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domingo, 27 de julho de 2025

O acaso a meu favor - Página 46

 Por Clara...

Ao desligar o celular, ainda meio zonza, me sento na beira da cama. O corpo tá preguiçoso, mas a cabeça já começou a rodar com tudo que me espera dali a pouco.

Olho pro pé da cama e vejo o Bento, completamente estirado, do jeito mais dramático possível — patas pra cima, barriga exposta, como se o mundo não exigisse nada dele.

Solto uma risada baixa, daquelas nasais, sem nem conseguir evitar.

— Ai Bento, queria ser você por um dia... — murmuro.

Mas não sou. Então levanto.

Primeiro passo: rotina felina. Limpo a caixa de areia com um certo orgulho (e uma careta), troco a água, coloco ração nova. Ele nem se mexe. Só quando me abaixo pra dar aquele beijinho na cabeça dele é que abre um olho preguiçoso, como quem diz “Sério humana?”.

— Mal acostumado... — brinco, sorrindo.

Sigo pro banheiro. O banho é rápido, prático. Escovo os dentes debaixo do chuveiro mesmo, pensando na correria que já me espera. A mente corre, mas o corpo vai despertando.

Ao sair, pego o uniforme e quase solto um suspiro de gratidão.

Graças a Deus que lavei ontem. — penso, aliviada, enquanto visto a camisa e amarro o cabelo.

Olho no espelho. Ainda tô com cara de sono, mas os olhos já estão decididos.

Chego no mercado e já sinto o ar denso, como se o lugar tivesse absorvido toda a tensão da manhã. Empurro a porta com cuidado e entro. O som do movimento já me abraça: caixas sendo organizadas, o bip rápido do leitor de código, o vai e vem dos meninos no estoque.

Mas meus olhos vão direto pra ela.

Verônica está atrás do balcão, de pé, com uma pilha de notas fiscais numa mão e o celular na outra. Quando me vê, ela congela por um segundo.

Vejo rostos apressados, caixas se acumulando, e no meio do caos... ela.

Verônica.

Está ali, de pé, corpo rígido, olhos vasculhando tudo ao mesmo tempo. E nesse segundo, eu entendo tudo.

O alívio dela me atravessa.

Ela não sorri com a boca, mas os olhos suavizam como se, enfim, pudesse respirar. Me aproximo e apenas balanço a cabeça, como quem diz: “Tô aqui.” Ela responde com um olhar que mistura gratidão, cansaço e um pedido mudo de “fica.”

E eu fico.

Mas antes que eu assuma o caixa, cruzo com o Augusto. Ele já me viu, mas finge surpresa.

Se aproxima com aquele sorrisinho meio irônico, meio forçado. O tipo de sorriso que não chega nos olhos.

Uau... não achei que você viesse. — diz, como quem elogia, mas empurra veneno por trás.

— Pois é... — respondo, sem dar espaço. — Verônica precisava.

Ele levanta uma sobrancelha, disfarçando o incômodo.

— Claro, claro... sempre bom ver quem tá disposto a sair da cama na folga.

O tom é leve, mas a cutucada está ali.

Sorrio de lado, sem perder o compasso.

— Sempre bom ver quem ainda consegue se surpreender com responsabilidade, né?

Ele engole seco, mas não responde. Apenas entrega a chave do caixa com um movimento apressado e vira as costas.

Não digo mais nada. Só caminho até meu posto, com a cabeça erguida. Porque hoje eu não vim por ele.

Vim por ela. Por Verônica.

Sento no caixa com cuidado. Passo álcool nas mãos, ajeito o uniforme e respiro fundo. Por dentro, ainda tô tentando acordar direito, mas o corpo já entrou no ritmo.

Não vim pra salvar nada. Nem acho que tô fazendo algo grande. Só... não consegui dizer não.

Verônica precisava. E eu senti que devia estar aqui. Simples assim.

Levanto os olhos e vejo ela me olhando de longe. O rosto cansado, os ombros mais soltos agora. E por um instante, nossos olhares se cruzam.

Ela não diz nada. Mas o jeito como me olha me faz sentir que fiz a coisa certa.

E isso, pra mim, já é muito.

Não me vejo como indispensável. Nem acho que sou melhor que ninguém. Só quero ajudar quando posso, e hoje eu pude.

Talvez seja porque vejo nela algo que admiro — essa força de continuar, mesmo quando tudo tá caindo aos pedaços. E se ela, com tanto mais nas costas, não desiste... então eu também posso levantar da cama e vir somar.

Não vim pra brilhar, nem pra aparecer.

Vim porque me importo.

E isso, no fundo, é o que mais me move.

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O acaso a meu favor - Página 45

 Continuação por Verônica...

A única solução, por ora, foi deixar o Augusto no caixa. Um imprevisto. Uma gambiarra emocional e operacional. Enquanto isso, eu tentava contato com alguma das meninas — qualquer uma que pudesse vir.

Mas a cada dez minutos, parecia que o mundo desabava um pouco mais:
Notas se acumulando, mercadorias chegando de outros setores, entregadores batendo na porta... E eu ali, no meio de tudo, com a sensação de que não tinha mais olhos nem ouvidos suficientes pra tomar conta de tanta coisa ao mesmo tempo.

Me sentia em mil lugares — e ao mesmo tempo, em lugar nenhum.

No meio desse caos, me agarro a um pensamento que me dá um mínimo de alívio: Igor volta hoje. Com a Lia.

E eu não vejo a hora. Não vejo a hora de dividir esse peso, de ter um apoio firme, alguém que entenda a responsabilidade que é administrar essa empresa. Alguém que não fuja. Que esteja no mesmo barco, remando na mesma direção.

Porque por mais que eu seja forte, tem dias — como hoje — que o cansaço fala alto. E eu só preciso de alguém que me ajude a continuar firme.

Estamos contando com a inauguração do açougue agora em julho. É a nossa chance de respirar. Um possível alívio financeiro, uma virada. A oportunidade de, finalmente, reajustar essa empresa de vez e colocá-la no rumo certo.

E é com esse pensamento — meio esperança, meio desespero — que me vejo dividida por dentro.

Me culpo. E como me culpo.

Mas hoje, com o coração apertado, coloco a empresa em primeiro lugar. Não porque quero. Mas porque preciso.

Procuro o número da Clara na agenda. Minhas mãos até sabem o caminho, mas meu peito hesita. Entro no escritório. Fecho a porta atrás de mim. O clique seco da maçaneta ecoa como um lembrete de que estou sozinha nessa decisão.

Fico ali por alguns segundos, parada. Em silêncio. Procurando coragem. Coragem pra ligar. Coragem pra pedir o que não deveria ser pedido. Coragem pra tirar alguém da sua folga — de novo — por conta da irresponsabilidade de outra.

