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sexta-feira, 28 de novembro de 2025

O acaso a meu favor - Página 74

 Continuação — O beijo… por Verônica

O “quase” entre nossas bocas dura longos segundos — segundos que esticam o mundo, que dilatam o ar ao nosso redor, que fazem meu peito doer de tanta vontade contida.

Clara respira bem perto, tão perto que sinto o calor do seu exalar tocar minha boca antes que ela toque de fato. E esse simples detalhe… esse pequeno roçar de ar quente… já desmonta toda a minha postura.

Minha mão aperta a cintura dela, puxando-a milímetros a mais.
Ela reage arqueando o corpo contra o meu — suave, involuntário, urgente.

E então, muito devagar, encosto minha boca na dela.

Não é um beijo imediato.
É primeiro um toque leve, quase um teste.
Um deslizar de lábios sobre lábios, tão sutil que mais parece um suspiro partilhado do que um toque real.

Mas Clara…
Clara responde como se estivesse esperando exatamente aquilo.

A respiração dela falha, e ela tenta seguir minha boca — mas eu não deixo. Ainda não. Me afasto só um fio de distância, o suficiente para sentir o corpo dela reclamar desse vazio.

Ela solta um som baixo, quase um gemido contido, e segura meu rosto com as duas mãos, como se tivesse medo que eu fugisse.

— Verônica… — ela repete, só que agora é mais grave, mais carregado de tudo o que ela segurou até aqui.

Essa forma de dizer meu nome me quebra.
Meu controle vai embora.

Volto a encostar minha boca na dela, dessa vez com mais certeza, mais fome.
Ainda devagar — mas não mais tímido.

Os lábios dela são quentes, macios, e ela me beija como alguém que precisava disso para respirar. A mão dela sobe pela minha nuca, os dedos entrelaçando-se no meu cabelo, puxando leve, guiando. Sinto uma onda quente subir pela minha coluna inteira.

Minhas duas mãos sobem lentamente pela lateral do seu corpo, os dedos explorando cada centímetro, sentindo o arrepio acender sob minha pele.
Cada toque parece acender outro nela.
E cada arrepio dela acende algo em mim.

O beijo aprofunda um pouco quando ela abre a boca devagar, como um convite silencioso — e eu o aceito. Nossas respirações se misturam num ritmo confuso, urgente e suave ao mesmo tempo, como se estivéssemos descobrindo o outro pela primeira vez.

Sinto o coração dela bater rápido contra meu peito.
Sinto a mão dela tremer um pouco na minha nuca.
Sinto que ela está entregue — não só ao beijo, mas ao que ele significa.

Eu afasto a boca só um segundo, apenas para respirar ao lado da dela.
Minhas palavras saem baixas, arranhando o silêncio:

— Eu queria isso há tanto tempo…

Clara encosta a testa na minha, a respiração quente batendo nos meus lábios.

— Então não para — ela sussurra, com um sorriso que me destrói e me reconstrói na mesma hora.

E quando a beijo novamente, com mais profundidade e mais calma — é como se o mundo tivesse sido feito só para aquele momento.
Só para nós duas.
Só para esse beijo que finalmente aconteceu… e que promete tudo o que vem depois.


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O acaso a meu favor - Página 73

Por Verônica… (continuação)

Ao ver aquele sinal — os olhos dela descendo para minha boca, a respiração presa — sinto meu corpo inteiro responder antes mesmo da minha razão. Aos poucos, deslizo minhas mãos pela lateral dos braços dela. E não só percebo… eu sinto.

O arrepio.
O tremor.
A entrega.

Quando olho para o rosto dela, encontro seus olhos fechados e um sorriso que, honestamente, me desmonta. Um sorriso de quem desejou esse momento tanto quanto eu — talvez até mais.
É o sorriso de quem finalmente chegou em casa.

Aproximo o rosto devagar e encosto na curva do pescoço dela. O toque é leve… mas o impacto é devastador. Naquele exato instante, sou arrancada do mundo como eu conhecia e jogada em outro, onde só existe ela.
E me pergunto:
Como vivi tanto tempo sem isso?

Quando “acordo” desse transe, percebo os braços dela ao redor dos meus ombros, me puxando para ainda mais perto. E aí eu entendo: ela está me deixando acessar tudo.
O pescoço.
A pele macia.
O cheiro quente que parece feito para me enlouquecer.

Por instinto — e por necessidade — a puxo com delicadeza, arrastando-a até que nossas costas encontrem a lataria do carro. Ela ri, uma risada solta, linda, encantadora.
E eu penso, com uma pontada quase dolorosa:
Pobre de quem nunca viu essa versão dela.

— Então… — começo, ainda com o rosto escondido no pescoço dela, quando a ouço perguntar, atrevida:

— O que achou do meu cheiro?

Se ela soubesse o estrago que essa pergunta faz…

Estou tão embriagada pelo perfume dela, tão tomada por tudo o que é Clara, que só consigo responder:

— Perfeito…

A palavra sai quase como um gemido, antes que minha boca substitua o cheiro por beijos. Beijos lentos, quentes, marcados pela vontade que eu passei tempo demais fingindo que não tinha.

Ela solta um suspiro abafado.
E esse som… Deus, esse som…

É como ganhar na loteria.
Como acender um fósforo dentro de um barril de pólvora.

Um sorriso surge nos meus lábios enquanto continuo beijando sua pele, e sinto algo novo, antigo, profundo despertar dentro de mim — um instinto que eu sempre mantive preso, mas que agora explode inteiro:

Eu a quero.
E dessa vez… eu não estou sozinha nisso.

...........................

Quando sinto o suspiro preso na garganta dela, algo dentro de mim simplesmente destrava. Como se aquele som fosse a chave de um cofre que eu nem sabia que existia. Minha boca ainda está encostada no seu pescoço quando percebo seus dedos apertando meus ombros, puxando-me um pouco mais, como se tivesse medo que eu fosse embora.

E eu não vou.
Não agora.
Não depois disso.

Minha mão sobe pelas costas dela, lenta, explorando, decorando cada curva por puro instinto. Sinto sua respiração falhar, sinto o corpo dela colar no meu, e pela primeira vez na noite inteira, é ela quem perde o controle.

— Verônica… — ela sussurra, e o jeito que meu nome soa na boca dela quase me faz fechar os olhos. É suave, preciso… um pedido e uma confissão ao mesmo tempo.

Eu rio baixinho contra sua pele, porque aquela resposta… aquele arrepio… aquela entrega… é tudo que eu queria desde que a vi pela primeira vez hoje.

Levo meu rosto para perto do dela, ainda sem beijá-la, apenas deixando nossas bocas dividirem o mesmo ar.

Quase encosto, quase toco — e não toco.
Quero que ela sinta. Quero que ela deseje. Quero que ela peça.

— Você não tem ideia do que faz comigo — digo, num murmúrio rouco, quase um segredo.

Clara abre os olhos devagar, como se estivesse tentando voltar de algum lugar onde só eu a levei. O sorriso dela agora é outro — não é mais doce, nem tímido. É um sorriso perigoso. Um sorriso que entende o poder que tem.

— Então mostra — ela provoca, num tom baixo, firme, que me faz prender o ar.

E é aí que meu corpo inteiro responde antes mesmo de eu pensar.
Minha mão vai à sua cintura, puxando-a para mim com uma precisão que revela o que eu escondi por tanto tempo.
Ela solta outro suspiro, ainda mais quente, e encosta a testa na minha.

O mundo parece inclinar um pouco.

— Cuidado com o que você pede — aviso, com um sorriso torto, sentindo a adrenalina correr solta. — Eu costumo entregar.

Os olhos dela brilham, e eu sei que perdi.
Ou ganhei.
Depende do ponto de vista.

E quando nossas bocas finalmente se tocam — não é um beijo inteiro. É quase. Só o suficiente para prometer algo maior.

Mas o “quase” é tão elétrico, tão absurdo, que meu corpo inteiro treme por dentro, e eu sei que depois disso… nada entre nós voltará a ser normal.


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O acaso a meu favor - Página 72

Por Verônica…

Continuo dirigindo sem rumo, só ouvindo o som baixo do motor e a respiração tranquila dela ao meu lado. É estranho… Clara parece cada vez mais confortável perto de mim, como se o carro fosse um lugar seguro. Como se eu fosse. E isso me dá uma coragem que não sei controlar, um impulso que me puxa para mais perto dela do que eu deveria.

Até que me lembro de um lugar.

Um terreno afastado da cidade, no alto de uma estrada de terra. De lá, dá pra ver todas as luzes espalhadas, como se a cidade tivesse se deitado para dormir, mas decidido continuar brilhando só pra nós duas. Já levei algumas pessoas ali… mas nunca por esse motivo. Nunca com esse peso no peito.

Pego a estrada estreita e esburacada. Clara ergue as sobrancelhas.

— Onde você tá me levando, Verônica? — ela pergunta, com um riso nervoso que denuncia tudo.

Não a encaro de imediato — se ela me olha agora, percebe que estou tremendo. Que estou suando frio. Então estendo uma das mãos até sua perna e aperto de leve, tentando passar confiança quando na verdade estou à beira de perder o controle.

— Clara…

Estaciono o carro no ponto mais alto. A cidade se acende lá embaixo, respirando luz. Desligo o motor. O silêncio é tão intenso que parece nos envolver, empurrar nossos corpos um pouco mais próximos do que deveriam estar.

Clara olha pela janela, encantada.

— Nossa… é lindo.

Ao descermos do carro, ela admira o lugar como se estivesse vendo um segredo. E eu a observo. E percebo, sem espaço para dúvidas, que já me senti atraída por mulheres de todos os tipos — idades, estilos, temperamentos… tudo que faz uma mulher ser mulher.
Mas ela… essa menina me desmonta inteira com um sorriso.
Como esse agora, iluminado pela cidade lá embaixo.

Ela desvia o olhar, mordendo a boca para não sorrir demais. Esse gesto simples me rasga por dentro. Como se abrisse um espaço novo em mim, que só ela consegue tocar.

O ar frio passa entre nós, e Clara se aproxima sem perceber. É instintivo. Ou talvez… talvez seja eu.

Fico ao lado dela, observando a cidade, mas consciente demais do corpo dela a poucos centímetros do meu.

Ela abraça o próprio corpo e, ainda olhando as luzes, pergunta:

— Vê…

Segunda vez na noite que ela me chama assim. E, Deus… como esse apelido soa bonito vindo da boca dela.

