sexta-feira, 28 de novembro de 2025

O acaso a meu favor - Página 74

 Continuação — O beijo… por Verônica

O “quase” entre nossas bocas dura longos segundos — segundos que esticam o mundo, que dilatam o ar ao nosso redor, que fazem meu peito doer de tanta vontade contida.

Clara respira bem perto, tão perto que sinto o calor do seu exalar tocar minha boca antes que ela toque de fato. E esse simples detalhe… esse pequeno roçar de ar quente… já desmonta toda a minha postura.

Minha mão aperta a cintura dela, puxando-a milímetros a mais.
Ela reage arqueando o corpo contra o meu — suave, involuntário, urgente.

E então, muito devagar, encosto minha boca na dela.

Não é um beijo imediato.
É primeiro um toque leve, quase um teste.
Um deslizar de lábios sobre lábios, tão sutil que mais parece um suspiro partilhado do que um toque real.

Mas Clara…
Clara responde como se estivesse esperando exatamente aquilo.

A respiração dela falha, e ela tenta seguir minha boca — mas eu não deixo. Ainda não. Me afasto só um fio de distância, o suficiente para sentir o corpo dela reclamar desse vazio.

Ela solta um som baixo, quase um gemido contido, e segura meu rosto com as duas mãos, como se tivesse medo que eu fugisse.

— Verônica… — ela repete, só que agora é mais grave, mais carregado de tudo o que ela segurou até aqui.

Essa forma de dizer meu nome me quebra.
Meu controle vai embora.

Volto a encostar minha boca na dela, dessa vez com mais certeza, mais fome.
Ainda devagar — mas não mais tímido.

Os lábios dela são quentes, macios, e ela me beija como alguém que precisava disso para respirar. A mão dela sobe pela minha nuca, os dedos entrelaçando-se no meu cabelo, puxando leve, guiando. Sinto uma onda quente subir pela minha coluna inteira.

Minhas duas mãos sobem lentamente pela lateral do seu corpo, os dedos explorando cada centímetro, sentindo o arrepio acender sob minha pele.
Cada toque parece acender outro nela.
E cada arrepio dela acende algo em mim.

O beijo aprofunda um pouco quando ela abre a boca devagar, como um convite silencioso — e eu o aceito. Nossas respirações se misturam num ritmo confuso, urgente e suave ao mesmo tempo, como se estivéssemos descobrindo o outro pela primeira vez.

Sinto o coração dela bater rápido contra meu peito.
Sinto a mão dela tremer um pouco na minha nuca.
Sinto que ela está entregue — não só ao beijo, mas ao que ele significa.

Eu afasto a boca só um segundo, apenas para respirar ao lado da dela.
Minhas palavras saem baixas, arranhando o silêncio:

— Eu queria isso há tanto tempo…

Clara encosta a testa na minha, a respiração quente batendo nos meus lábios.

— Então não para — ela sussurra, com um sorriso que me destrói e me reconstrói na mesma hora.

E quando a beijo novamente, com mais profundidade e mais calma — é como se o mundo tivesse sido feito só para aquele momento.
Só para nós duas.
Só para esse beijo que finalmente aconteceu… e que promete tudo o que vem depois.


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O acaso a meu favor - Página 73

Por Verônica… (continuação)

Ao ver aquele sinal — os olhos dela descendo para minha boca, a respiração presa — sinto meu corpo inteiro responder antes mesmo da minha razão. Aos poucos, deslizo minhas mãos pela lateral dos braços dela. E não só percebo… eu sinto.

O arrepio.
O tremor.
A entrega.

Quando olho para o rosto dela, encontro seus olhos fechados e um sorriso que, honestamente, me desmonta. Um sorriso de quem desejou esse momento tanto quanto eu — talvez até mais.
É o sorriso de quem finalmente chegou em casa.

Aproximo o rosto devagar e encosto na curva do pescoço dela. O toque é leve… mas o impacto é devastador. Naquele exato instante, sou arrancada do mundo como eu conhecia e jogada em outro, onde só existe ela.
E me pergunto:
Como vivi tanto tempo sem isso?

