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quinta-feira, 9 de outubro de 2025

O acaso a meu favor - Página 64

Continuaçao Verônica...

Ao pensar, pensar e pensar… decidi criar alguma maneira de me desculpar pelo pequeno — e, convenhamos, nada profissional — gesto que tive mais cedo com Clara.

O dia passou num piscar de olhos. Clara, junto com os rapazes, foi impecável: em menos de três horas, conseguiram organizar, empilhar e precificar todas as mercadorias do novo açougue.
Reconheço — a equipe foi admirável. Mas ela… ela sempre se destaca.

Enquanto reviso alguns relatórios, percebo Clara em outra seção, concentrada, limpando e reorganizando as prateleiras. O jeito firme, o olhar atento, a calma quase irritante de quem faz tudo bem feito sem esforço algum.

Estamos a poucos dias de julho — a temida alta temporada em Caldas. Tenebrosa para os funcionários, que mal respiram, e lucrativa para nós, empresários.
Ironias do capitalismo, eu diria.

Olho para o relógio: 12h45. Hora do almoço.
Igor ainda não voltou, e pelo ritmo da ligação com Lia, duvido que volte tão cedo.

Pego o telefone e ligo para um dos muitos restaurantes da cidade, pedindo as marmitas para o pessoal que ficou e para os que irão dobrar o turno.

E é aí que o pensamento me atinge como um soco.
Não havia necessidade de colocar Clara hoje no segundo horário.

— Meu Deus... como sou horrível. — murmuro, entre um suspiro e um arrependimento mal disfarçado.

Mas, ao lembrar da cena mais cedo — dos olhos daquela mulher, a tal Elise, percorrendo Clara de cima a baixo —, sinto o sangue ferver outra vez.

Não posso permitir brechas.
Não com ela.
Não com ninguém.

Só de pensar naquela mulher olhando Clara daquela forma, meus punhos se fecham, e uma chama ácida me sobe pelo peito.

— Ridículo… — sussurro, tentando rir de mim mesma, mas o riso morre antes de nascer.

Não sei o que é pior: o ciúme em si, ou o fato de saber exatamente o que ele significa.

Ainda estava afundada nos meus próprios pensamentos quando ouvi três batidas leves na porta.

— Com licença… — a voz dela.

Clara.

Meu corpo reagiu antes da minha razão. Endireitei a postura, ajeitei o decote da minha blusa e limpei a garganta, como se o gesto pudesse apagar o que se passava na minha cabeça segundos antes.

Ela entrou com uma pasta nas mãos e um sorriso tímido — desses que parecem inocentes, mas carregam um perigo silencioso.

— O Augusto pediu pra eu trazer os comprovantes das últimas notas — disse, estendendo os papéis.

— Certo — murmurei, tentando soar natural, sem sucesso. Meus dedos roçaram nos dela ao pegar os documentos, e o toque breve pareceu tempo demais.

Por um instante, ficamos ali, caladas.
Os olhos dela se prenderam nos meus, e juro que o ar do escritório ficou mais pesado.

Havia algo naquele olhar... uma dúvida, talvez. Ou medo.
Mas também havia vontade.

E eu percebi — naquele segundo, com a mesma clareza com que se percebe o fogo prestes a escapar do controle — que ela sentia o mesmo.

Clara desviou o olhar primeiro, mordendo o canto do lábio como quem se censura. Eu, por outro lado, lutei para não sorrir.
A postura dela me entregava mais do que qualquer palavra: o jeito como segurava a pasta com força, como respirava rápido demais, como evitava erguer o rosto outra vez.

— Está... tudo certo por aqui? — perguntou, quebrando o silêncio.

— Está, sim. — respondi. — Só estou... cansada.

Ela assentiu, mas o olhar, ah, esse dizia outra coisa. Dizia “eu também”.

E, por um instante, senti vontade de confessar tudo — de admitir que meu cansaço não era dos relatórios, e sim dessa guerra silenciosa entre o que devo e o que quero.

Mas não disse nada.
Nem ela.

O som do relógio na parede foi o único a preencher o espaço entre nós. O tempo, cruel, esticava-se como se zombasse da nossa covardia.

Quando finalmente deu um passo para trás, a distância pareceu maior do que realmente era.

— Qualquer coisa... estarei lá fora. — disse, quase num sussurro, antes de sair.

Fiquei observando a porta se fechar.
E, pela primeira vez, tive certeza do que venho tentando negar.

Ela sente.
Tanto quanto eu.
E talvez esse seja o verdadeiro problema.

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