— O que exatamente estamos fazendo aqui? — ela me olha com aquela confusão tão dela, aquele misto de inocência e intensidade que me faz perder o ar.

A pergunta dela faz a ansiedade que eu achei ter deixado no carro voltar com força. Ela me olha como se estivesse tentando me decifrar, e isso me desmonta.
Será que ela realmente não percebe?
Será que estou sozinha nisso?

Ela se coloca na minha frente — mais baixa, mais próxima — e eu encaro aqueles olhos castanhos que parecem querer me puxar inteira para dentro deles.

Sem pensar, uma das minhas mãos vai até seu rosto. Puxo uma mecha de cabelo para trás da orelha, mas minha mão não volta. Ela repousa no pescoço dela, quente, frágil, tão perto da pulsação acelerada.

E é aí que eu vejo.
Eu vejo.

Os olhos dela vacilam.
Depois descem.
Direto para a minha boca.

Meu coração dispara tão forte que sinto no meu próprio pescoço, no meu pulso, em todo lugar.

Nesse instante, eu entendo:

Ou eu falo agora o que sinto…

Ou finalmente cedo ao desejo que estou segurando desde o primeiro dia — e afogo tudo na boca dessa menina.

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segunda-feira, 24 de novembro de 2025

O acaso a meu favor - Página 71

Por Clara…

Ao ouvir o que ela pediu — pedido não, sentença — um sorriso nasce no canto da minha boca. Discreto. Pequeno. Invisível para ela, claro. Verônica nunca pode saber o quanto me afeta.

Enquanto seguimos em direção ao que eu acreditava ser minha casa, fico pensando em como minha vida virou completamente — da água para um bom vinho.
Até pouco tempo atrás, eu me arrastava por dias cinzentos, presa a um relacionamento com a Camila, convencida de que nunca superaria o fim. Que nunca mais confiaria em alguém.
E então… aparece Verônica.
Fria, metódica, incapaz de pedir por favor.
E, ainda assim, me obrigando — sim, obrigando — a confiar de novo.

Esse pensamento me faz sorrir mais.
Quase rio.

Me vejo sempre presa a situações que fogem do meu controle, mas desta vez… pela primeira vez… eu me sinto bem.
De um jeito que não sei explicar.
Mas sei que vem dela.

— Do que você está rindo?

A voz dela corta o ar, seca, desconfiada.
E naquele instante tudo o que levei semanas para reorganizar dentro de mim desmorona, porque… claro.
Uma mandona surge na minha vida e resolve bagunçar tudo outra vez.

Balanço a cabeça, negando.
“Nada importante." Ela não parece convencida. Apenas continua dirigindo, ainda emburrada, com aquela expressão dura que não admite contestação.

A vejo parar em frente a uma lanchonete bem conhecida no centro da cidade. Ainda com a cara emburrada, ela apenas murmura um “Me espere, já volto”. Eu, ainda me divertindo com a situação, apenas assinto com a cabeça e observo ao redor a pequena praça Mestre Orlando.

Não demorou muito. Ela, agora com a expressão menos fechada, abre a porta do carro e, de maneira ainda contida, diz:

— Comprei algo pra gente comer.

Vejo-a colocar as sacolas no banco de trás e seguir em direção ao que eu achava ser minha casa.

Depois de alguns minutos pela cidade, reconheço a avenida que leva até minha casa — mas vejo Verônica virar para o lado oposto.
Meu estômago aperta.

— Verônica, você passou da minha rua. — aviso, tentando não demonstrar o desconforto.

Ela mantém aquele olhar meio psicopata que faz quando está irritada: sobrancelhas tensas, maxilar travado, olhos fixos na estrada.
Mas sei que ela me ouviu.

Entramos em uma estrada mais afastada, a cidade ficando para trás.
Então ela finalmente vira o rosto para mim.
Os olhos encontram os meus, firmes, provocadores.

— O quê? Não me diga que está com medo de mim.

Engulo em seco.
Não por medo dela.
Mas porque não faço ideia de onde ela pretende me levar…

O carro segue pela estrada vazia, e a cidade já ficou pequena no retrovisor. A cada quilômetro, sinto meu coração bater mais forte, como se quisesse adiantar uma resposta que eu ainda não tenho.

Verônica não diz nada.
E isso, nela, é mais perigoso do que qualquer palavra.

O silêncio dela sempre parece cheio — como se estivesse calculando o mundo inteiro atrás daqueles olhos duros. Mas, agora, não é só isso.
Ela está… inquieta.
Tensa.
Quase vulnerável, embora jamais admitisse.

— Eu não estou com medo de você. — digo, mais para quebrar o ar pesado do que por coragem.

Verônica desvia o olhar da estrada por um segundo. Apenas um.

Mas é suficiente para me atravessar.

Há algo nos olhos dela… algo que queima e arrepia ao mesmo tempo.

Um desejo contido, uma preocupação que ela tenta mascarar, e esse jeito de me olhar como se quisesse me decifrar — ou me guardar.

Ela respira fundo, e a mão que antes estava rígida no volante relaxa, deslizando um pouco.
E então acontece — rápido, quase imperceptível.

Os dedos dela tocam os meus.

Não por acidente.
Não dessa vez.

Um toque suave, leve, mas firme o suficiente para que eu sinta cada nervo do meu braço desperto.
Meu corpo inteiro reage antes da minha cabeça entender.

Eu a encaro.

Ela finge que não percebe, mas o maxilar dela aperta; a respiração prende; o olhar dá aquela vacilada que já aprendi a reconhecer.

Ela está tentando ser fria.
Tentando manter o controle.
Mas o toque continua — e isso, vindo da Verônica, vale mais do que qualquer confissão.

— Clara… — ela diz meu nome de um jeito que nunca ouvi antes, grave, rouco, quase… íntimo.

Sinto meu estômago virar.

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quinta-feira, 20 de novembro de 2025

O acaso a meu favor - Página 70

Continuação Verônica…

Não demorei. Só quis tirá-la dali.
Daquela confusão. Daquele amontoado de vozes e risadas falsas que me davam náusea.

Dirigi sem pressa, mas também sem rumo. A estrada parecia se estender só para conter o silêncio entre nós. No primeiro sinal vermelho, o celular dela vibrou — insistente, desde o momento em que deixamos aquela rua.

Virei o rosto. Ela fez o mesmo.
Não sei o que me atravessou naquele instante, só sei que cada toque recusado era uma faísca em mim. Ciúmes.

Sim — ciúmes.

Chega de fingir que não é isso. Nem para mim mesma.

— Clara… — o nome escapa num sussurro áspero. Encosto a testa no volante, respiro fundo. — Como você se envolve com gente assim? Como confia tão fácil?

Ela se vira, e o olhar que antes era doce agora é uma lâmina.

— Você acha que eu tenho bola de cristal pra saber como as pessoas ficam depois de bêbadas?

A voz dela me corta. E ainda assim, é o som mais vivo que já ouvi.

— Deveria saber! — respondo, a garganta trêmula de raiva e medo. — É a sua segurança que está em jogo, não o seu achismo!

As palavras saem mais duras do que eu queria. Mas é isso que me destrói: o simples pensamento de vê-la em perigo, de perdê-la para algo — ou alguém — que eu não posso controlar.
E por um segundo, no reflexo do vidro, vejo meu próprio rosto — tenso, vulnerável — e entendo: não é raiva.
É sentimento disfarçado de comando.


Ao me ouvir tão abruptamente, ela, emburrada, cruzou os braços e voltou o rosto para a janela. Se não fosse pela situação, eu até acharia graça da birra; mas a realidade não era tão engraçada assim.

E, mais uma vez, no meio daquele silêncio, o celular dela tocou — e eu não consegui conter o tom:

— Pelo amor de Deus, Clara! — disse eu, exasperada, e a vi levar um susto.

— Você está esperando o quê? — perguntei, jogando o cabelo para trás com uma das mãos. — Para bloquear, apagar, sumir... com o número dessa mulher no seu celular?

Ela me encarou com um sorriso risonho e um pouco confuso; e só por isso, naquele instante, se eu tivesse coragem de estrangular aquela menina, eu teria.

Mas logo o meio sorriso dela se desfez. Vi Clara abrir as mensagens diante de mim, os olhos percorrendo-as com rapidez, e então dizer, com a voz baixa e serena:

— Obrigada por ter me tirado daquela confusão.

Aquilo me desarmou por completo. Não esperava que ela cedesse tão fácil. Minha respiração se descompassou de um jeito ridículo, e só então percebi que o carro ainda estava parado no meio da rua. Por sorte, era tarde, e o trânsito já havia desaparecido.

Ela mantinha o olhar baixo, envergonhada, e, por um instante, aquilo fez algo dentro de mim afrouxar. Aquele ar doce e arrependido que ela fazia sem perceber… Deus, como é que alguém consegue me tirar o chão só por baixar a cabeça?

— E desculpa ter te envolvido nisso... — ela completou, sincera, e o som da voz dela me atingiu como um pedido de paz que eu não sabia se queria aceitar.

Senti minha respiração voltar ao ritmo normal, e, antes que perdesse o controle de novo, peguei a mochila do colo dela. Clara me olhou, sem entender, e apenas levantou os braços num gesto automático. Coloquei a mochila no banco de trás, depois alcancei o celular que estava no painel.

Sem dizer nada, entreguei o aparelho a ela, batendo-o levemente contra o peito dela — não com força, mas com firmeza.

— Resolve esse seu problema primeiro… — falei, num tom baixo e cortante. — E depois você se resolve comigo.

Ficamos ali, em silêncio. Só o som do motor e o eco da minha própria voz no ar. Ela me olhava com uma mistura de confusão e curiosidade, e eu… eu tentava não ceder à vontade absurda de puxá-la pela gola e acabar de vez com aquela distância.

Mas não. Ainda não. Primeiro, ela precisava entender com quem estava lidando.


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domingo, 5 de outubro de 2025

O acaso a meu favor - Página 60

Por Clara...

Não acredito que me distraí com meus pensamentos malucos e quase fui pega justamente pela causadora do meu embaraço. Ela ali, toda séria e concentrada, explicando nossas funções… e eu? Me perdi na beleza daquela mulher. Admito: quando fizeram essa criatura, quebraram a forma. É tanta beleza que Deus proibiu ter cópia. Não é justo com o resto da humanidade!

— Meu Deus, o que está havendo comigo?