Quando “acordo” desse transe, percebo os braços dela ao redor dos meus ombros, me puxando para ainda mais perto. E aí eu entendo: ela está me deixando acessar tudo.
O pescoço.
A pele macia.
O cheiro quente que parece feito para me enlouquecer.

Por instinto — e por necessidade — a puxo com delicadeza, arrastando-a até que nossas costas encontrem a lataria do carro. Ela ri, uma risada solta, linda, encantadora.
E eu penso, com uma pontada quase dolorosa:
Pobre de quem nunca viu essa versão dela.

— Então… — começo, ainda com o rosto escondido no pescoço dela, quando a ouço perguntar, atrevida:

— O que achou do meu cheiro?

Se ela soubesse o estrago que essa pergunta faz…

Estou tão embriagada pelo perfume dela, tão tomada por tudo o que é Clara, que só consigo responder:

— Perfeito…

A palavra sai quase como um gemido, antes que minha boca substitua o cheiro por beijos. Beijos lentos, quentes, marcados pela vontade que eu passei tempo demais fingindo que não tinha.

Ela solta um suspiro abafado.
E esse som… Deus, esse som…

É como ganhar na loteria.
Como acender um fósforo dentro de um barril de pólvora.

Um sorriso surge nos meus lábios enquanto continuo beijando sua pele, e sinto algo novo, antigo, profundo despertar dentro de mim — um instinto que eu sempre mantive preso, mas que agora explode inteiro:

Eu a quero.
E dessa vez… eu não estou sozinha nisso.

...........................

Quando sinto o suspiro preso na garganta dela, algo dentro de mim simplesmente destrava. Como se aquele som fosse a chave de um cofre que eu nem sabia que existia. Minha boca ainda está encostada no seu pescoço quando percebo seus dedos apertando meus ombros, puxando-me um pouco mais, como se tivesse medo que eu fosse embora.

E eu não vou.
Não agora.
Não depois disso.

Minha mão sobe pelas costas dela, lenta, explorando, decorando cada curva por puro instinto. Sinto sua respiração falhar, sinto o corpo dela colar no meu, e pela primeira vez na noite inteira, é ela quem perde o controle.

— Verônica… — ela sussurra, e o jeito que meu nome soa na boca dela quase me faz fechar os olhos. É suave, preciso… um pedido e uma confissão ao mesmo tempo.

Eu rio baixinho contra sua pele, porque aquela resposta… aquele arrepio… aquela entrega… é tudo que eu queria desde que a vi pela primeira vez hoje.

Levo meu rosto para perto do dela, ainda sem beijá-la, apenas deixando nossas bocas dividirem o mesmo ar.

Quase encosto, quase toco — e não toco.
Quero que ela sinta. Quero que ela deseje. Quero que ela peça.

— Você não tem ideia do que faz comigo — digo, num murmúrio rouco, quase um segredo.

Clara abre os olhos devagar, como se estivesse tentando voltar de algum lugar onde só eu a levei. O sorriso dela agora é outro — não é mais doce, nem tímido. É um sorriso perigoso. Um sorriso que entende o poder que tem.

— Então mostra — ela provoca, num tom baixo, firme, que me faz prender o ar.

E é aí que meu corpo inteiro responde antes mesmo de eu pensar.
Minha mão vai à sua cintura, puxando-a para mim com uma precisão que revela o que eu escondi por tanto tempo.
Ela solta outro suspiro, ainda mais quente, e encosta a testa na minha.

O mundo parece inclinar um pouco.

— Cuidado com o que você pede — aviso, com um sorriso torto, sentindo a adrenalina correr solta. — Eu costumo entregar.

Os olhos dela brilham, e eu sei que perdi.
Ou ganhei.
Depende do ponto de vista.

E quando nossas bocas finalmente se tocam — não é um beijo inteiro. É quase. Só o suficiente para prometer algo maior.

Mas o “quase” é tão elétrico, tão absurdo, que meu corpo inteiro treme por dentro, e eu sei que depois disso… nada entre nós voltará a ser normal.


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O acaso a meu favor - Página 72

Por Verônica…

Continuo dirigindo sem rumo, só ouvindo o som baixo do motor e a respiração tranquila dela ao meu lado. É estranho… Clara parece cada vez mais confortável perto de mim, como se o carro fosse um lugar seguro. Como se eu fosse. E isso me dá uma coragem que não sei controlar, um impulso que me puxa para mais perto dela do que eu deveria.

