.

Tentei respirar, mas o toque dela — quente, firme — não ajudava.
Depois ela resolve com ela?

Essas palavras me atravessaram. O “depois” me corroeu mais do que a cena toda.

Olhei pra Clara como se ela tivesse acabado de me trair só por dizer aquilo.
Ela percebeu. E talvez tenha entendido. Porque o que fez em seguida me desmontou: segurou minha cintura, forte, e me empurrou dali, como quem quer conter uma fera antes que ela faça besteira.

O toque dela. O cheiro. O calor.
Tudo em mim se bagunçou.
Saí em direção ao carro, mas nem percebi o quanto estava tensa até ouvir a voz da outra me chamar de volta.

— Espera! — gritou Elise, com o dedo apontado em nossa direção. — Vocês… estão juntas?

Clara travou. Eu vi.
E por um instante, ela não soube o que responder.
Talvez nem houvesse resposta possível.
Mas eu, cansada daquele jogo, cansada de ver os outros ditando o que eu devia sentir, respondi antes dela:

— Exatamente. — disse, firme, abrindo a porta do carro.

— Vamos, Clara. — repeti, sem paciência.
Ela hesitou, e eu só precisei de um olhar para fazê-la entrar.

Bati a porta com força, o som seco ecoou na tua quase vazia.

Do lado de fora, risadas; do lado de dentro, o silêncio pesado de tudo o que não dissemos.

Apertei o volante, tentando disfarçar a respiração acelerada.

E no reflexo do vidro, vi Clara olhando pra mim — o susto e o desespero misturados no mesmo olhar.
Por um segundo, pensei em falar algo. Mas não.
Porque se eu falasse… eu não conseguiria parar.

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