Saí do meu mini vexame tentando parecer a pessoa mais normal do planeta. Peguei um copo de café, respirei fundo e fui direto para o que me designaram. Logo entendi por que me colocaram para ajudar na reposição dos frios e das bandejinhas de carne: até que o tal açougueiro tem mãos habilidosas… e um cuidado quase artístico com cada corte.

— É, bem que você disse que sabia cortar um bife bonito. — falei num tom de falsa provocação, só para quebrar o silêncio.

— Te disse… — ele respondeu com aquele ar superior de quem tem certeza absoluta de que nasceu para aquilo.

Revirei os olhos, mas logo desabei numa risadinha. Entre bandejas de mussarela, presunto, almôndegas bem organizadas e carnes embaladas a vácuo, a manhã foi passando num misto de trabalho e brincadeiras. A cada nova bandeja encaixada, parecia que estávamos montando uma vitrine de supermercado versão comédia romântica.

Eu tinha a nítida sensação de que os olhos de Verônica estavam sobre mim o tempo todo. Talvez fosse só coisa da minha cabeça… ou talvez ela estivesse mesmo conferindo se eu conseguia empilhar mussarela sem transformar tudo em um desastre.

Mas sério, ninguém precisa olhar tanto assim pra quem está só tentando não derrubar presunto, né?

E lá estava ela, toda concentrada e elegante, explicando detalhes que eu nunca teria imaginado sobre carnes e embutidos. Eu tentava me focar no trabalho, mas era impossível não notar: o jeito sério dela, o cuidado com cada bandeja… até parecia que o mundo parava um instante enquanto ela ajeitava uma almôndega.

Ótimo, Clara, agora além de atrapalhada, você também está suspirando mentalmente por alguém que provavelmente nem percebe que você existe.

Em alguns momentos, quando eu retribuía as brincadeiras do Bruno, sentia os olhos de Verônica me fuzilando de um jeito quase imperceptível. Quase.

Eu conhecia aquele olhar… ou pelo menos achava que conhecia. Aquele tipo de olhar que dizia: “Essa proximidade com ele, não está me agradando nem um pouco”. E, confesso, não era exatamente o tipo de reprovação que me deixava nervosa — era mais um friozinho estranho no estômago, misto de diversão e… algo que fazia meu coração bater mais rápido do que deveria.

Percebi que, de vez em quando, Verônica vinha até mim, me ajudando a organizar melhor as bandejas. Mas era sempre para cortar ou interromper as brincadeiras do Bruno comigo. Confesso que, no fundo, comecei a acreditar que ela estava com ciúmes da nossa aproximação repentina.

E que ciúmes adoráveis, pensei, tentando disfarçar o rubor subindo.

Sou muito fácil de fazer amizade. Converso com qualquer pessoa, mesmo que a conheça há poucas horas, como se a conhecesse há anos. Nem todo mundo entende isso, e muitas vezes acaba julgando mal — tanto quem está de fora quanto a pessoa com quem estou falando.

— Assim está bom? — perguntei a ela, com um fio de receio na voz, tentando não parecer desesperada por aprovação.

— Está muito bom. Está fazendo um bom trabalho. — Ela respondeu de maneira simples, quase sem empolgação, mas, juro, havia algo no jeito que disse isso que fez meu coração pular uma batida.

Ok, Clara, para de fantasiar… mas, sério, esse “muito bom” tem cheiro de ciúmes, não tem?

Espantei meus pensamentos e desci as escadas, encerrando de vez meu trabalho. Ao pisar no último degrau, um burburinho animado ecoou da entrada do mercado.

Não dei tanta atenção de início — afinal, por aqui sempre circulam pessoas de todos os tipos: das mais alegres às mais estressadas. Ainda assim, havia algo diferente naquela agitação, como se o ar carregasse uma expectativa incomum.


Verônica estava orientando Augusto em alguma ordem; ele já segurava o capacete e a chave da moto com firmeza. Aqui, na cidade de Caldas, é comum ver as pessoas circulando de moto em vez de carro. O ronco dos motores quase faz parte da paisagem, como se fosse a trilha sonora diária da cidade.

Observo enquanto ela entrega alguns papéis a ele e, em seguida, se afasta. Eu já me preparava para mergulhar de novo no silêncio do mercado, quando, de repente, meu nome ecoa pelo ar — tão carregado de saudade e entusiasmo que sinto um arrepio percorrer minha pele.


— E então, dona Clara... — viro-me, quase sem fôlego, em direção àquela voz que reconheceria em qualquer lugar. Meu coração dispara, como se cada batida fosse uma lembrança se impondo contra o presente. — Vou poder te levar embora para Brasília?


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sábado, 6 de setembro de 2025

O acaso a meu favor - Página 59

 Continuação  por Verônica....

Saindo do pequeno embaraço de Clara, peguei um copo descartável, coloquei um pouco de café e caminhei até meu irmão. Ele me lançou um olhar rápido e, ao perceber que Clara estava por perto, voltou-se para ela:

— Clara, você ficará com o Bruno para ajudá-lo a embalar e organizar as prateleiras do freezer… — começou.

Engoli um gole de café rápido demais e, inevitavelmente, engasguei. Uma tosse súbita me dominou, arrancando olhares surpresos.

— Tudo bem pra você? — meu irmão perguntou, inclinando-se levemente, o olhar cheio de preocupação.

Clara apenas assentiu, segurando o copo de café com um cuidado quase teatral, e eu mal pude deixar de notar o jeito que ela o segurava, como se fosse a coisa mais preciosa do mundo. Um pequeno detalhe, talvez, mas que me arrancou uma risadinha interna.

— Tudo bem, só… — tentei falar entre uma tosse e outra — apenas bebi o café rápido demais.

Ele franziu levemente a testa, ainda preocupado, enquanto eu já me recompunha, tentando recuperar a compostura.

Enquanto me acalmava, percebi Clara me observando de canto de olho, talvez com um misto de curiosidade e divertimento. Aquela simples situação — café, engasgo e risadas contidas — parecia ter transformado o galpão em palco de pequenas tensões engraçadas, sem que ninguém precisasse dizer uma palavra sobre o que realmente acontecia.

Voltei a respirar normalmente, segurando o copo com mais cuidado, e, por um instante, o silêncio entre nós três ficou apenas carregado de pequenas olhadas, gestos e distrações engraçadas. Nada explícito, nada declarado — apenas um momento leve, curioso, que deixava claro que Clara e eu ainda estávamos descobrindo algo uma sobre a outra, sem pressa, apenas observando.

Ao voltarmos para o mercado, encontrei a equipe já com a mão na massa — ou melhor, nos frios. E, claro, meus olhos foram direto para Clara.


Ela estava no açougue, ocupada com as tarefas que meu irmão havia designado: embalando os frios fatiados, pesando-os e organizando nas prateleiras do freezer. Cada movimento seu parecia eficiente e concentrado, mas eu me peguei observando cada gesto com uma atenção que não era totalmente consciente. A inclinação, a forma como ajustava os pacotes, até a maneira como o cabelo caía sobre o ombro… era quase obsessivo, e eu nem sabia direito por quê.

Pelo visto, os dois estavam se dando muito bem. Bem demais, para meu gosto. Observá-los interagindo de forma tão natural, com Clara rindo discretamente das piadas do Bruno e ajustando o trabalho com facilidade, me provocava uma mistura de desconforto, diversão e aquela curiosidade silenciosa que ainda não sabia bem como nomear..


Enquanto caminhava pelo espaço, tentando manter a postura de supervisora, percebi que qualquer gesto simples de Clara — uma inclinação, uma risadinha ou o modo como ajustava os pacotes — tinha o poder de tirar meu foco completamente. Eu me pegava lembrando de detalhes que provavelmente ninguém mais notaria, absorvendo cada pequeno movimento como se fosse parte de um quebra-cabeça que eu ainda não sabia decifrar.

Era engraçado e estranho ao mesmo tempo. Clara estava ali, fazendo seu trabalho, sem nenhuma consciência do efeito que causava em mim. Nada explícito, nada declarado… apenas uma observação quase obsessiva, curiosa, que me fazia rir por dentro enquanto tentava parecer séria para os demais.


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O acaso a meu favor - Página 58

 Por Verônica....

Enquanto explicava as tarefas do dia, percebi que, no fundo do galpão, ela não estava prestando a menor atenção. Seu olhar estava fixo… e, quando percebi onde exatamente, precisei me segurar para não rir.

Olhei diretamente para ela, depois para a direção que seus olhos apontavam, e confirmei minhas suspeitas. Então devolvi apenas um sorriso discreto com os olhos, como quem diz: te peguei.

A reação dela foi imediata: ficou sem jeito, vermelha, como se tivesse sido flagrada no pior dos crimes. Por dentro, eu mesma precisei conter a vontade de rir da cena. Era engraçado demais ver alguém implorar, em silêncio, por um buraco no chão para se esconder.

— Então, pessoal… — chamei a atenção de todos ali, ou quase todos — Esse é o Bruno, nosso novo colaborador. Ele ficará responsável pelo açougue.

Enquanto todos davam as boas-vindas, percebi Clara no fundo do galpão, olhando curiosa para Bruno. Por algum motivo, aquilo me deixou um pouco desconfortável, embora eu não conseguisse explicar exatamente por quê.

— Hoje, o Bruno irá desossar a peça bovina que chegou ontem. — Todos prestavam atenção, mas eu estava parcialmente distraída observando Clara.

Ela tentava alcançar a garrafa de café no topo da prateleira, esticando-se como se cada músculo pudesse conspirar a seu favor. Ficava na ponta dos pés, balançando levemente para frente e para trás, e eu juro que minha risada ameaçava escapar em plena reunião. Era impossível não admirar com tanta dedicação — e impossível não rir por dentro do desespero elegante da cena..

Deixei Igor com a palavra e fui ajudá-la antes que sua tentativa mirabolante terminasse em desastre. Meu irmão percebeu e apenas assentiu, sem imaginar o efeito que aquela simples garrafa e a determinação de Clara estavam causando em mim.

— Espera, Clara, deixa eu pegar isso pra você — disse, segurando a garrafa antes que ela tentasse de novo.

— Estava quase conseguindo! — respondeu, surpresa e um pouco emburrada, como se eu tivesse roubado seu momento de glória.