Respiro fundo. O telefone na mão pesa mais do que parece. Porque hoje, mais do que nunca, sei o quanto custa liderar.

Respiro. E ligo.

O coração bate forte, como se cada toque do telefone fosse um lembrete de que eu não queria estar fazendo aquilo.

Primeiro toque.
Segundo.
Terceiro.

No quarto toque, ela atende.

A voz ainda carregada de sono. Suave. Baixa. Real.
E naquele instante, meu mundo encontra o melhor som que meus ouvidos poderiam ouvir.

Não percebo de imediato que estava prendendo a respiração. Só quando ela diz “Alô?” é que o ar finalmente sai, como se tivesse segurado o peso do universo nos pulmões.

Fico em silêncio por um segundo a mais. Talvez dois. Não por falta de palavras, mas por sentir demais.

Não sei se estou admirando a leveza daquela voz, mesmo sonolenta... ou se só estou tentando absorver o alívio de saber que, mais uma vez, posso contar com ela.

Demoro um pouco a responder. Não por fraqueza, mas porque naquele breve momento, tudo parou.

E pela primeira vez no dia, não me senti sozinha.

— Oi, Clara... — minha voz sai num tom quase baixo demais. Como se eu não quisesse acordá-la por completo.

Ouço o som dela se espreguiçando, e quando menos percebo, estou sorrindo. A imagem vem fácil à mente: Clara, embolada no lençol, os cabelos bagunçados, os olhos ainda pesados de sono...

E aquele som tão simples, tão humano, acalma por um instante a tempestade que vem me consumindo desde o início da manhã.

Verônica... tudo bem? — pergunta, com a voz arrastada, ainda sonolenta.

Me pego rindo, meio admirada. Mesmo meio dormindo, ela ainda se preocupa comigo.

— Juro que se eu pudesse, não estaria te incomodando a essa hora... — minha voz vacila. Um suspiro escapa. — Muito menos na sua folga.

Um silêncio curto, mas denso, atravessa nossa ligação. Desses que dizem tudo sem precisar dizer nada.

Mas logo vem a voz dela, mais desperta, com um tom atento:

Aconteceu alguma coisa? — Clara pergunta, agora em alerta.

Tento puxar o ar fundo, buscando equilíbrio antes de despejar tudo que está me pesando.

— Tá tudo sob controle... ou quase — respondo, tentando aliviar a tensão. — A Juliana não apareceu. Nenhuma notícia. O Augusto tá no caixa quebrando galho, eu tô tentando administrar mil coisas de uma vez…

Pauso por um instante.

— E eu sei que você deveria estar descansando agora, mas… eu realmente preciso de você.

Silêncio de novo. Mas dessa vez, mais leve.

Vê… me dá uns vinte minutos. Tô chegando.

E ali, naquela resposta simples, cheia de entrega, o peso no meu peito diminui. Não some, mas fica mais leve, porque sei que ela vem. Sei que posso contar.


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O acaso a meu favor - Página 44

Por Verônica...

Hoje decidi abrir o mercado junto com a turma da manhã. Quero acompanhar de perto a finalização da obra — e, principalmente, do açougue.

Junto com a ansiedade de ver tudo pronto, vem também o estresse por nem tudo sair como planejado. A entrega dos freezers e da câmara fria principal já deveria ter acontecido há três dias... e até agora, nada.

Consegui adiantar a entrega de algumas mercadorias que vão dar vida ao açougue e mostrar o que ele realmente é — mas nem tudo depende da nossa vontade. Existe toda uma logística por trás: outras entregas, motoristas que precisam voltar para suas casas, prazos que precisam ser cumpridos.

Tudo tem seu tempo. 

Ao abrir uma das portas, algo me salta aos olhos como um alerta: a ausência da operadora de caixa. Hoje, pelo menos, eu já sabia que não seria a Clara — está de folga. Mas... e a titular do turno?

Meus olhos percorrem o salão. Os repositores já caminham com agilidade para a ala onde batem o ponto, concentrados, organizados, prontos para mais um dia. O mercado está prestes a ganhar vida. Mas a minha cabeça só repete uma pergunta, insistente, quase martelando: Cadê a operadora de caixa?

Olho para o relógio. 7h10. O tempo parece ganhar peso, como se cada segundo atrasado aumentasse a pressão no meu peito. Volto o olhar para o Augusto — ele já está com o celular no ouvido, tentando contato com a funcionária escalada.

E aí, sem aviso, sinto o estresse subir feito uma onda, invadindo meu consciente, misturado com frustração, preocupação... e aquele medo silencioso de que o dia, mais uma vez, esteja começando com um pé fora do lugar. 

Abro o aplicativo de mensagens, aquele grupo que criei justamente para evitar desencontros: escalas, avisos, comunicados... tudo ali. Rolo a tela com pressa e abro a escala que o Augusto enviou ontem mesmo. E lá está: Juliana — das 7h00 às 15h00.

E, claro. Claro que tinha que ser ela.

Uma mistura de frustração e exaustão me atravessa. A Juliana. Justo ela. Já devia ter desconfiado.

Passo os olhos pela escala mais uma vez e vejo que uma das meninas novatas está de folga hoje, junto com a Clara. E a verdade me incomoda de imediato: seria um absurdo ligar para qualquer uma das duas em plena folga para cobrir a irresponsabilidade da Juliana. Não é justo. Nem profissional.

Mas o relógio não para. O mercado precisa abrir. E eu, mais uma vez, estou aqui — tentando consertar o que outros insistem em quebrar.

Em silêncio, faço uma oração. Não de desespero — mas de agradecimento. Gratidão por estar, enfim, me livrando dessa menina. Juliana já deu o que tinha que dar. E, se tudo correr como o previsto, em poucos dias não fará mais parte da equipe.

Respiro fundo, tento não deixar a irritação dominar, e sugiro ao Augusto:
— Liga pra Diana.

Diana é nova, entrou tem apenas uma semana. Mas lembro perfeitamente dela no dia da entrevista — o jeito firme, o olhar que misturava humildade com urgência. Ela precisava da vaga. E até agora, vem mostrando compromisso. Não me decepcionou... ainda. Mas também sei: uma semana é cedo demais pra dizer qualquer coisa.

Mesmo assim, em momentos como esse, é nas peças recém-chegadas que a gente precisa apostar. Porque tem gente que entra querendo fazer parte. E tem gente que, mesmo estando há meses, nunca fez questão.

Vejo no rosto do Augusto o que já está claro: a frustração também começou a tomar conta dele. Pela expressão, pelo suspiro pesado... já sei. Ele não conseguiu contato com a Diana.  

E nesse momento, a única solução que nos resta me engasga por dentro: Clara.

Ela, que está de folga. Ela, que já fez mais do que devia. Ela, que merecia descansar hoje.