Até que me lembro de um lugar.

Um terreno afastado da cidade, no alto de uma estrada de terra. De lá, dá pra ver todas as luzes espalhadas, como se a cidade tivesse se deitado para dormir, mas decidido continuar brilhando só pra nós duas. Já levei algumas pessoas ali… mas nunca por esse motivo. Nunca com esse peso no peito.

Pego a estrada estreita e esburacada. Clara ergue as sobrancelhas.

— Onde você tá me levando, Verônica? — ela pergunta, com um riso nervoso que denuncia tudo.

Não a encaro de imediato — se ela me olha agora, percebe que estou tremendo. Que estou suando frio. Então estendo uma das mãos até sua perna e aperto de leve, tentando passar confiança quando na verdade estou à beira de perder o controle.

— Clara…

Estaciono o carro no ponto mais alto. A cidade se acende lá embaixo, respirando luz. Desligo o motor. O silêncio é tão intenso que parece nos envolver, empurrar nossos corpos um pouco mais próximos do que deveriam estar.

Clara olha pela janela, encantada.

— Nossa… é lindo.

Ao descermos do carro, ela admira o lugar como se estivesse vendo um segredo. E eu a observo. E percebo, sem espaço para dúvidas, que já me senti atraída por mulheres de todos os tipos — idades, estilos, temperamentos… tudo que faz uma mulher ser mulher.
Mas ela… essa menina me desmonta inteira com um sorriso.
Como esse agora, iluminado pela cidade lá embaixo.

Ela desvia o olhar, mordendo a boca para não sorrir demais. Esse gesto simples me rasga por dentro. Como se abrisse um espaço novo em mim, que só ela consegue tocar.

O ar frio passa entre nós, e Clara se aproxima sem perceber. É instintivo. Ou talvez… talvez seja eu.

Fico ao lado dela, observando a cidade, mas consciente demais do corpo dela a poucos centímetros do meu.

Ela abraça o próprio corpo e, ainda olhando as luzes, pergunta:

— Vê…

Segunda vez na noite que ela me chama assim. E, Deus… como esse apelido soa bonito vindo da boca dela.

— O que exatamente estamos fazendo aqui? — ela me olha com aquela confusão tão dela, aquele misto de inocência e intensidade que me faz perder o ar.

A pergunta dela faz a ansiedade que eu achei ter deixado no carro voltar com força. Ela me olha como se estivesse tentando me decifrar, e isso me desmonta.
Será que ela realmente não percebe?
Será que estou sozinha nisso?

Ela se coloca na minha frente — mais baixa, mais próxima — e eu encaro aqueles olhos castanhos que parecem querer me puxar inteira para dentro deles.

Sem pensar, uma das minhas mãos vai até seu rosto. Puxo uma mecha de cabelo para trás da orelha, mas minha mão não volta. Ela repousa no pescoço dela, quente, frágil, tão perto da pulsação acelerada.

E é aí que eu vejo.
Eu vejo.

Os olhos dela vacilam.
Depois descem.
Direto para a minha boca.

Meu coração dispara tão forte que sinto no meu próprio pescoço, no meu pulso, em todo lugar.

Nesse instante, eu entendo:

Ou eu falo agora o que sinto…

Ou finalmente cedo ao desejo que estou segurando desde o primeiro dia — e afogo tudo na boca dessa menina.

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segunda-feira, 24 de novembro de 2025

O acaso a meu favor - Página 71

Por Clara…

Ao ouvir o que ela pediu — pedido não, sentença — um sorriso nasce no canto da minha boca. Discreto. Pequeno. Invisível para ela, claro. Verônica nunca pode saber o quanto me afeta.

Enquanto seguimos em direção ao que eu acreditava ser minha casa, fico pensando em como minha vida virou completamente — da água para um bom vinho.
Até pouco tempo atrás, eu me arrastava por dias cinzentos, presa a um relacionamento com a Camila, convencida de que nunca superaria o fim. Que nunca mais confiaria em alguém.
E então… aparece Verônica.
Fria, metódica, incapaz de pedir por favor.
E, ainda assim, me obrigando — sim, obrigando — a confiar de novo.