— Eu vi mesmo… — disse, rindo suavemente — Vi você olhando diretamente para… — mas parei, porque o modo como ela desviou o olhar me fez segurar outra risadinha. Havia algo engraçado naquela situação, e eu não queria estragar o momento.

— Vê… Verônica, eu… eu, bom… estava apenas… — gaguejou, tentando explicar, e eu agradeci mentalmente ao Igor por prender a atenção dos outros funcionários lá fora, impedindo que alguém testemunhasse nosso pequeno embaraço.

— Eu só estava prestando atenção ou… tentando acompanhar o que você dizia. — Suas palavras saíam meio atrapalhadas, e eu percebia, sem querer, como ela ficava desconcertada. Não pude evitar notar o charme que emanava de seu desespero: aquele olhar ainda preso no meu rosto me deixava totalmente vulnerável.

Para quebrar a tensão antes que alguém notasse, dei um passo atrás, contra minha própria vontade, tentando disfarçar a diversão e a curiosidade que me consumiam.

— Bom, dona Clara, não sei sobre o que você está falando, mas… — disse, apontando para uma cadeira abandonada no fundo do galpão, com um sorriso leve — Estava me referindo à cadeira.

Ela soltou um suspiro de alívio, claramente agradecida.

— Claro, a cadeira! — disse, mais calma agora. — Eu realmente estava pensando em pegar aquela cadeira. Ainda bem que você percebeu! Era bem provável que eu acabasse no chão…

Não consegui me conter e soltei uma risada nasal. Ela me olhou, ainda um pouco sem jeito, e bufou:

— Que foi? — perguntou, já ficando levemente irritada, mas sem perder o humor. — Ah! Me dá essa garrafa antes que o café esfrie!


E assim, entre risadas contidas, tropeços discretos e pequenas distrações, percebi que havia algo diferente naquele instante. Nada declarado, nada explícito — apenas uma sensação leve, curiosa, de que talvez estivessem começando a notar uma à outra de um jeito diferente, sem pressa.

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O acaso a meu favor - Página 57

 Continuação Por Clara....

Ao abrir automaticamente as portas sanfonadas de alumínio daquele lugar, todos nós entramos. Eu, já acostumado com a rotina, vou direto ao caixa e começo a ligar os computadores e ventiladores do local.


Vejo Augusto e Verônica trocando algumas palavras com o rapaz que estivera comigo lá fora há pouco  —  talvez estejam apenas se conhecendo. Um sentimento estranho me invade, como se alguém me observasse. Olho para os lados, depois para trás, e percebo Verônica desviando o rosto enquanto pergunta algo ao rapaz. Um leve sorriso de canto surge em meus lábios.

Quando menos espero, a turma dos dois turnos de repositores chega ao mercado. Assim que me notam, cumprimentam primeiro Verônica e Augusto, que estão lá na frente, e logo vêm em minha direção com a algazarra de sempre.

Seguimos juntos até o espaço destinado ao açougue, e então levo um baita susto: os freezers já estavam impecavelmente instalados e brilhando no centro do mercado. Minha reação não foi diferente da minha animação. Os meninos abriram uma das portas e viram que a temperatura estava perfeita para receber as carnes. Para não perder a piada, soltei:

— Ainda bem, as carnes da minha casa já até acabaram mesmo.

Ao ouvirem meu comentário, os meninos caíram na risada, e alguns até concordaram comigo.

Quando menos esperamos, Juliana se aproxima de nós e se junta à pequena roda diante dos freezers. Seus olhos percorrem o brilho metálico das portas como quem não vê ali nada além de um detalhe banal. Então, com a voz carregada de ironia, solta:

— Até que enfim, algo diferente neste mercado.

O tom é o mesmo que ela passou a cultivar de um dia para o outro, quase como um adereço que veste para provocar. Desde a vez em que insinuou que eu estava recebendo favores de Verônica, por conta de nossa aproximação, nunca mais a vi com o mesmo olhar. Mal sabe ela que entre nós não há nada além do profissional — talvez, no máximo, uma amizade leve, quase rasa, que nasceu sem intenção.


Deixamos o salão principal e seguimos para o galpão, nos fundos do supermercado, onde batemos nosso ponto. Aquele espaço sempre me pareceu um improviso: uma mesa simples, o cheiro de café passado às pressas, alguns pacotes de biscoito esquecidos. Também é lá que fica o bebedouro, testemunha silenciosa de nossas pausas rápidas. Verônica já comentou que em breve isso mudará. E, de fato, espaço não falta para transformar aquele canto esquecido em algo mais digno, mais organizado, à altura dos que trabalham ali.


Ainda faltavam alguns minutos para a abertura do mercado quando Verônica, acompanhada do irmão, apareceu no galpão chamando nossa atenção. Eu, por azar ou sorte, tinha acabado de colocar o mergulhão na água para ferver. Então fiquei naquela situação ingrata: prestar atenção no que eles diziam e, ao mesmo tempo, vigiar a panela como se fosse um tesouro prestes a explodir. No fim, parecia personagem de ditado popular, com um olho no padre e outro na missa.


Enquanto eles falavam sobre as tarefas do dia, eu, ao invés de me concentrar no assunto, estava ocupado demais encarando a boca da Verônica — e esquecendo da água fervendo. Sorte minha estar no fundo do galpão, onde ninguém poderia notar a cena patética do meu hiperfoco.

De repente, sinto os olhos dela sobre mim. E, pior, ela percebe exatamente para onde eu estava olhando. O que ela me devolve não é um sorriso aberto, mas aquele meio-riso nos olhos, que denuncia tudo sem dizer nada. Eu, por dentro, só pensava: pronto, agora acabou pra mim. Se um buraco tivesse se aberto no chão naquela hora, eu teria mergulhado de cabeça sem pensar duas vezes.


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O acaso a meu favor - Página 56

 Por Clara....

Despertador tocando, Bento e eu nos espreguiçando juntos — ele com aquele ar de rei preguiçoso, eu tentando reunir forças para levantar. A realidade bate forte na nossa cara, mas graças a Deus tenho um emprego para ir. Pego o celular, olho a tela e não vejo só as horas, mas a data também: vinte e sete de junho. Logo logo, ao virarmos a página para julho, aquele mercado vai ferver. A famosa alta temporada de Caldas chegando, trazendo movimento, gente de todo canto, e junto, a correria dobrada. “Por quê?”, alguns sempre perguntam. A resposta é simples: por causa das águas termais da cidade. E detalhe — termais de verdade, quentinhas, uma riqueza daquelas que atrai milhares de pessoas de todos os lados do país.

Minha rotina de todos os dias é quase um ritual sagrado. Primeiro, a caixa de areia do Bento — prioridade absoluta. Depois, encho o potinho de ração, troco a água e ganho aquele olhar de aprovação felina, como se eu tivesse passado no teste diário de “boa tutora”. Antes de sair, claro, um beijo no meu peludo, porque ele merece mais do que eu. Só então sigo para o banho.

Hoje decidi deixar os cabelos soltos. O bom do meu charme enrolado é que, mesmo quando eu olho no espelho e acho que estão bagunçados, todo mundo insiste em dizer que parece que passei horas arrumando. Bobinhos. Se soubessem que é só deixar secar ao natural... mas confesso, eu adoro o mistério que isso cria.

Já aconteceu com vocês isso? Passar horas lavando, hidratando, cuidando com todo amor e paciência do mundo… e o cabelo simplesmente não colaborar, sair com aquele resultado mais ou menos, sem graça? Agora, basta eu deixar ele ali três dias, sem uma gota de creme ou hidratação, e quando finalmente resolvo dar um jeito meia boca… pronto! Ele resolve ficar perfeito, como se tivesse sido tratado em salão de luxo. Eu fico entre a gratidão e a indignação, confesso. Mas fazer o quê, né? É o que temos, senhores.

Saindo de casa e deixando tudo em ordem, sigo meu caminho de todos os dias rumo ao mercado. Por mais rotina que seja, nunca me canso de levantar os olhos e ver os casais de araras-azuis cobrindo o céu de Caldas. É quase uma pintura viva, uma cena que me arranca suspiros mesmo quando estou atrasada. É raro ver uma delas sozinha, estão sempre em dupla, como se uma completasse a outra. Só que, vou ser sincera, o barulho que fazem logo cedo não combina em nada com a beleza que carregam. Parece até briga de vizinhos de apartamento.


Chegando em frente ao mercado, percebo que ainda estou dez minutos adiantada. Aproveito para abrir a tela do celular e me atualizar da escala que a Verônica mandou na noite anterior. Estou tão concentrada nos nomes e horários que quase não percebo uma moto parar ali na lateral do supermercado.

Um rapaz alto, de pele parda e cabelos ondulados, desce ajustando o capacete no braço. O cabelo ondulado caindo um pouco sobre a testa dá a ele um ar despreocupado. Vem em minha direção e, com um sorriso meio educado, meio tímido, pergunta:

— Você trabalha aqui, moça?

Levanto os olhos, o analiso rápido — nada ameaçador, parecia mais curioso do que qualquer outra coisa — e, de forma empática, respondo:

— Sim, trabalho aqui. O mercado vai abrir daqui alguns minutos.

Ele assente, olhando em volta como quem mede o lugar pela primeira vez.

Quando menos percebo ele se acomoda a alguns centímetros de mim e isso já me deixa em alerta.

Ele se aproxima, ajeitando o capacete no braço.

 — Então, me diz uma coisa… aqui o movimento é forte mesmo na temporada?

Eu arqueando a sobrancelha o pergunto sem cerimonia: — É, mas por que a entrevista tá acontecendo comigo? Você é do RH disfarçado?

Ele ri, levantando as mãos como se se entregasse: — Calma, moça. Só tô curioso. É que… acho que vou trabalhar aqui também.

— Trabalhar? Aqui? — faço uma cara de espanto, mas meio desconfiada — Tá de brincadeira.

 — Verdade. Sou o novo açougueiro.

Ao ouvir oque me disse cruzo os braços e fingi avaliá-lo de cima a baixo: — Hum… açougueiro? Você tem cara mais de quem estraga carne do que corta.

Ao ouvir oque saiu de mim, ele coloca a mão no peito fingindo estar ofendido: — Olha, isso dói, viu? Eu trato as peças de carne melhor do que muita gente trata as pessoas.

Eu já começando cair na brincadeira dou uma risada, balançando a cabeça: — Se for verdade, acho que vamos dar conta de trabalhar juntos. Mas vou ficar de olho.