Sinto um misto de raiva e frustração me subir como uma febre. Me revolta saber que mais uma vez vou ter que tirar a Clara do conforto da casa dela, do merecido descanso, pra cobrir o que outra pessoa tinha obrigação de fazer.

Isso me deixa possessa.

É como se, no fim das contas, quem é responsável acaba sempre pagando pelos erros dos outros. E, pior: a gente se acostuma com isso. Aprende a contar com os certos pra lidar com os errados.

Mas hoje… hoje isso está me engasgando de um jeito diferente.

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O acaso a meu favor - Página 43

Continuação por Clara...

 Tem coisas que a gente não percebe que carrega até o momento em que elas pesam tanto que começam a nos fazer andar torto. E acho que é isso que a relação com meu pai fez comigo: me ensinou, sem palavras, a me proteger até mesmo de quem eu amo. Ou talvez, principalmente deles.

Rogério sempre foi um homem de presença seca. Um daqueles pais que fazem tudo “certinho”, mas sem deixar espaço para o afeto escapar. Não faltou comida, nem escola, nem presença física. Mas, ao mesmo tempo, faltou tudo. Quando minha mãe nos deixou, fugindo com outro homem e me levando só até a metade do caminho da infância, foi ele quem ficou. Mas ficou no corpo, não no colo. Nunca conversamos sobre a dor. Ele trancou tudo por dentro e eu aprendi a fazer o mesmo.

Cresci assim: com um amor que não me tocava. Com um cuidado que existia, mas não aquecia. Quando contei que gostava de mulheres, já morando sozinha, ele reagiu com aquele mesmo silêncio cortante de sempre. Não gritou, não discutiu, mas o que não disse foi mais barulhento do que qualquer resposta. Me afastou devagar. Liga nos aniversários, aparece uma vez ou outra com alguma desculpa boba — mas nunca mais me olhou da mesma forma. E eu, mesmo sabendo disso, continuo desejando o que nunca recebi: um reconhecimento inteiro. Um orgulho verbalizado. Um amor sem condições.

Essa ferida quieta moldou tudo. Me ensinou que não vale a pena mostrar quem você é por completo, porque pode ser que até quem te ama não fique. Que não se pode esperar demais, porque esperar dói. Então fui ficando boa em manter distância, mesmo quando o peito queria se aproximar. Virei especialista em risos curtos, em desvios de olhar, em evitar vulnerabilidades com uma piada ou uma mudança de assunto. Virei alguém que observa, mas não confessa. Que sente, mas não diz.

E agora, com Verônica, algo começa a sair do controle. Porque ela tem aquele tipo de presença que vê sem perguntar, que toca sem invadir. E isso me desconcerta. Me deixa com medo. Porque o afeto dela — mesmo silencioso — me lembra tudo aquilo que não tive. E me mostra o quanto eu ainda estou armada. Ainda estou tentando proteger uma parte de mim que não aprendeu a confiar que, dessa vez, talvez seja diferente.

O problema é que o amor, mesmo disfarçado, exige entrega. E eu ainda não sei se sou capaz. Ainda estou presa num padrão velho, num medo antigo de ser deixada se mostrar demais. E, pior, de ser amada de volta. Porque aí sim, o risco seria real. O risco de depender de alguém. O risco de ser feliz — e perder. Como meu pai, que ficou... mas pela metade. E eu cresci acreditando que é isso que me cabe: metades. 

Mas não é só o passado com meu pai que me prende. Tem também Camila. E esse talvez seja o medo mais difícil de admitir: o de que Verônica, por mais diferente que pareça, acabe se revelando igual. Porque Camila também começou assim — cheia de presença, de cuidado, de gestos doces. Me olhava como se visse cada parte minha com reverência. Me dizia que eu era especial. Que nunca tinha amado alguém assim.

E eu acreditei.

Acreditei tanto que me entreguei sem reservas. Mostrei tudo. Rasguei os silêncios que vinha colecionando há anos. E, quando ela viu minha vulnerabilidade por completo, foi aí que tudo mudou. As mesmas mãos que antes acariciavam, passaram a medir. Os elogios viraram cobranças. Os olhares, desconfiança. O amor — ou o que eu achava que era amor — passou a me aprisionar em um ciclo confuso de paixão e punição.

Camila era doce quando queria algo. E cruel quando eu precisava dela. Tinha uma habilidade assustadora de virar o jogo, de me fazer sentir culpada por emoções que nem eram minhas. Chorava por mim e depois me fazia chorar por ela. Me dizia que era intensa, que amava demais, que eu era fria demais. Eu tentava entender. Tentava ser melhor. Mas quanto mais eu cedia, menos de mim sobrava.

Demorei pra sair. Porque, mesmo no caos, ela sabia como parecer encantadora. E, às vezes, o pior veneno é aquele que vem disfarçado de remédio.

Por isso, agora, com Verônica, minha mente insiste em procurar semelhanças. Um tom de voz mais cortante num dia ruim e meu peito já grita alerta. Um silêncio mais longo e eu já escuto a sombra de Camila sussurrando que isso é o começo do fim. Me pego observando demais, medindo demais, duvidando demais — não dela, mas de mim. Do meu julgamento. Da minha capacidade de identificar o que é amor e o que é ilusão.

E o mais triste é que Verônica não fez nada para merecer essa suspeita. Ela é paciente, presente, verdadeira. Mas eu, marcada pelo que vivi, fico esperando a virada. Como se todo afeto tivesse prazo. Como se o amor sempre escondesse uma faca.

Verônica me olha com calma, mas eu já me preparo para a tempestade. Porque aprendi que, às vezes, o pior não é o grito — é o silêncio entre os gritos. E, em Camila, aprendi que amar alguém pode virar um campo minado, onde qualquer passo em falso te explode por dentro.

Eu não quero fazer de Verônica uma continuação daquilo que foi destrutivo. Não quero jogar nela os fantasmas de alguém que me apagou aos poucos. Mas também não posso fingir que essa cicatriz não existe. Ela tá aqui, latejando, toda vez que sinto algo bonito demais pra ser seguro.

Talvez amar, pra mim, nunca venha sem medo. Talvez eu precise aprender a distinguir alerta de trauma. E a aceitar que Verônica pode errar, pode se irritar, pode ter dias ruins — sem que isso signifique que ela vai virar outra Camila. Que ser humano não é ser perfeito, e que o amor verdadeiro não é ausência de conflito, mas presença mesmo nos dias nublados.

Ainda estou aprendendo isso. E é difícil. Porque meu corpo inteiro, minha memória inteira, quer fugir antes de doer. Antes de repetir. Antes de confiar e cair. Mas, talvez, dessa vez, não seja queda. Talvez seja voo. E o risco... seja só o preço de se viver algo real.

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segunda-feira, 21 de julho de 2025

O acaso a meu favor - Página 42

 Por Clara...