Esse pensamento me faz sorrir mais.
Quase rio.

Me vejo sempre presa a situações que fogem do meu controle, mas desta vez… pela primeira vez… eu me sinto bem.
De um jeito que não sei explicar.
Mas sei que vem dela.

— Do que você está rindo?

A voz dela corta o ar, seca, desconfiada.
E naquele instante tudo o que levei semanas para reorganizar dentro de mim desmorona, porque… claro.
Uma mandona surge na minha vida e resolve bagunçar tudo outra vez.

Balanço a cabeça, negando.
“Nada importante." Ela não parece convencida. Apenas continua dirigindo, ainda emburrada, com aquela expressão dura que não admite contestação.

A vejo parar em frente a uma lanchonete bem conhecida no centro da cidade. Ainda com a cara emburrada, ela apenas murmura um “Me espere, já volto”. Eu, ainda me divertindo com a situação, apenas assinto com a cabeça e observo ao redor a pequena praça Mestre Orlando.

Não demorou muito. Ela, agora com a expressão menos fechada, abre a porta do carro e, de maneira ainda contida, diz:

— Comprei algo pra gente comer.

Vejo-a colocar as sacolas no banco de trás e seguir em direção ao que eu achava ser minha casa.

Depois de alguns minutos pela cidade, reconheço a avenida que leva até minha casa — mas vejo Verônica virar para o lado oposto.
Meu estômago aperta.

— Verônica, você passou da minha rua. — aviso, tentando não demonstrar o desconforto.

Ela mantém aquele olhar meio psicopata que faz quando está irritada: sobrancelhas tensas, maxilar travado, olhos fixos na estrada.
Mas sei que ela me ouviu.

Entramos em uma estrada mais afastada, a cidade ficando para trás.
Então ela finalmente vira o rosto para mim.
Os olhos encontram os meus, firmes, provocadores.

— O quê? Não me diga que está com medo de mim.

Engulo em seco.
Não por medo dela.
Mas porque não faço ideia de onde ela pretende me levar…

O carro segue pela estrada vazia, e a cidade já ficou pequena no retrovisor. A cada quilômetro, sinto meu coração bater mais forte, como se quisesse adiantar uma resposta que eu ainda não tenho.

Verônica não diz nada.
E isso, nela, é mais perigoso do que qualquer palavra.

O silêncio dela sempre parece cheio — como se estivesse calculando o mundo inteiro atrás daqueles olhos duros. Mas, agora, não é só isso.
Ela está… inquieta.
Tensa.
Quase vulnerável, embora jamais admitisse.

— Eu não estou com medo de você. — digo, mais para quebrar o ar pesado do que por coragem.

Verônica desvia o olhar da estrada por um segundo. Apenas um.

Mas é suficiente para me atravessar.

Há algo nos olhos dela… algo que queima e arrepia ao mesmo tempo.

Um desejo contido, uma preocupação que ela tenta mascarar, e esse jeito de me olhar como se quisesse me decifrar — ou me guardar.

Ela respira fundo, e a mão que antes estava rígida no volante relaxa, deslizando um pouco.
E então acontece — rápido, quase imperceptível.

Os dedos dela tocam os meus.

Não por acidente.
Não dessa vez.

Um toque suave, leve, mas firme o suficiente para que eu sinta cada nervo do meu braço desperto.
Meu corpo inteiro reage antes da minha cabeça entender.

Eu a encaro.

Ela finge que não percebe, mas o maxilar dela aperta; a respiração prende; o olhar dá aquela vacilada que já aprendi a reconhecer.

Ela está tentando ser fria.
Tentando manter o controle.
Mas o toque continua — e isso, vindo da Verônica, vale mais do que qualquer confissão.

— Clara… — ela diz meu nome de um jeito que nunca ouvi antes, grave, rouco, quase… íntimo.

Sinto meu estômago virar.

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quinta-feira, 20 de novembro de 2025

O acaso a meu favor - Página 70

Continuação Verônica…

Não demorei. Só quis tirá-la dali.
Daquela confusão. Daquele amontoado de vozes e risadas falsas que me davam náusea.