Ele me olhando com uma falsa cara de poucos amigos me responde:

 — Pode ficar. Mas cuidado, viu? Se você pisar na bola, corto seu monitoramento em bifes!

Ambos acabam rindo, quebrando a tensão do primeiro contato.

Quando menos percebemos, uma caminhonete muito conhecida estaciona ao lado do mercado. Era a caminhonete do Igor. Logo em seguida, eu e o... bem, não cheguei a perguntar o nome dele, nos ajeitamos. Pouco depois, chega também o Augusto.

Vejo o Igor e a Verônica descerem da caminhonete e, no instante em que meus olhos se cruzam com a beleza daquela mulher, sinto não apenas meu coração bater em falso, mas também as pernas fraquejarem. Ela, com aquele olhar sério e os cabelos impecavelmente ondulados caindo até os ombros... Não resisti e desviei o olhar, tentando evitar que a situação soasse ainda mais estranha do que já estava.

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quarta-feira, 20 de agosto de 2025

O acaso a meu favor - Página 55

Continuação por Verônica....

Depois de passar um pouco de raiva com os repositores — porque, convenhamos, homem quando resolve ser desajeitado consegue ultrapassar todos os limites da paciência —, finalmente conseguimos colocar tudo em ordem.
Ligamos os freezers, e lá ficaram, ronronando como motores satisfeitos, adquirindo a temperatura ideal para receber as carnes que ainda repousavam na câmera fria.

Respirei fundo, sentindo aquele peso nos ombros se dissolver pouco a pouco. O mercado estava, de fato, começando a ganhar um novo fôlego.

Olhei em volta, vi a equipe cansada, e fiz o que achava justo:
Os que saíram mais cedo do intervalo por ordem minha, descansem por trinta minutos agora. Os demais, que ainda não pararam, façam isso também.

Todos assentiram, sem contestar. E o silêncio que ficou foi quase reconfortante.

Peguei o celular para ver as horas e me assustei: 15h47.
A correria tinha engolido meu dia, e percebi que não havia colocado nada no estômago desde cedo.
A fome, que antes havia desaparecido na empolgação da chegada dos freezers, voltou com força na calmaria que se seguiu.
Era como se meu corpo, agora que já não estava em alerta, cobrasse a conta da adrenalina.

Olhei em volta: papéis pela mesa, planilhas abertas no computador, meu celular cheio de mensagens não lidas. Parte de mim queria continuar ali, resolvendo cada detalhe do dia, mas a outra gritava por um simples prato de comida.

Suspirei, ajeitando os óculos no rosto, e pensei: Não adianta nada segurar o peso de uma empresa inteira se eu não consigo cuidar nem de mim mesma.

Abri o aplicativo de delivery e comecei a rolar as opções. Nada parecia apetitoso. Tudo me parecia ou muito pesado ou muito demorado. Fechei de novo. Peguei a bolsa.
— Vou sair só um instante. — anunciei, quase para mim mesma, mas alto o suficiente para Augusto, que passava pelo corredor, escutar.

Ele me lançou aquele olhar de quem quer perguntar “Quer que eu vá junto?”, mas se conteve. E ainda bem, porque eu precisava de alguns minutos sozinha.

No carro, o silêncio me fez bem. Liguei o rádio baixo, apenas para não ouvir o som do meu próprio estômago roncando, e segui em direção a uma lanchonete simples que ficava a duas quadras dali. Não era nada sofisticado, mas serviam um prato feito honesto, quente, e era isso que eu precisava.

Enquanto esperava o pedido, abri novamente as fotos dos freezers no celular. Sorri sozinha.
Cansada, esfomeada, estressada — mas feliz.
Afinal, cada conquista tem gosto melhor quando a gente paga o preço para alcançá-la.

Não demorou nem quinze minutos e meu pedido chegou, e meu estômago agradeceu como se tivesse recebido o presente mais valioso do mundo. A cada garfada eu sentia minhas forças voltarem, como se um fio invisível estivesse religando minha energia. Mas, se eu pudesse escolher, naquele exato momento trocaria qualquer freezer novo por um travesseiro e aquele cochilo sagrado depois do almoço.

Sorri sozinha diante do pensamento. Mas como nasci bonita e ainda tento não falir a própria empresa da minha família, levantei da cadeira com uma falsa elegância, paguei a comanda e segui de volta ao supermercado.

No carro, o calor da tarde batia no vidro, e por um instante quase me convenci a dar mais cinco minutinhos estacionada ali, com os olhos fechados. Mas não. O mercado precisava de mim, e a sensação de responsabilidade sempre gritou mais alto do que meu cansaço.

Quando voltei, encontrei alguns dos meninos rindo baixinho perto da entrada. Ao me ver, todos se recompuseram rápido — era engraçado e ao mesmo tempo satisfatório ver como minha presença ainda impunha ordem. Passei por eles sem dizer nada, mas por dentro estava com vontade de rir.

Seguir direto para o escritório, mas antes de sentar, fui até os freezers. Ali estavam, alinhados, imponentes, como soldados prontos para a batalha. Toquei a lateral de um deles, fria, firme. Senti aquele orgulho crescer de novo no peito.

— Augusto, amanhã pela manhã quero todas as carnes embaladas a vácuo nesses freezers. — ordenei, firme, cruzando os braços enquanto olhava para o brilho novo dos equipamentos.

Ele ergueu as sobrancelhas, respirou fundo, como quem já estava se preparando para a correria que viria, mas apenas assentiu com a cabeça.
— Pode deixar, Verônica. — respondeu sem titubear, ainda que eu tenha percebido o peso da responsabilidade na sua voz.

Caminhei lentamente em volta dos freezers, como se estivesse inspecionando uma obra de arte recém-inaugurada. Não eram apenas caixas de aço refrigerado. Para mim, representavam muito mais: investimento, risco, futuro.
E não deixei de pensar no tanto que sangrei o caixa para vê-los ali, alinhados.

Me virei para os meninos que estavam próximos.
— E quero todo mundo ajudando. Isso aqui não é trabalho de um só, é da equipe inteira. — falei em tom que não deixava espaço para dúvidas.

Eles se entreolharam, sérios. Era isso que eu queria ver: respeito, disciplina. Porque freezer cheio de carne, organizado, bonito, não era apenas estética — era lucro, era sobrevivência da empresa.

Quando terminei, senti aquele peso bom de dever cumprido pelo menos por hoje. Só que ao mesmo tempo, dentro de mim, uma voz insistia: Verônica, amanhã começa a parte difícil de verdade.

Se depender de mim, essa empresa vai florescer. Nem que eu tenha que engolir o mundo a cada garfada, entre um cochilo negado e outro.

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O acaso a meu favor - Página 54

 Por Verônica....

Ao ver os primeiros funcionários chegando, ajustando seus uniformes e trocando cumprimentos sonolentos, volto minha atenção para a folha de pagamento aberta sobre a mesa. Uma a uma, reviso as anotações, calculando o que cada um retirou pelo nosso convênio interno — aquele sistema simples, mas que já ajuda tanto: o colaborador pega o que precisa no mercado e, no final do mês, descontamos direto do salário.

Mas, enquanto preencho valores, minha cabeça está em outro ponto.
Quero algo mais. Algo que realmente faça diferença no dia a dia deles.

Abro uma nova planilha e começo a rabiscar números. Minha ideia é acrescentar um cartão alimentação para cada colaborador, com no mínimo trezentos reais de saldo mensal. É um valor modesto, mas suficiente para aliviar o bolso e dar mais autonomia.

Sei que, olhando friamente para a situação da empresa hoje, o lógico seria cortar benefícios, não acrescentar. O caixa anda frágil, e o investimento no açougue já deixou nossas reservas no vermelho. Mas não consigo pensar só no curto prazo. Uma empresa boa não se constrói apenas com lucro; se constrói com gente motivada, com equipe que veste a camisa porque se sente cuidada.

A caneta pausa sobre o papel.
O pensamento é arriscado, sim.
Mas acredito que, quando você entrega algo melhor para quem está ao seu lado todos os dias, a resposta vem em forma de produtividade, comprometimento... e resultados.

Respiro fundo.
Anoto no topo da planilha: Projeto Cartão Alimentação — Implementar em 60 dias.

Eu sei que vai apertar, mas é assim que se cresce: investindo nas pessoas certas.

Não serei boa. Esse projeto do cartão alimentação só vai sair do papel depois que cada funcionário em aviso prévio deixar, de vez, os pés fora da nossa empresa.
Não é ajuda para todos — nunca foi. É recompensa. Reconhecimento para quem segue as regras, veste a camisa e entende que disciplina é tão importante quanto habilidade.

Volto a rabiscar na planilha, marcando mentalmente os nomes que já sei que não verão esse benefício.
Sei que parece frio, mas é assim que se mantém uma equipe de verdade: filtrando.

E, no meio disso, o pensamento do galpão volta a martelar. É quase um desejo proibido, como um doce caro que você sabe que não pode comprar… mas que fica olhando pela vitrine.
Um galpão enorme, numa das avenidas mais movimentadas de Caldas. Aquelas fotos ainda estão vivas na minha cabeça — consigo até imaginar a fachada com a nossa marca, a entrada ampla, os corredores cheios de movimento.
Só de pensar, meu peito aperta de empolgação… e preocupação.

Hoje, pelo menos, tenho algo concreto para comemorar: depois de dias de atraso, chegam os tão sonhados freezers. E não são só bons — são lindos!
Prateados, imponentes, com aquela tampa de vidro que deixa tudo visível. É o tipo de equipamento que transforma a aparência do mercado, que faz cliente confiar só de olhar.

Respiro fundo.
Por um momento, deixo o galpão para depois e me concentro nesse passo.
Um freezer novo não muda o mundo, mas pode ser o primeiro tijolo de algo muito maior.

As horas se arrastaram e, quando percebo, já passam das quatorze horas… e eu não coloquei um único grão de comida na boca.
Abro o aplicativo no celular para pedir algo rápido, mas antes mesmo de finalizar o pedido, ouço três leves batidas na porta.
Era o Augusto, meio inclinado para dentro, como se soubesse que vinha com notícia boa.

— Os freezers já chegaram! — anunciou, com aquele ar de quem traz um troféu.

Na hora, minha fome desapareceu como se nunca tivesse existido.
Levantei rápido, ajustando os óculos no rosto — um gesto quase automático quando estou prestes a tomar as rédeas da situação.

— Chame todos os repositores. Inclusive os que ainda estão no intervalo. — falei, sem margem para questionamentos.