Ultimamente, venho mais cansada que o normal. Não é só o corpo — é um tipo de exaustão que mora entre o peito e a cabeça, como se até os pensamentos estivessem arrastando os pés. Sinto um reboliço estranho, como se dentro de mim houvesse uma sala em reforma: sentimentos antigos saindo aos trancos, fazendo barulho, enquanto outros, novos e sem nome, vão entrando devagar, ocupando espaços que nem sei se estão prontos. É tudo muito rápido, muito intenso, e eu… eu ainda estou tão ferida. Carrego rachaduras que finjo que já cicatrizaram, mas que, quando tocadas de jeito certo — ou errado —, voltam a arder. Por isso, esses indícios que vêm se manifestando no meu peito, especialmente por ela, me assustam. Porque não sei se são reais, ou só mais uma fantasia tentando se agarrar em algo bonito. E porque, no fundo, tenho medo de não conseguir sustentar de novo algo que me faça sentir tanto.

Foi no fim da tarde daquele mesmo dia, quando o calor já começava a recuar e o mercado entrava naquele ritmo mais morno. Eu estava repondo umas sacolas no caixa quando olhei para a sala envidraçada da gerência. Verônica estava lá, sentada de lado na cadeira, a mão apoiando a testa e o olhar perdido em algum ponto fora da janela. Não havia nada de grandioso na cena, mas algo nela me prendeu. O corpo dela parecia pesado — não de sono, mas de quem carrega muita coisa no silêncio. Eu a conheço o suficiente pra saber que, quando está assim, se esconde atrás de tarefas. Que prefere parecer ocupada do que vulnerável.

Esperei uns minutos, e quando ela saiu da sala, indo em direção ao estoque, deixei sobre sua mesa um dos cafés que havíamos feito para os funcionários. Sem bilhete, sem palavra, sem gesto chamativo. Só deixei ali. E voltei pro meu lugar. Ela viu. Pegou o copo. E antes de entrar no corredor dos fundos, por um segundo, me olhou. Um olhar rápido, mas cheio de coisa não dita. E foi só isso. Mas foi o bastante pra mim. Porque às vezes, quando a gente reconhece a dor do outro em silêncio, a gente diz mais do que qualquer frase bonita.

....................

Me senti bem em ensinar para as meninas coisas e detalhes que, lá no começo, ninguém se deu ao trabalho de me mostrar. Coisas simples, mas que fariam tanta diferença se tivessem me dito. Senti como se, de alguma forma, estivesse quebrando um ciclo — aquele em que a gente aprende na marra, apanha calada, e depois repete a mesma frieza com quem chega. Não quis ser assim. Ensinar com paciência foi como oferecer à elas o que eu mesma precisei e não tive. E, no fundo, acho que também era um jeito de cuidar de mim. Como se cada explicação dada fosse também um abraço atrasado à Clara que um dia se sentiu sozinha demais atrás de um caixa tentando dar conta de tudo sem entender nada.

Ultimamente, venho ficando sensível demais, como se estivesse andando com a pele virada do avesso. Às vezes sinto que todo mundo vê — menos quem eu gostaria que visse. E talvez essa sensação tenha algo a ver com meu pai. Rogerio sempre foi um homem seco, do tipo que ama em silêncio, no máximo com um prato de comida deixado na mesa. Fomos só nós dois desde que minha mãe foi embora com outro homem — eu tinha sete anos, ele não disse uma palavra, só ficou. E mesmo assim, quando contei que era mulher que me fazia o coração bater, ele recuou como se tivesse levado um choque. Não me cortou da vida dele, mas também nunca mais a olhou do mesmo jeito. Liga no Natal, aparece com uma sacola de frutas de vez em quando, pergunta da saúde — mas desvia o olhar se toco em qualquer coisa que diga respeito a quem eu sou de verdade. E eu… fico ali, tentando me contentar com as migalhas desse amor torto, que não me rejeita, mas também não me acolhe.

Naquela noite, depois de fechar o mercado, fiquei mais tempo que o necessário organizando umas caixas no estoque. O barulho abafado das obras, o cheiro de poeira e café velho, tudo parecia mais suportável do que encarar o vazio do quarto. Quando finalmente cheguei em casa, deixei o celular na mesa e fui direto pro banho. Ao voltar, uma chamada perdida piscava na tela: “Pai”. Só isso. Uma ligação de onze segundos. Nenhuma mensagem depois. Nenhum “Oi, era só pra saber como você está”. E aquilo, por mais pequeno que fosse, me embaralhou por dentro.

Fiquei ali, parada, olhando pro número como quem olha pra uma ferida que nunca fechou direito. Tantas vezes imaginei ele dizendo que se orgulha de mim, que entende, ou pelo menos tenta. Tantas vezes desejei ouvir um "só quero que você seja feliz", mesmo que entre dentes. Mas não. A ligação perdida era tudo. Era sempre assim: ele não me corta, mas também não me toca. E no fundo, isso machuca mais do que qualquer silêncio absoluto. Porque me deixa presa nessa corda bamba entre o amor condicionado e a esperança boba de que um dia, talvez, ele me enxergue por inteiro.

Pensei em responder. Abri a tela da conversa com ele e escrevi “Oi, pai”. Só isso. Duas palavras simples que pareceram pesar uma tonelada. Apaguei. Tentei de novo: “Tá tudo bem por aqui. E aí?” — mas as palavras me pareciam falsas. Porque não tava tudo bem. Porque ele nunca dizia se por lá também estava. Fiquei olhando para a tela azulada por longos minutos, o polegar parado em cima do botão de enviar. E então fechei tudo. Não por raiva. Por cansaço. Por saber que, mais uma vez, ele só me procuraria até onde fosse confortável pra ele. E que qualquer tentativa minha de ir além disso seria uma cobrança que ele fingiria não ouvir.

Deitei no escuro do quarto com o celular virado pra baixo e a cabeça cheia. Me dei conta de que o que mais me incomodava não era a ligação perdida. Era o quanto isso ainda me atingia. O quanto, mesmo depois de tudo, eu ainda queria ser validada por alguém que nunca soube, de fato, me ver. E esse nó silencioso, essa vontade de ser amada do jeito certo, sem precisar esconder parte de quem sou… talvez seja o mesmo que me impede de olhar com clareza pra o que estou começando a sentir por Verônica. Porque amar alguém de verdade exige coragem — e eu ainda não sei se tenho, em partes.

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quarta-feira, 16 de julho de 2025

O acaso a meu favor - Página 41

 Por Verônica...

Já se passaram alguns dias desde o desabafo da Clara, e de lá pra cá, tenho percebido ela mais silenciosa. Não aquele silêncio calmo de quando está concentrada, mas um tipo de silêncio que esconde coisa demais — como quem carrega perguntas não respondidas. E, para ser sincera, isso me inquieta. Só que, dessa vez, não estou conseguindo acompanhá-la de perto como gostaria. A obra tomou conta do meu tempo, da minha atenção, e até dos meus passos. Em pleno funcionamento do mercado, ainda tem gente medindo, batendo, serrando e subindo estruturas por cima do movimento. Um caos funcional.