Dirigi sem pressa, mas também sem rumo. A estrada parecia se estender só para conter o silêncio entre nós. No primeiro sinal vermelho, o celular dela vibrou — insistente, desde o momento em que deixamos aquela rua.

Virei o rosto. Ela fez o mesmo.
Não sei o que me atravessou naquele instante, só sei que cada toque recusado era uma faísca em mim. Ciúmes.

Sim — ciúmes.

Chega de fingir que não é isso. Nem para mim mesma.

— Clara… — o nome escapa num sussurro áspero. Encosto a testa no volante, respiro fundo. — Como você se envolve com gente assim? Como confia tão fácil?

Ela se vira, e o olhar que antes era doce agora é uma lâmina.

— Você acha que eu tenho bola de cristal pra saber como as pessoas ficam depois de bêbadas?

A voz dela me corta. E ainda assim, é o som mais vivo que já ouvi.

— Deveria saber! — respondo, a garganta trêmula de raiva e medo. — É a sua segurança que está em jogo, não o seu achismo!

As palavras saem mais duras do que eu queria. Mas é isso que me destrói: o simples pensamento de vê-la em perigo, de perdê-la para algo — ou alguém — que eu não posso controlar.
E por um segundo, no reflexo do vidro, vejo meu próprio rosto — tenso, vulnerável — e entendo: não é raiva.
É sentimento disfarçado de comando.


Ao me ouvir tão abruptamente, ela, emburrada, cruzou os braços e voltou o rosto para a janela. Se não fosse pela situação, eu até acharia graça da birra; mas a realidade não era tão engraçada assim.

E, mais uma vez, no meio daquele silêncio, o celular dela tocou — e eu não consegui conter o tom:

— Pelo amor de Deus, Clara! — disse eu, exasperada, e a vi levar um susto.

— Você está esperando o quê? — perguntei, jogando o cabelo para trás com uma das mãos. — Para bloquear, apagar, sumir... com o número dessa mulher no seu celular?

Ela me encarou com um sorriso risonho e um pouco confuso; e só por isso, naquele instante, se eu tivesse coragem de estrangular aquela menina, eu teria.

Mas logo o meio sorriso dela se desfez. Vi Clara abrir as mensagens diante de mim, os olhos percorrendo-as com rapidez, e então dizer, com a voz baixa e serena:

— Obrigada por ter me tirado daquela confusão.

Aquilo me desarmou por completo. Não esperava que ela cedesse tão fácil. Minha respiração se descompassou de um jeito ridículo, e só então percebi que o carro ainda estava parado no meio da rua. Por sorte, era tarde, e o trânsito já havia desaparecido.

Ela mantinha o olhar baixo, envergonhada, e, por um instante, aquilo fez algo dentro de mim afrouxar. Aquele ar doce e arrependido que ela fazia sem perceber… Deus, como é que alguém consegue me tirar o chão só por baixar a cabeça?

— E desculpa ter te envolvido nisso... — ela completou, sincera, e o som da voz dela me atingiu como um pedido de paz que eu não sabia se queria aceitar.

Senti minha respiração voltar ao ritmo normal, e, antes que perdesse o controle de novo, peguei a mochila do colo dela. Clara me olhou, sem entender, e apenas levantou os braços num gesto automático. Coloquei a mochila no banco de trás, depois alcancei o celular que estava no painel.

Sem dizer nada, entreguei o aparelho a ela, batendo-o levemente contra o peito dela — não com força, mas com firmeza.

— Resolve esse seu problema primeiro… — falei, num tom baixo e cortante. — E depois você se resolve comigo.

Ficamos ali, em silêncio. Só o som do motor e o eco da minha própria voz no ar. Ela me olhava com uma mistura de confusão e curiosidade, e eu… eu tentava não ceder à vontade absurda de puxá-la pela gola e acabar de vez com aquela distância.

Mas não. Ainda não. Primeiro, ela precisava entender com quem estava lidando.