Augusto acenou e, como se já tivesse previsto minha ordem, em poucos minutos estava de volta, ladeado pelos rapazes. Todos atentos, como soldados esperando o próximo comando.

A excitação estava ali, disfarçada sob meu tom firme. Freezers novos significavam mais do que espaço para mercadoria. Significavam avanço, imagem, impacto no cliente.
E eu faria questão de supervisionar cada centímetro de onde eles seriam colocados.

Depois de todo o trabalho pesado para apenas retirar os freezers do caminhão e colocá-los no chão do mercado, finalmente consigo respirar um pouco mais aliviada.
Ver aqueles equipamentos sendo levados e posicionados, um a um, no lugar certo, me trouxe uma sensação de conquista que não sei explicar. Era como se cada freezer fosse mais do que metal e vidro — eram peças de um futuro que eu tanto desejo construir.

Peguei o celular, não resisti.
Comecei a filmar, registrando cada detalhe com brilho nos olhos.
Em seguida, enviei os vídeos para o Igor.
Ele não demorou nem um minuto para visualizar e responder:

“Vamos arrebentar!!!”

Soltei uma risada sozinha, imaginando a empolgação dele do outro lado da tela. Típico de meu irmão caçula — intenso, exagerado, mas sempre acreditando em nós.
E essa fé dele, de alguma forma, me dá forças.

Mas, como nada sai perfeito, no meio do movimento percebo um dos funcionários começando a instalar os freezers de forma completamente errada.
De imediato, minha expressão mudou.
Caminhei até ele e, com voz firme, quase cortante, falei:

Assim não!!!

Ele parou, assustado, enquanto os outros se entreolharam em silêncio.
Controle é essencial.
E aqui, no meu mercado, cada detalhe tem que ser do jeito certo — ou não será feito.

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segunda-feira, 18 de agosto de 2025

O acaso a meu favor - Página 53

 Continuação por Clara...

Como hoje a Verônica mesma mandou mensagem retribuindo o favor de ontem com uma folga, decidi que vou aproveitar o dia para colocar a casa em ordem e levar o Bentinho no veterinário. Preciso aproveitar esse raro momento de calma — se fosse pelo Augusto, ele com certeza arranjaria uma desculpa qualquer para me puxar pro turno da tarde. Só de pirraça. Mesmo sem necessidade. Só pelo prazer de mandar.

Mas hoje não. Hoje é meu. E do Bento.

Ele está ali agora, se espreguiçando todo, com a língua pra fora e aquele ar de quem acha que é dono do mundo. Eu não discuto. Ele manda mesmo.

A cada três meses, como orientação da Dra. Laís, o levo para os exames de controle. Desde aquela crise... eu nunca mais fui a mesma.

A obstrução urinária foi um susto que não desejo pra ninguém. Um ano atrás, eu nem percebi. Estava tão atolada no trabalho, tão imersa em sobreviver e dar conta de tudo, que simplesmente... não vi.
Não vi que ele bebia menos água.
Não vi que evitava a caixinha de areia.
Não vi o sangue.
Não vi o olhar apagado dele.

Fui perceber quando já era tarde demais.

Me lembro perfeitamente daquela madrugada. Bento gemia de dor e eu, em pânico, ligava pra todos os números de emergência possíveis. Quando a Dra. Laís atendeu, parecia que uma parte do desespero tinha se dissolvido só de ouvir a voz calma dela do outro lado da linha.

Ela me recebeu de moletom e cabelo preso, olhos inchados de sono, mas coração enorme.
Não me julgou. Não reclamou.
Simplesmente cuidou.

Fiquei sentada naquela cadeira desconfortável da recepção, com a alma em pedaços, achando que ia perder meu melhor amigo.
Meu companheiro de todas as horas.
O meu pequeno herói matador de baratas que me acompanha até no banheiro em sinônimo de segurança — Começo a rir com a lembrança da cena, pois mesmo ele se esfarelando de sono, se eu levanto na madrugada nem que seja para tomar uma água, lá está ele atrás de mim como uma sombra.

O mesmo gato que se aninha em mim nos dias tristes e que nunca pediu nada além de carinho e atenção — e que eu falhei em dar.

Me culpei tanto...
Me senti um monstro.
Mas Bento sobreviveu. Com força, teimosia e um miado rouco de quem ainda tinha muito o que viver.

Desde então, não descuido mais.

Hoje ele vai ao veterinário, vai receber carinho da Dra. Laís e, quem sabe, até ganhar um petisco — ou dois, se fizer aquele olhar pidão.
E eu... vou respirar. Vou cuidar dele. E cuidar de mim também.

Porque cuidar do Bento, de alguma forma, me lembra que eu também mereço ser cuidada. Mesmo que eu demore a aceitar isso.

Organizei a casa por cima, só o suficiente pra não sentir culpa na volta. Coloquei água fresca na planta da cozinha, troquei os panos, abri as janelas. O Bentinho me seguiu em silêncio por alguns cômodos, como quem supervisiona, mas sempre de um jeito charmoso e desatento, pulando nos móveis como se estivesse me ajudando.

Peguei a caixa de transporte no armário alto, e só o barulho dela sendo colocada no chão já fez ele se encolher todo.
— Ei, mocinho, nada de drama hoje — falei com a voz mansa, enquanto colocava uma mantinha limpa no fundo.

Com um pouco de conversa e dois sachês de chantagem, ele entrou sem brigar.

Chamei o nosso transporte pelo aplicativo e seguimos viagem caminho até a clínica. O rádio do carro tocava uma música leve, e o tempo nublado deixava a cidade com uma cara meio nostálgica, meio bonita. Em cada farol, eu olhava para o lado e falava alguma coisa com ele.

— Dessa vez é só exame, viu? Sem cateter, sem hospitalização. Palavra de honra. —  Dizia olhando para ele na caixinha de transporte.

Chegando na clínica, a recepcionista sorriu assim que me viu.
— Oi, Clara! Trouxe o reizinho hoje?

— Ele mesmo — respondi, sorrindo ao levantar a caixa de transporte. — Veio só dar o ar da graça.

Enquanto esperava, reparei como a recepção da Dra. Laís sempre tinha cheiro de lavanda e café. Um espaço pequeno, mas aconchegante. Um daqueles lugares onde até a espera parece gentil.

Quando a porta da sala de atendimento se abriu, o rosto da Dra. Laís surgiu com aquele mesmo sorriso afetuoso de sempre.

— E aí, Bento! Já fez drama ou deixou pra cá?

— Hoje foi bonzinho... mais ou menos — disse, colocando a caixa na mesa de exame. — Mas ele sabe que aqui tem petisco escondido, então não reclama muito.

Ela o examinou com cuidado, como se estivesse manuseando porcelana rara. Conversava com ele em voz baixa, como se fossem velhos amigos. E, em algum ponto, ela parou de falar com o gato e se virou pra mim:

— Sabe, Clara... ele tá bem. Muito bem, aliás. Os exames vieram ótimos. Você tem feito tudo certo.

Sorri. Mas não conseguir disfarçar minha insegurança.

— Obrigada... — respondi num sussurro. — Eu sempre acho que posso estar esquecendo alguma coisa, sabe?

Ela assentiu.
— Nós que temos muito amor por um serzinho com o olhar tão maroto assim...— Disse de uma maneira que me fez rir. —  sempre achamos isso.

E foi ali que percebi: há pessoas que cuidam de bichos, e há outras que cuidam da gente também, mesmo sem dizer diretamente. A Dra. Laís era uma dessas.

Pagamos, pegamos os exames impressos e, antes de sair, ela ainda me chamou:

— Ah, Clara... diga pro Bentinho que ele é um dos meus pacientes preferidos.

— Pode deixar. Mas acredito que ele já sabe. — Digo levantando a gaiola e o encarando através da grade. 

No caminho de volta, Bentinho dormia no banco do passageiro, ronronando baixinho.
E eu... me sentia em paz.

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O acaso a meu favor - Página 52

 Por Clara...

Acordei com a luz da manhã filtrando pelas frestas da cortina. Não foi o despertador, nem o gato miando pela ração — foi uma notificação no celular. Estiquei o braço com preguiça e peguei o aparelho ainda com os olhos meio cerrados.

Mensagem da Verônica.

Endireitei no mesmo instante, como se meu corpo já soubesse que não dá pra ler nada dela de qualquer jeito. Desbloqueei a tela e li devagar:

— “Clara, bom dia!”
Sorri. Sempre me espanta como até o bom dia dela parece cuidadosamente pesado, como se tivesse passado por três revisões internas antes de sair.

— “Hoje não há necessidade de vir, está bem?”
Franzi a testa.
Ué?

— “Hoje o quadro está em perfeitas condições para você descansar.”

E ali, eu entendi. Ela lembrava. Ontem eu estava de folga. E mesmo tendo me chamado, agora queria compensar. Ela notou. Ela pensa em mim mais do que demonstra.

Li de novo.

— “Tenha um bom dia, e descanse!”

Soou como um comando... mas um comando com afeto. À moda dela, claro.
Ela se preocupa. Só não sabe muito bem como demonstrar.

Meu coração apertou. Fiquei um tempo olhando pra tela, com os dedos pairando sobre o teclado, sem saber exatamente o que responder. Cada palavra minha parece sempre correr o risco de passar do limite invisível que a gente finge que não existe.

Mas mesmo assim, escrevi:

— Bom dia, Verônica! Obrigada por avisar. Fico feliz em poder descansar um pouco mais hoje. E... obrigada por lembrar de ontem. Eu gosto de ajudar, sempre que precisar.

Pensei em colocar um “coração” no fim. Apaguei.

Substituí por:

— Tenha um ótimo dia também. E se precisar, tô por aqui. Mesmo de pijama.

Sorri. Era bobo, mas era meu jeito. Um meio-termo entre o profissional e o que... talvez, nem eu consiga nomear ainda.

Enviei. Encostei o celular no peito e fiquei ali, deitada, ouvindo o ronronar de Bento.
Mas minha cabeça, bom... já estava no mercado. Ou melhor — nela.

Olho pra bola de pelos enrolada nas minhas pernas. Ele dorme feito rei, dono absoluto do pedaço — e talvez de mim também. Dou um sorriso presunçoso.
Ando... diferente. Leve. Não é que a vida esteja fácil — nunca foi —, mas ultimamente algo em mim está mais calmo. Como se a tempestade que sempre morou no meu peito tivesse aprendido a chover menos.