Por conta disso, mantive o horário estendido das sete da manhã às dezoito horas, e reorganizei a equipe para conseguir dar conta sem sobrecarregar ninguém. Alguns entraram mais cedo para poder sair cedo, outros se adaptaram como deu. No meio disso tudo, a cabeça trabalha em mil lugares ao mesmo tempo, e ainda assim… me pego desviando o olhar vez ou outra na direção dela. Só pra ver se está tudo bem. Mas ela tem se mantido distante, contida. E eu entendo — às vezes, é preciso recuar para processar o que não se consegue dizer em voz alta.

Faltam apenas sete dias para o desligamento oficial de Juliana, Paulo e Luiz. A contagem já começou, e apesar de tudo o que acontece ao redor, algumas despedidas pesam mais do que outras. Mesmo quando são necessárias. Mesmo quando são urgentes.

Naquele fim de tarde abafado, entre o barulho do martelete e o vai e vem dos funcionários tentando manter o ritmo, encontrei uma pequena pausa no meio do caos. Fui até a sala do estoque para assinar umas ordens de pagamento quando notei, sobre o balcão da copa, a garrafinha azul fosca da Clara esquecida. Aquela mesma, com o nome meio apagado, riscado de caneta. Um detalhe comum, mas que prendeu meu olhar por alguns segundos. Talvez pelo simples fato de eu saber exatamente de quem era.

Não sei explicar o motivo, mas acabei pegando um pedaço de papel do caderno de controle e escrevendo algo rápido. Nada muito pensado. Algo leve, quase como quem joga uma âncora discreta num dia que parece meio perdido.

"Se hoje estiver puxado, respira. Eu vejo o que consigo."
— V.

Dobrei o papel e prendi na lateral da garrafinha, de um jeito que só ela perceberia. Sem intenção de fazer disso um gesto marcante — era só uma forma simples de dizer que, mesmo com tudo acontecendo ao mesmo tempo, eu estava por perto.

Coloquei a garrafa no canto do caixa dela, entre os papéis e os itens de rotina. E voltei para o som das máquinas, para as fitas métricas, para os horários espremidos entre cimento e pedidos pendentes. Talvez ela nem comente. Talvez nem leia de imediato. E tudo bem. Não era sobre resposta. Era só sobre deixar um rastro — desses que só quem realmente repara, entende.

Foi enquanto eu falava com o eletricista, ali de canto, que meus olhos caíram na cena diante do caixa. Clara explicava algo para as meninas novas — com uma paciência rara, daquelas que nem sempre ela se permite ter. Tinha um jeito calmo nos gestos, uma firmeza suave na voz, e mesmo entre a movimentação do mercado e o barulho das obras, parecia que ela criava uma pequena bolha de atenção ali. E então, como num acaso cronometrado, ela encontrou o bilhete. Vi quando seus dedos tocaram a garrafinha e ela parou por um segundo, como quem reconhece mais do que apenas um papel preso por fita. Nenhuma reação escancarada — nem sorriso, nem suspiro. Mas havia algo no modo como ela guardou o bilhete, quase com reverência, como quem entende o cuidado silencioso de um gesto que não exige retorno. E ali, observando de longe, percebi que é isso o que mais me desconcerta nela: essa forma leve e sincera de dar atenção ao que quase ninguém vê. Clara é feita dessas entrelinhas. E talvez, só talvez... seja por isso que tem me atravessado de um jeito que nem eu sei explicar.

Não sei exatamente o porquê fiz isso. Talvez nem seja algo que se explique com clareza. Só sei que, naquele instante, quis estar diante dos seus olhos. Não como um acontecimento, nem como algo especial… só estar ali. Presente nos seus pensamentos, mesmo que por um segundo. Quis fazer parte do que a move, do que ela carrega em silêncio entre um turno e outro. E é estranho — porque não costumo querer ser vista assim, nem me importar tanto com a atenção de alguém. Mas com ela... é diferente. Como se bastasse um gesto simples pra que algo em mim se sentisse menos disperso. Mais ancorado.

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O acaso a meu favor - Página 40

 Continuação por Clara...

Assim que começou a dar o horário da Juliana entrar, comecei a agilizar meu caixa. Já sei que ela não é muito de chegar antes, então preferi ir organizando tudo para não deixar acúmulo. O mercado estava mais leve naquele momento — talvez por causa do silêncio temporário do Augusto, que tinha saído para o intervalo. Sempre tive esse tipo de percepção… ou análise, como gosto de chamar. E ali, sozinha com meus pensamentos, ela voltou com força.

Percebi, não de hoje, que por mais que a Juliana já tenha pisado na bola várias vezes por aqui, nunca vi o Augusto repreendê-la do jeito que costuma fazer comigo. Nunca uma voz mais alta, uma cobrança incisiva, muito menos uma advertência por escrito — mesmo depois de faltar por dias seguidos. E não é ciúme, nem vitimismo. É observação. Porque quando é comigo, basta um erro pequeno para ele jogar o peso do mundo sobre minhas costas, como se eu tivesse uma dívida constante a pagar.

Não entendo. Ou talvez entenda sim. Mas não gosto nem de pensar. Há algo ali, nas entrelinhas do tratamento, que incomoda — um tipo de diferença que ninguém diz em voz alta, mas que machuca por dentro. E nesse momento, entre um caixa fechado e outro abrindo, o que mais me bate é a sensação de injustiça silenciosa. Daquelas que não aparecem nos relatórios nem nos murais da empresa. Mas que se acumulam, dia após dia, dentro da gente. E com esse pensamentos, vejo Verônica saindo de algum lugar dos corredores e só depois, percebo que ela estava me observando.

Verônica apareceu na porta do estoque com a prancheta na mão e aquele olhar de quem enxerga tudo sem dizer de imediato. Encostei no balcão do caixa, fingindo que conferia os valores no visor, mas a verdade é que minha cabeça já não estava mais ali. Quando ela se aproximou, percebi que meus ombros estavam tensos demais. E foi aí que ela falou, baixo, como quem não queria invadir:

— Tá tudo certo com você?

Pensei em dizer que sim. Que era só mais um dia corrido. Mas meu silêncio durou mais do que devia, e Verônica, com aquela sensibilidade escondida por trás da firmeza, só me olhou. Me vi abrindo a guarda sem perceber.

— É que às vezes parece que o peso aqui dentro não é dividido igual, sabe?