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domingo, 9 de novembro de 2025

O acaso a meu favor - Página 69

Por Verônica…

A tarde e a noite se arrastaram entre planilhas, atendimentos e reuniões que eu mal consegui registrar.
O relógio parecia zombar de mim, girando em círculos lentos, enquanto minha cabeça teimava em voltar sempre para o mesmo ponto: Clara.

A conversa que tivemos — o jeito como ela falou de amor, de perda, de acaso — ficou reverberando dentro de mim como uma música que não se cala.

E o pior: me peguei sorrindo sozinha mais de uma vez, lembrando das caretas que ela fazia tentando entender os gráficos.
Que droga. Eu, sorrindo feito uma idiota por causa de alguém que trabalha pra mim.

Respiro fundo, tentando me concentrar no relatório à frente.
Olho pela grande janela de vidro fumê que dá visão total ao mercado, e observo o movimento apressado dos funcionários, todos tentando encerrar o dia o mais rápido possível.

Já estávamos na reta final do expediente, todos exaustos, mas ainda empenhados em dar o melhor de si para o dia seguinte começar sem tantos ajustes.

Vejo Clara, juntamente com os rapazes, carregando caixas e sacos de lixo para o descarte. E, mais uma vez, deixo escapar uma risada nasal — essa menina parece ter uma energia que desafia o próprio cansaço.

Passo pelo açougue para conferir o fechamento.

— Bruno, tudo bem por aqui? — pergunto, mais por hábito do que por desconfiança.

— Tudo sob controle, dona Verônica. — responde ele, confiante.

Aceno, satisfeita, e continuo o trajeto, passando por cada corredor, checando prateleiras, iluminação e limpeza. Parte da rotina, mas também uma forma de organizar meus pensamentos — ou tentar.

Por ser o primeiro dia do açougue aberto, redobro o cuidado. Amanhã, Bruno já começa o turno no horário fixo, e espero que se mantenha nesse ritmo.

Enquanto caminho pelos corredores, avisto o motivo dos meus conflitos.
Clara.

Ela estava no caixa, concentrada, ajudando as meninas com o fechamento do sistema. A expressão séria, a postura focada — e mesmo assim, aquele sorriso leve de quem gosta do que faz.

Chego perto, e nenhuma das duas nota minha presença de imediato.

— Tudo certo aí, meninas? — pergunto num tom leve.

Clara levanta o rosto e sorri. — Tudo sim, Verônica.

— Ótimo. Assim conseguimos ir pra casa o mais rápido possível, não é? — brinco, e ambas riem, cansadas, mas contentes.

Os rapazes começam a apagar as luzes, e logo só resta o brilho dos caixas. Clara termina de conferir tudo e me entrega os dois envelopes com os fechamentos do dia — organizados, como sempre.

As meninas se despedem e vão embora.
Só nós duas ficamos.

Clara tem o hábito de me esperar do lado de fora, até eu trancar o portão e entrar no carro. Sempre ofereço carona, e quase sempre ela recusa, dizendo que gosta de andar um pouco. “Pra pensar na vida”, ela costuma dizer.

Guardo os envelopes, desligo computadores, ar-condicionado e luzes. Estou prestes a sair quando ouço vozes altas vindo da rua — um grupo de jovens, rindo alto, claramente embriagados.

Mas o que me fez congelar não foi o barulho.
Foi ouvir a voz dela.

Clara.
E entre as risadas, uma outra voz, feminina, firme, carregada de familiaridade.

Essa tal, Elise.

Meu corpo inteiro reagiu antes que minha mente entendesse.
Um calor subiu até o rosto, e o ar pareceu rarear.

Deixo a bolsa sobre o balcão e caminho até a porta, os passos acelerados, o coração descompassado.
E, lá fora, a cena que se desenhava já era o suficiente para me fazer perder a razão.

Clara estava do lado de fora, parada na calçada com o uniforme ainda amassado do expediente.
A rua estava parcialmente iluminada pelos postes, e o grupo que a cercava parecia ter acabado de sair de algum bar próximo. Risadas, vozes arrastadas, gestos amplos.
Mas o meu olhar encontrou só uma pessoa.

Casaco de couro, sorriso atrevido, o tipo de presença que enche o espaço como um perfume forte.
E ali, ela falava com Clara de um jeito que me fez querer atravessar o vidro e colocá-la dentro do carro à força.