Algumas coisas ainda testam meu limite, me cutucam por dentro, me desafiam. Ontem mesmo, aquele silêncio entre eu e Verônica no carro... aquilo disse mais do que qualquer conversa inteira. Mas, mesmo com essas pontas soltas, tem algo em mim que está mais desperto.

Não sei explicar ao certo. É como se, por muito tempo, eu estivesse apenas sobrevivendo — seguindo, cumprindo, existindo.
Mas agora... agora eu sinto.
Confuso, sim.
Mas real.

Essas pequenas trocas de olhar, a atenção dela em detalhes que ninguém mais nota, o jeito que fala tentando parecer distante, mas sempre escolhendo palavras com cuidado... tudo isso me atinge. Devagar, feito onda que não derruba, mas carrega.

Sinto que estou sendo forçada a viver, mas pela primeira vez, viver não dói.

Essas sensações, ainda que bagunçadas, têm um gosto estranho de liberdade.
Talvez seja isso: estou me permitindo sentir. E me sentir viva, mesmo sem saber o que vai acontecer depois.

Acaricio o gato com a ponta dos dedos, ele resmunga preguiçoso e muda de posição, me aquecendo ainda mais.

Fecho os olhos.
Não quero respostas agora. Só quero ficar aqui, com essa leveza nova que me visita sem pedir licença.

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O acaso a meu favor - Página 51

 Continuação por Verônica...

Acordei com a cabeça mais leve do que fui dormir. Talvez não exatamente leve... mas funcional. Consegui separar o que era emocional do que era prático, e isso já me deu uma vantagem.
Tomei café sem pressa, respirei fundo e fui direto para o mercado.

Hoje, Igor chega com Lia. Noite movimentada pela frente — e nem falo do que ele traz nas malas, mas sim do que pode vir no olhar. Sinto que ele está diferente desde a última visita. Mais sério. Mais distante. Mas, por enquanto, foco no que posso controlar.

Cheguei cedo, antes de todos. O silêncio do mercado vazio é algo que me conforta. Passei direto pro escritório, abri o computador, organizei planilhas, respondi e-mails... tudo no automático. Até que um deles me chamou a atenção.

Assunto: “Oportunidade comercial — galpão Caldas”.

Cliquei.

As fotos carregaram devagar, como se me provocassem. E logo de cara, meu coração bateu diferente. Um galpão grande, bem localizado, em uma das avenidas principais na entrada de Caldas. A estrutura... o espaço... aquele tipo de lugar que você olha e já vê vida dentro. Movimento. Gente comprando, mercadoria rodando, o cheiro de pão saindo de uma padaria no fundo, a possibilidade de um segundo açougue... Um sonho se materializando em pixels.

Fechei os olhos por um segundo. Se por foto eu já consegui imaginar mil e uma possibilidades... imagina vendo aquilo ao vivo?

Mas aí, a realidade me puxou de volta com força.

Dinheiro. Ou melhor, a ausência dele.

Já tirei tudo o que podia de uma das contas para a construção do açougue. Investi pesado — estrutura, equipamentos, mercadoria. O mercado está no vermelho, e eu sei disso melhor do que ninguém. Apostei tudo o que tínhamos no caixa de segurança. Uma jogada ousada, arriscada... mas necessária. Porque manter o mercado de pé, não é mais sobre lucro. É sobre sobrevivência. Sobre salvar um legado, sobre cuidar de quem trabalha comigo, de quem depende disso pra viver.

Se der certo — e eu acredito que vai dar — o retorno vem. A reforma vai chamar mais clientes, a nova disposição das prateleiras vai ampliar as vendas, o novo açougue vai bater de frente com concorrente grande. E com isso, espero pagar não só o que devo, mas também apagar o rastro de dívidas e processos que ainda me cercam como sombras.

Fechei o e-mail. Anotei o número do corretor no canto de uma folha. Não sei se posso... mas também não sei se posso ignorar.

No fundo, eu sei: meu problema nunca foi sonhar alto. Foi fazer isso com os pés no chão rachado.

Mas uma coisa é certa: se eu conseguir reerguer esse mercado, ninguém nunca mais para a empresa dos Moreli. 

Peguei o celular e olhei a hora. Eram exatamente 5h57. O mercado ainda dormia, mas minha mente já estava em plena atividade. Estava há tempos acordada, reorganizando mentalmente as tarefas do dia, mas foi nesse momento que senti aquela vontade quase involuntária de vê-la... ou pelo menos saber se ela estava bem.

Deslizei a tela e abri o aplicativo de mensagens. Clara. O nome dela apareceu no topo da lista — havia estado online pela última vez às 23h14. Me pergunto o que ela fazia acordada tão tarde... mas logo desvio o pensamento, tentando não cair no exagero.

A foto de perfil dela me arranca um sorriso involuntário. Está com um gato branco no colo, com manchinhas pretas nas orelhas e no topo da cabeça, e olhos de um azul tão forte que por um momento achei que fosse filtro, montagem, ou sei lá o quê. Mas não. É real. Ela, o gato, os dois naquela simplicidade bonita que dá vontade de entrar na foto e ficar ali um pouco.

Fiquei um tempo olhando pra tela antes de abrir a caixa de mensagem. Pensei e repensei cada palavra antes de digitar. Não queria parecer estranha. Ou mais envolvida do que deveria. Respirei fundo. Escrevi:

— Clara, bom dia!

Parei. Olhei. Simples. Direto. Educado. Mas talvez seco demais?

Continuei:

— Hoje não há necessidade de vir, está bem?
Preciso ser justa. Ontem tirei ela da folga, sem cerimônia. Merece descansar.

— Hoje o quadro está em perfeitas condições para você descansar.
Se fosse outro funcionário, admito: eu não teria me preocupado em justificar tanto.
Sorri sozinha. Ri de mim mesma. Estou sendo cuidadosa demais... só com ela.

Finalizei:

— Tenha um bom dia, e descanse!

Li de novo. Soou como uma ordem? Talvez. Mas é isso mesmo que quero. Que ela descanse. Que não se sinta pressionada. Que saiba que eu vi o esforço de ontem — e que, apesar de não saber dizer isso com facilidade, eu reconheço.

Pensei em colocar um emoji. Desisti. Ainda sou velha demais pra esses detalhes.
Cliquei em "enviar".

Guardei o celular e me inclinei pra frente, voltando à tela do computador.
Mas a cabeça... bem, a cabeça já não estava mais ali.

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O acaso a meu favor - Página 50

 Por Verônica....

Era a última semana da Juliana no mercado. Já estava de aviso prévio, e eu, sinceramente, contava os dias. Não por rancor, mas por esgotamento. Meu limite com ela já tinha sido ultrapassado há tempo. Hoje, tudo o que eu queria era cumprir a formalidade, encerrar o capítulo, virar a página.

Mas quando ela entrou no escritório, com aquele papel na mão, rosto pálido e passos hesitantes, eu soube que não era um simples papel de atestado ou algo do tipo. O mundo pareceu parar por um instante. Peguei o papel. Era um exame de teste de gravidez. Positivo.

Não consegui dizer nada de imediato. Só respirei fundo. De novo, eu teria que engolir uma situação que não pedi. Não podia demitir. Legalmente, eticamente… estava de mãos atadas. 

Saí do escritório com um nó na garganta. Pus a mão no cabelo, joguei pra trás, tentando manter a postura. Sabia que Clara estava observando. Sempre está.

Foi aí que decidi: "Vou levar ela pra casa hoje." Nem pensei muito. Só sabia que, naquele turbilhão, Clara era a única presença que não me pesava. Talvez até o contrário. Chamei, pedi pra esperar. E ela esperou, como sempre faz, sem perguntas.

O silêncio no carro era quase reconfortante — e ao mesmo tempo, doloroso. Me senti exposta de um jeito estranho. Cansada, vulnerável. Mas, ao mesmo tempo, havia algo ali que me mantinha firme. Clara.

Você percebe tudo, não percebe, Clara? — perguntei, sem pensar. Era mais um reconhecimento do que uma pergunta.

Nem tudo… mas o que me importa, eu percebo. — ela respondeu. Aquelas palavras... simples, mas certeiras. Como tudo nela.

Tive que respirar fundo pra manter a voz firme.

Hoje foi um dia difícil. Mais do que costumo admitir… mas quando você tá por perto, parece que as coisas pesam um pouco menos.

Foi o máximo que consegui me permitir dizer. E já era muito. Muito mais do que costumo mostrar a alguém. Ela soltou uma risada nasal em sinal de nervosismo.

Juliana entregou um papel hoje. Daqueles que viram a página… ou fecham livro.

Não contei o conteúdo. Ainda não. Ainda estava tentando processar.

Você vai ficar bem? — ela perguntou. Com aquela voz baixa, quase doce, que me desmonta.

Não sei, — admiti, olhando pra estrada — mas agora… agora só quero chegar em casa. Te deixar segura. Depois, eu penso no resto.

Não sei o porquê de ter me oferecido para levá-la em casa.
Talvez fosse culpa. Culpa por ter criado nela uma expectativa que agora não posso cumprir. Fiz uma promessa sem nunca ter dito em voz alta — a de que, com a saída da Juliana, as coisas melhorariam para ela.
Mas agora… tudo mudou. E eu não tenho como sustentar essa promessa.

E foi isso. O resto do caminho foi feito em silêncio. Um silêncio carregado de tudo o que não dissemos — e que talvez, um dia, a gente diga.

Quando parei o carro, ela me olhou antes de sair. Agradeceu. Me desejou boa noite. E naquele instante, o mundo inteiro se resumiu àquela troca curta, contida, mas cheia de coisa não dita.

Ela entrou. Eu fiquei ali. Mãos no volante, o corpo imóvel, o peito cheio demais.

Hoje, eu não consegui demitir ninguém. Mas perdi muito mais do que controle.
E talvez, tenha ganhado algo que ainda não sei nomear.

Ainda estava ali. Parada em frente ao prédio da Clara, com o motor desligado e os faróis apagados. Ela já tinha subido, já devia estar tirando os sapatos, talvez preparando um café, ou quem sabe sentada em silêncio, do jeito que eu vejo que ela gosta. E eu ali... travada.

O mundo parecia quieto demais. E eu também.

Apertei o volante com força sem perceber. Os dedos, tensos. O maxilar, travado. O peito... pesado.