Ela franziu o cenho, mas não respondeu de imediato. Esperei uns segundos, e continuei:

— A Juliana some dois, três dias, e nada. Nenhuma cobrança, nenhum olhar atravessado. Já eu… se deixo passar uma vírgula, o Augusto já vem com sermão, tom, e aquela pose de quem tá sempre certo. Eu só não entendo. Ou talvez entenda, mas... enfim.

Verônica apoiou a prancheta no balcão, ficou em silêncio por alguns segundos e disse, com uma calma que me desarmou:

— Eu já percebi também. E não pense que está passando despercebido. Só tenho sido estratégica sobre quando e como agir. Porque, às vezes, corrigir algo na frente de todo mundo só muda a aparência. Eu quero que mude a estrutura.

Aquilo me pegou desprevenida. A firmeza dela em silêncio, a forma como vinha observando tudo sem interferir com pressa. Me senti, pela primeira vez em muito tempo, validada. Como se alguém visse, de verdade, aquilo que vinha me corroendo por dentro.

— Obrigada por me dizer isso — falei, quase num sussurro.

Ela apenas assentiu, com aquele olhar sério que guarda tanta coisa, e antes de voltar ao estoque, ainda completou:

— Você não está sozinha aqui, Clara. E ninguém vai te fazer acreditar no contrário.

Ao ouvir aquilo de Verônica — aquela frase direta, firme e cheia de algo que me abraçou por dentro — não sei se me conforta ou me assusta. 

Porque sim, é um alívio imenso saber que ela enxerga, que ela está atenta às falhas que se escondem por trás das hierarquias e da rotina. É bom sentir que não estou sozinha nessa sensação de injustiça que engulo há tanto tempo. Mas, ao mesmo tempo… há um medo que se pendura em mim. Um medo sutil, mas presente.

Tenho receio de como os outros enxergam nossa proximidade. Já ouvi os cochichos, os olhares de canto, os risos abafados quando ela me chama para conversar na sala dela ou quando nossas trocas de palavras vêm com uma naturalidade que não exige esforço. A maioria não entende. Ou não quer entender. E aí surge a ideia venenosa: de que estou me beneficiando. Que estou "tirando casquinha". Que me aproximei dela por interesse.

Mas o que mais me assusta… é a possibilidade de um dia ela mesma pensar isso. De que, por mais que hoje nossos silêncios se entendam, por mais que haja uma conexão que nenhum papel explica, algum detalhe, alguma interpretação errada a faça olhar para mim de um jeito diferente. Que ela duvide da minha intenção. Do meu sentir.

E isso me apavora mais do que qualquer bronca do Augusto. Porque, se tem algo que estou tentando fazer com cuidado, é não sujar o que sinto com urgência ou expectativa. Tentar seguir, dia após dia, nesse equilíbrio frágil entre admiração, desejo e medo. Porque se ela duvidar de mim… tudo desaba.

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O acaso a meu favor - Página 39

Por Clara...

Hoje, como em tantos outros dias, sempre aparece um que confunde gentileza com 'ela tá me dando mole'. E, sinceramente, isso cansa. Chega a ser estressante ter que suportar o infeliz até que ele finalmente perceba — ou aceite — que não estamos interessadas. E ainda tem outra: será que é tão difícil assim perceber que eu gosto de mulheres? Será que não carrego isso no olhar, no jeito, na fala? Ou será que alguns escolhem não ver, porque só enxergam o que convém ao ego deles?

Hoje, quem me livrou de um cara inconveniente foi a Verônica. E, olha… ver ela chegar com aquele olhar sério, carregado de desagrado com a cena, me trouxe um alívio imenso. Ela não precisou dizer nada — a postura dela foi o bastante para o sujeito se tocar e ir embora. É nesses momentos que a gente percebe quem realmente nos protege. Porque, se fosse o Augusto, ele teria me repreendido. Ia dizer que eu estava dando 'liberdades', como se a culpa pelo incômodo fosse minha. Como se o mínimo de educação que ofereço já fosse um convite. E é exatamente esse tipo de pensamento que esgota. Principalmente vindo de um gerente.

A frase e o olhar da Verônica, no fim de tudo, me deixaram com uma leve, mas marcante, sensação de proteção. E isso, especialmente no meu ambiente de trabalho, onde tantas vezes preciso me manter firme sozinha, fez toda a diferença. Foi como se, naquele instante, eu pudesse respirar mais fundo. Saber que alguém está ali, atenta, pronta para intervir quando for preciso, me lembrou que não preciso carregar tudo sozinha — nem sempre.

Tirando esse episódio, aproveitei cada música que tocava no mercado. Afinal, eram justamente das minhas playlists favoritas. Aqueles sons, que eu mesma escolhi com tanto carinho, preenchiam o ambiente e, de algum jeito, também me preenchiam. Era como se, por alguns instantes, tudo estivesse em sintonia — o movimento do mercado, o ritmo das pessoas e até o meu próprio humor.

Pelo visto, Verônica está mesmo levando a sério aquela conversa sobre mudança de dentro pra fora. Hoje apareceu por aqui um senhor de cabelos grisalhos, com uma trena na mão, medindo cada canto do mercado. Eu, como boa curiosa que sou, ficava só de rabo de olho, acompanhando cada passo dele, tentando adivinhar o que ele pretendia com cada medição. Parecia que até as paredes iam passar por transformação. E, confesso, aquilo me deixou animada — mudanças, quando vêm com propósito, costumam trazer boas surpresas.

Às vezes, me pego observando Verônica em silêncio — na correria, nas decisões rápidas, nos detalhes que ninguém nota, mas que ela nunca deixa passar. É impossível não admirar a mulher que ela é. Forte, prática, mas também sensível às necessidades de quem está por perto. As mudanças que tem feito no mercado não são só para reerguer um negócio, mas para tornar o ambiente mais humano, mais justo. Já é tão dedicada aqui, tão incansável... fico imaginando como seria numa família, como ela se entrega, como cuida. E, nesses pensamentos, sinto um misto estranho de tristeza e curiosidade — tristeza por saber que alguém já pode ter essa sorte, essa mulher inteira nas mãos... e curiosidade por imaginar como seria tê-la ao meu lado, em silêncio, sem precisar dizer nada, só sendo quem ela é.

Não sei quando exatamente comecei a olhar pra Verônica com outros olhos. Talvez tenha sido aos poucos, como quem não percebe que está se aproximando do fogo até sentir o calor na pele. O fato é que, com o tempo, ela foi ocupando um espaço silencioso dentro de mim. E quanto mais tento entender o que é isso que sinto, mais me vejo querendo estar perto — não só por admiração, mas por um desejo que não se assume fácil.

É estranho desejar alguém que talvez nem imagine o quanto sua presença me atravessa. E mais estranho ainda é esconder isso todos os dias, disfarçando em olhares rápidos, piadas bobas, ou até num convite inocente pra almoçar. Às vezes, me pergunto se ela percebe. Se sente. Ou se sou só eu, nesse silêncio todo, tentando guardar algo que insiste em transbordar.