— Mas está tarde… — ouvi Clara dizer, num tom leve, quase risonho.

E então Elise respondeu, com aquela insolência natural que só quem conhece os limites gosta de testá-los:

— Eu te levo em casa. Toma um banho, se arruma, e a gente se diverte um pouco…

Foi o suficiente.
O sangue ferveu.
Nem pensei. Só fui.

Empurrei a porta e atravessei o pequeno espaço entre o mercado e a calçada com passos firmes demais para quem fingia calma.
O ar noturno bateu no meu rosto, mas não serviu pra esfriar nada.

Clara me olhou surpresa, o grupo se calou por um instante — aquele tipo de silêncio que antecede um desconforto.

— Clara — disse, seca. — Está pronta? Te deixo em casa.
Não foi um convite. Foi uma sentença.

Ela piscou algumas vezes, confusa, e depois assentiu devagar, num gesto quase tímido.

Ao ouvir a confirmação que eu precisava, abri a porta. Mas parece que a tal Elise não gostou do meu tom. Ao olhar para Clara, e já à ver indo em direção ao meu carro, ela solta: 

— Você só vai se quiser, Clara! — disse, a voz alterada, e a mão dela, firme demais, segurava o pulso de Clara como se a possuísse.

Foi automático. Senti o sangue ferver. Em um segundo, já estava diante das duas, tirando Clara daquele toque que me incomodava como fogo na pele.

— Como é que é? — soltei, num tom baixo, mas cortante, me colocando entre elas.

Não era ciúme. Pelo menos, não queria que fosse. Era instinto. Proteção. Aquela mulher estava alterada, bêbada, talvez drogada, e o grupo ao redor — uns quatro rapazes — riam, debochados, todos visivelmente embriagados.
Eu jamais deixaria Clara ficar ali. Nem por vontade dela.

— Você acha mesmo que está em condições de colocá-la em perigo, do jeito que está? — disparei, já tão próxima que podia sentir o álcool evaporando da respiração dela.

— Quem vai dizer isso não é você! — respondeu, arrogante, tentando me medir com o olhar.

Aquilo me tirou do eixo. Me aproximei mais um passo, tão perto que bastava um movimento em falso para aquilo virar outra coisa. Mas antes que eu dissesse algo, Clara entrou no meio.

— Vê, por favor… — pediu ela, com a mão no meu abdômen, me afastando suavemente. — Vamos sair daqui. Depois eu resolvo com ela.

Tentei respirar, mas o toque dela — quente, firme — não ajudava.
Depois ela resolve com ela?

Essas palavras me atravessaram. O “depois” me corroeu mais do que a cena toda.

Olhei pra Clara como se ela tivesse acabado de me trair só por dizer aquilo.
Ela percebeu. E talvez tenha entendido. Porque o que fez em seguida me desmontou: segurou minha cintura, forte, e me empurrou dali, como quem quer conter uma fera antes que ela faça besteira.

O toque dela. O cheiro. O calor.
Tudo em mim se bagunçou.
Saí em direção ao carro, mas nem percebi o quanto estava tensa até ouvir a voz da outra me chamar de volta.

— Espera! — gritou Elise, com o dedo apontado em nossa direção. — Vocês… estão juntas?

Clara travou. Eu vi.
E por um instante, ela não soube o que responder.
Talvez nem houvesse resposta possível.
Mas eu, cansada daquele jogo, cansada de ver os outros ditando o que eu devia sentir, respondi antes dela:

— Exatamente. — disse, firme, abrindo a porta do carro.

— Vamos, Clara. — repeti, sem paciência.
Ela hesitou, e eu só precisei de um olhar para fazê-la entrar.

Bati a porta com força, o som seco ecoou na tua quase vazia.

Do lado de fora, risadas; do lado de dentro, o silêncio pesado de tudo o que não dissemos.

Apertei o volante, tentando disfarçar a respiração acelerada.

E no reflexo do vidro, vi Clara olhando pra mim — o susto e o desespero misturados no mesmo olhar.
Por um segundo, pensei em falar algo. Mas não.
Porque se eu falasse… eu não conseguiria parar.

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O acaso a meu favor - Página 74

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