Essa mania de me fazer forte o tempo todo... Às vezes parece que eu estou tentando segurar as paredes do mundo com as próprias costas. E mesmo quando alguém me oferece uma fresta de acolhimento, eu me saboto. Me fecho. Me tranco.

Soltei o ar devagar. Bati os dedos duas vezes no volante, como quem tenta despertar de um transe.

Vamos lá... — falei baixinho, só pra mim, quase como um empurrão interno.

Girei a chave. O carro voltou a ronronar baixinho, como se perguntasse: "Tem certeza que quer voltar pra casa agora?"

Não, não tinha. Mas também não sabia o que fazer com tudo que sentia.

Engatei a marcha. Voltar era o único movimento possível. Porque parar, aqui, olhando pro prédio dela... me deixava exposta demais até pra mim mesma.

E enquanto dirigia, só uma coisa me rondava a cabeça: até quando vou conseguir fingir que Clara não me atravessa do jeito que atravessa?

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quarta-feira, 13 de agosto de 2025

O acaso a meu favor - Página 49

 Por Clara....

Estranhei quando vi o Augusto saindo com a mochila nas costas e o capacete na mão. Ele não saiu como de costume — parecia contrariado, meio pisando duro, como se o chão não fosse digno dos pés dele. Aquilo me incomodou, mas como já estava perto do horário de fechar, deixei pra lá. Virei pra Diana e falei:

Di, vou ajudar os meninos no fechamento... qualquer coisa, me chama, tá?

Ela girou a cadeira e me olhou com aquele jeito atento dela, assentindo com a cabeça. Então fui. Tinha mercadoria espalhada por todo canto, prateleira pela metade, e aquela sensação de “vamos correr antes que a porta se feche”. Augusto geralmente cuida dessa parte, mas como foi embora mais cedo, decidi quebrar o galho.

Eu não tenho a força de um homem, mas tenho minha lógica. Peguei um carrinho de compras e pedi pros meninos colocarem as caixas ali, assim eu ia rodando pelo mercado, organizando tudo com método. Já deixei meu caixa contado — é o jeito de não travar ninguém na hora de fechar.

Nesse horário é sempre uma correria que só. A gente limpa, repõe, organiza, higieniza. Um olho na tarefa, outro no relógio, e o pensamento no banho que espera em casa.

Foi aí que tudo pareceu congelar por uns segundos.

Juliana entrou pela porta com uma expressão pálida, quase sem cor. Na mão, um papel amassado. O ambiente, que estava cheio de conversa solta, risadas, piadas entre uma caixa e outra... ficou mudo. O barulho dos passos dela ecoou pelo corredor até sumir na porta do escritório da Verônica.

Não sei o que tinha naquele papel. Mas sabia, só de olhar, que alguma coisa ia mudar depois daquilo.

Os minutos, depois que Juliana entrou naquele escritório, começaram a escorrer lentos... como se o tempo estivesse segurando a respiração junto comigo. Eu fingia que organizava as prateleiras, mas minha cabeça estava em outro lugar — ou melhor, em uma só pessoa: Verônica.

Tentava manter o foco, contar mentalmente as mercadorias, fazer o que precisava ser feito, mas a verdade é que a ansiedade começou a se espalhar pelo meu peito como se fosse ocupar todo o espaço. Meu coração batia forte demais, como se quisesse sair dali antes de mim.

Foi quando vi Juliana saindo da sala. Ela desceu o corredor de cabeça baixa, segurando aquele mesmo papel. Foi direto até uma prateleira, pegou um produto qualquer — nem lembro qual — e foi ao caixa, como se nada tivesse acontecido. Mas eu vi. Vi nos olhos dela. Tinha alguma coisa errada ali. Muito errada.

Foi só aí que Verônica apareceu.

Veio caminhando firme, como quem quer mostrar que está no controle, mas eu conheço seus gestos. Passou a mão pelos cabelos, puxando-os pra trás, do jeito que sempre faz quando está nervosa. O rosto dela tentava manter a compostura, mas os olhos... ah, os olhos dela estavam dizendo outra coisa. Coisa que ninguém ali pareceu perceber. Mas eu percebi.

Ela anunciou que podíamos encerrar as atividades, com a voz firme, mas um leve atraso nas palavras. Como se cada sílaba pesasse mais do que devia.

E eu fiquei ali, parada por um segundo, segurando uma caixa de leite, com a sensação de que alguma coisa, bem grande, estava prestes a desmoronar.

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Eu já estava desligando meu caixa quando vi Verônica se aproximando. O mercado estava quase vazio, os meninos se dispersando, o som da musica diminuindo. Ela andava com aquele passo determinado, mas havia um certo peso nos ombros. Quando chegou perto, me chamou em voz baixa, mas firme:

Clara, espera um pouco antes de ir embora, por favor.

Assenti de imediato, sem nem perguntar o porquê. Só o jeito como ela disse já foi o suficiente pra minha garganta apertar.

Ela se afastou, foi até o fundo do mercado, trocou duas palavras com Diana e depois sumiu por um tempo no escritório. Fiquei ali perto do caixa, tentando fingir normalidade, organizando uns papéis que nem precisavam de organização. Mas por dentro... eu sentia o nervosismo crescendo como uma onda prestes a quebrar.

Quando ela voltou, os olhos estavam mais calmos, mas o rosto ainda trazia traços de tensão. Se aproximou de novo, agora com um ar mais suave, e disse, meio hesitante:

Vou te levar em casa hoje, tudo bem?

Demorei um segundo pra responder. Aquilo pegou no meio do peito, como se fosse uma pergunta simples, mas cheia de significado escondido. Engoli em seco, tentando controlar o sorriso que ameaçava escapar. Ela estava ali, me oferecendo algo tão pequeno... mas ao mesmo tempo, tão pessoal.

Tá... tudo bem sim. — respondi, baixinho.

Ela assentiu com a cabeça e fez um gesto quase imperceptível com os olhos, indicando que eu podia esperar perto da porta. E eu fui, sentindo as pernas meio bambas, como se o mundo inteiro tivesse mudado de tom só com aquela frase.

Enquanto eu aguardava, só conseguia pensar: o que foi que Juliana disse naquele escritório? E por que, mesmo em meio a tudo isso, Verônica olhou pra mim daquele jeito?

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O acaso a meu favor - Página 48

 Por Verônica...

Quando ela me perguntou sobre o bilhete, por um instante senti o mundo desabar — como uma adolescente pega no flagra, o coração disparado, a mente um turbilhão de medo e vergonha. Mas me agarrei a um fio de força e assumi, do jeito que consegui. Por fora, parecia calma, quase indiferente, mas por dentro, meu peito batia tão forte que parecia querer explodir, igual à bateria de uma escola de samba na Sapucaí no auge do desfile.

Ao dizer que fui eu, senti como se tivesse jogado uma luz sobre um segredo pesado demais para carregar. Não sei exatamente o que deixei claro, talvez nem eu saiba direito... Só sei que ainda não tenho coragem para encarar tudo isso de frente.

Dispensei o Augusto mais cedo. Ele tentou me segurar, tentou me convencer a ficar, mas eu firmei: “Está tudo sob controle”. Ele relutou, resistiu, mas no fim teve que ir pra casa. Fiquei sozinha com os meninos. Os repositores mais novos... olha, pelo que tô vendo, eles estão pegando o jeito rápido, aprendendo as funções, cada dia mais seguros.

Observei o Luís e o Paulo hoje. Engraçado como cada um está lidando com a despedida de um jeito tão diferente. Um deles, nos últimos dias do aviso, está dando o melhor de si — como se quisesse sair deixando uma boa impressão, talvez até tentando consertar o que não fez antes. Já o outro... parece uma criança birrenta, emburrada por ter sido castigada. Faz tudo de qualquer jeito, largado, jogando as tarefas com desdém. Vive repetindo: “Se eu não fui o melhor, então deixo o melhor fazer.” — Só me restou rir por dentro. A cena que me vem é a de um senhor de idade cruzando os braços, fazendo birra igual menino mimado. Ridículo, mas quase cômico.

O Luís, acabei tendo que demitir. Falta de compromisso. É jovem, não o julgo, tem muito chão pela frente — mas não posso permitir que a responsabilidade de um pese nos ombros de outro. O dia que ele chegou bêbado... ali foi o fim da linha pra mim. Tentei relevar, mas tem limite. Aqui não é balada, é trabalho.

A Juliana... ah, a Juliana já virou um caso perdido. Tentei conversar, orientar, ajustar. Nada. Ela trabalha como se tudo tivesse que girar do jeito dela. Se não for assim, ela trava, boicota, dificulta. E eu estou cansada. Cansada de lidar com gente que acha que firmeza é opressão. Isso aqui não é creche, nem casa de caridade. É uma empresa. Tem custo, tem margem, tem meta, tem venda. E principalmente — tem despesa. Se não vende, não lucra. E se não tem lucro, eu não tenho como pagar o salário de ninguém.

Às vezes me pego pensando se eu tô sendo dura demais. Se não tô exigindo demais de gente que, às vezes, mal sabe o que quer da vida. Mas aí lembro que ninguém me deu colher de chá quando eu comecei. Tudo o que conquistei foi no braço, no suor, segurando a barra sozinha, muitas vezes com o coração em pedaços e o sorriso forçado no rosto.

Liderar não é só mandar. É carregar o fardo do que ninguém vê. É perder o sono por conta de conta que não fecha, de funcionário que falta, de produto que não chegou. É fingir que está tudo bem mesmo quando, por dentro, você só queria deitar e sumir um pouco. Mas não posso. Não posso porque tem gente que depende desse lugar, dessa empresa, dessa estrutura que meu pai levantou com tanto esforço. Tem família que vive com o que a gente gera aqui.

Às vezes, queria que entendessem isso. Que cada centavo conta. Que cada atitude afeta o todo. Que o mercado pode ser pequeno, mas o peso que ele carrega é imenso. Não é só comércio. É vida real. É salário, é aluguel, é conta de luz. É dignidade.

E eu... eu só queria, de vez em quando, poder respirar sem sentir que estou carregando o mundo nas costas. Mas não reclamo. Porque, apesar de tudo, sei do valor da nossa família. E sei que não cheguei até aqui pra recuar agora.

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O acaso a meu favor - Página 74

  Continuação — O beijo… por Verônica O “quase” entre nossas bocas dura longos segundos — segundos que esticam o mundo, que dilatam o ar ao...