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terça-feira, 8 de julho de 2025

O acaso a meu favor - Página 38

Por Verônica...

Depois dessa reflexão toda — que, aliás, não costumo permitir nem sozinha —, levantei da cadeira com aquela inquietação boba que nem eu sabia explicar. Precisava fazer algo prático, algo que me trouxesse de volta pro controle. Decidi colocar uma música pra tocar no mercado, quebrar o silêncio metódico que geralmente reina ali, como tudo que eu planejo.

Abri o aplicativo no computador e, sem pensar demais, digitei direto: sertanejo. Sorri sozinha, lembrando da conversa que tive com Clara no meu escritório dias atrás — aquela discussão boba, quase provocativa, sobre música. Ela me acusando de gostar só de cantores mortos e eu tentando manter a pose. Mas o que ficou marcado mesmo foi o jeito como, sem pensar, ela soltou um “Ah, não, Vê... só hoje vai?!”

Foi instintivo, e eu lembro claramente do pânico nos olhos dela logo depois, tentando se desculpar, corrigir, engolir a palavra de volta. E eu ali, parada, absorvendo aquilo com um certo gosto. Vê. Foi tão natural. Quase íntimo.

Voltei ao presente com um leve calor no rosto. Escolhi a pasta com as clássicas, aquelas que ela citou com brilho nos olhos. Assim que a primeira música começou a tocar pelos alto-falantes, fui até a vidraça do meu escritório, aquele ponto estratégico de onde observo tudo sem ser notada.

Foi então que vi.

Clara, no caixa três, sem nem olhar pra cima, apontou a caneta para o ar com aquele gesto espontâneo, meio dançante, como quem diz: "Essa é boa, hein!"

E eu… ri. Um riso curto, sincero, escapando antes que eu conseguisse reprimir. Fazia tempo que algo me arrancava um sorriso assim — leve, desprevenido, sem custo.

Talvez, só talvez… essa história esteja começando a fugir do meu roteiro.


De onde estou, no alto do meu escritório envidraçado, tenho visão de tudo. Aprendi a observar sem ser vista — uma habilidade útil nos negócios… e, ultimamente, um vício silencioso quando se trata de Clara.

Vejo o movimento do caixa três com atenção. Clara está ali, como sempre, ágil, educada, mas tem algo diferente agora. Um rapaz está encostado no balcão. Não reconheço de imediato, talvez cliente novo — ou só mais um daqueles que confundem gentileza com convite.

Ele ri alto, exagerado, como se estivesse contando uma piada genial. E ela… não ri. Sorri com educação, mas tem os ombros tensos. Olha para o lado, brevemente. Tenta escanear os produtos mais rápido, mas ele continua ali, esticando o assunto. Mãos apoiadas demais no balcão. Corpo inclinado. Ar de quem acha que está encantando o mundo.

Sinto algo estranho apertar o peito. Uma mistura de incômodo, irritação… e um impulso que não costumo obedecer.

Levanto sem pensar. Desço as escadas com passos firmes, disfarçando a pressa. Passo pela sessão de pães, viro à esquerda, finjo checar uma prateleira. Quando chego perto, vejo com mais clareza: o desconforto no rosto de Clara é nítido. Ela me vê e, por um segundo, seus olhos brilham diferente. Um alívio contido. Mas nada muda na postura dela — profissional até o fim.

O rapaz ainda fala, agora sobre alguma festa, aparentemente tentando arrancar dela uma reação mais empolgada. Então me aproximo com um sorriso elegante e uma voz firme, mas doce o suficiente para não soar rude.

— Tudo certo por aqui, Clara?

Ela assente com um leve “sim”, mas eu noto o agradecimento escondido no olhar.

Viro então para o rapaz, mantendo o tom cordial:

— Boa tarde! Está encontrando tudo o que precisa na loja?

Ele me encara, desconcertado por um instante. Não esperava ser interrompido — muito menos pela dona do mercado. Sorri, sem graça, e balança a cabeça.

— Sim, sim… só conversando um pouco aqui com ela, né… o atendimento de vocês é ótimo.

— Fico feliz em saber — digo, ainda sorrindo, mas sem recuar um centímetro do meu lugar. Fico ali, ao lado de Clara, imóvel, firme, como um lembrete de que certos limites existem, mesmo quando não são ditos.

Ele pega as sacolas, agradece e finalmente vai embora.

Só então olho para ela de novo. Ela respira fundo, baixa os ombros, e diz num sussurro quase risonho:

— Achei que ele fosse acampar aqui.

Dou uma risada discreta.

— Achei melhor garantir que ele não montasse barraca.

Nossos olhares se encontram por um instante mais longo do que o normal. E eu me pergunto, pela centésima vez, desde quando me tornei alguém que desce pessoalmente para cuidar disso. E por que, com ela, parece que isso sempre vale a pena.


Subo as escadas de volta como quem tenta esconder um tropeço no próprio orgulho. Entro na sala, fecho a porta com calma, mas por dentro… estou longe de estar calma.

Me sento, respiro fundo, e olho para a tela do computador — mas não vejo nada. Meus olhos estão ali, mas minha cabeça ficou no caixa três. No gesto contido de alívio da Clara. No jeito como ela me olhou quando me viu chegando. Não foi só um “obrigada silencioso”. Foi mais. Foi confiança. Foi... entrega.

E isso me desmonta.

Porque eu não desço pro salão. Não “garanto o bem-estar de atendente”. Não me envolvo em situações que podem ser resolvidas com uma câmera de segurança ou um supervisor de turno. Mas com ela… tudo em mim parece contrariar minhas regras.

O que mais me incomoda — ou me assusta — é que eu nem hesitei. Levantei antes de pensar. Agi antes de calcular. E eu sempre calculo.

Sinto meu rosto esquentar só de lembrar da cena. A proximidade. A forma como fiquei ao lado dela, como se fosse algo natural. Como se eu... pertencesse ali.

Ela não disse muito depois. Mas aquele “Achei que ele fosse acampar aqui” me arrancou um sorriso que eu não me permitia há tempos. E minha resposta... até eu achei engraçada. Mas o que ficou mesmo foi o silêncio entre nós depois, aquele segundo de olho no olho em que tudo pareceu mais leve. Quase íntimo.

Agora aqui, sozinha de novo, sinto meu peito estranho. Nem dor, nem euforia. Um incômodo doce, se é que isso existe. Como se algo dentro de mim estivesse mudando de lugar. Lento, mas inevitável.

Talvez não seja só curiosidade. Talvez não seja só carisma. Talvez Clara tenha mesmo entrado — sem pedir licença — num lugar onde ninguém antes teve coragem de tocar.

E o pior é que… eu não quero que ela saia.

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segunda-feira, 7 de julho de 2025

O acaso a meu favor - Página 37

Continuação por Verônica...

Preciso manter em sigilo essa ampliação no mercado. Por enquanto, o único concorrente direto neste bairro é o mercado do Valentino — bem organizado, mas com pouca variedade. Minha intenção é crescer, oferecendo mais opções e melhores preços, com qualidade.

Quero que tudo pareça apenas uma reforma comum. Mas, na verdade, estou preparando um movimento estratégico para surpreender meu concorrente. Quando o assunto é concorrência, eu não brinco: quero ser a melhor, a mais forte, a mais criativa.

Queria tanto que meu pai estivesse aqui, vendo de perto cada passo do crescimento desse mercado. Queria que ele visse com os próprios olhos o quanto a união de dois irmãos pode transformar, valorizar e fazer crescer aquilo que ele construiu com tanto esforço e amor.

Me encosto na mesa de frente para vidraça que dá visão ao mercado e, vendo de forma ampla cada movimento, sinto meu corpo se preencher por algo difícil de explicar — talvez seja orgulho, por ter levado a sério cada ensinamento do meu pai. Igor não é diferente. Ele tem o jeito e a área dele. Percebo que está numa fase em que quer se dedicar mais à Lia, e não o critico por isso. Para ser sincero, tenho admiração.

Ao me sentir tão nostálgica, lembro da estrada que percorri para me tornar quem sou hoje. Filha de um pai sonhador. Dois filhos e um único sonho daquele homem: nos passar tudo o que pudesse, como forma de deixar a maior herança. Ele sempre nos ensinou que o mais valioso que deixaria não seria o dinheiro, mas o conhecimento.

Quando dei a notícia de que iria morar fora do Brasil, vi a tristeza nos olhos do meu pai. Mas ele não se opôs. Pelo contrário, me apoiou com a generosidade de quem sempre quis me ver voar, mesmo que longe. Ele sabia que aquilo fazia parte da minha jornada.

Quando abri minha pequena empresa, ele já estava bastante doente. Ainda assim, teve forças para me encorajar a continuar. Me pediu, com aquele jeito firme e amoroso, que eu permanecesse onde estava, focada no meu sonho. E eu segui, mesmo com o coração apertado.

Durante uma viagem a Caldas, recebi a notícia da sua partida. Ali, não perdi apenas um pai. Perdi um exemplo de ser humano, de força, de generosidade. Perdi um empresário inspirador, alguém que acreditava que a maior herança não era feita de bens, mas de princípios, trabalho e caráter.

Ainda hoje, cada passo que dou carrega um pedaço dele. Porque o que ele construiu — dentro e fora de nós — continua vivo.

E com esses pensamentos vou levando o dia. Hoje tenho algumas entrevistas para conduzir. Marquei com um rapaz às dez da manhã, mas até agora nada — o que, sinceramente, já não me surpreende. Aqui em Caldas Novas é assim mesmo: abre-se uma vaga, muitos se candidatam, mas poucos realmente aparecem.

Às quatorze horas tenho outra entrevista agendada, mas, pela primeira vez, confesso que torço para que o candidato não venha... Só para eu poder chamar a Clara para almoçar comigo. E ela, claro, não seria nem louca de recusar.

Clara tem sido meu respiro nos dias mais intensos. Com aquele jeito leve e uma risada que preenche os silêncios, ela me lembra que, mesmo em meio à rotina puxada e às responsabilidades, ainda há espaço para pausas, para conversas simples e para o afeto que a gente às vezes esquece de cultivar. Almoçar com ela seria como dar um pequeno presente ao meu dia — e eu ando precisando desses pequenos presentes.

Ainda bem que, quando propus que ela se afastasse, caso sentisse necessidade, Clara me olhou com firmeza e, com poucas palavras, disse que não queria ir embora. Só precisava de segurança — um chão firme — para continuar com nossos pequenos eventos. E eu entendi. Aquela menina… eu não sei explicar, mas a risada dela, as frases cheias de humor e espontaneidade, têm um poder estranho sobre mim. Me tiram de uma versão cansada, sobrecarregada, e me colocam de volta numa versão mais leve, mais viva. É como se, ao lado dela, tudo ficasse um pouco mais simples.

Eu preciso admitir a presença dela me desmonta mesmo eu me construindo para ser a mulher inabalável que acredito ser. Ela me faz rir de maneira fácil, quando eu me construir para não me deixar levar por coisas bobas, ela me faz ser quem eu treinei anos para não ser.

Eu preciso admitir: a presença dela me desmonta. E isso, mesmo depois de tantos anos me moldando para ser a mulher inabalável que acredito ser. Clara me faz rir com uma facilidade que me assusta. Eu, que me treinei para não me deixar levar por coisas bobas, que endureci o peito para não perder o foco… me vejo sendo exatamente aquilo que passei anos tentando controlar. Ela me desarma com gestos simples, me mostra que leveza também é força — e que não há fraqueza nenhuma em sentir.

Não conheço muito bem a Clara, mas já ouvi dizer que ela teve um relacionamento relativamente duradouro com outra mulher. Confesso que fico curioso para entender o que levou ao término. Será que, em outros ambientes, a Clara continua sendo a mesma pessoa? Ou será que ela muda, se adapta, talvez até esconda partes de si?

Não sei ao certo de onde vem essa curiosidade — ou preocupação — em querer conhecê-la melhor. Talvez seja apenas um sentimento confuso, ou talvez eu só esteja tentando entender algo nela que, de alguma forma, ressoa em mim.

Relacionamentos nunca foram pra mim. E não, não é papo de quem se feriu e agora finge que é mais forte. Eu simplesmente não vejo sentido. Já vi gente demais se perder tentando amar — perder o foco, o controle, a dignidade. Eu não. Sempre tive um compromisso maior: comigo mesma.

Sou egocêntrica, dizem. Calculista. Talvez. Mas nunca pedi pra agradar ninguém. Aprendi cedo que o mundo não é gentil com quem hesita, e eu jamais hesitei. Construir meu negócio do zero, derrubei muros, engoli desaforos, e hoje quem me olha com desdém... bom, geralmente está abaixo de mim na hierarquia.

Não gosto de me apegar. Compromisso, pra mim, é uma palavra que combina com metas, contratos, entregas no prazo — não com promessas vazias ou mãos dadas no fim do dia. Prefiro a solidão da minha rotina à bagunça emocional que vejo por aí.

Mas então… tem Clara.

A caixa desse supermercado. Nem sei quando comecei a notar. Ela está ali quase todos os dias — sorriso calmo, postura leve, parece alheia ao caos que ronda esse lugar. Por algum motivo ridículo, eu comecei a observá-la mais do que gostaria. E o pior: comecei a me perguntar coisas que nunca me permiti antes.

Não faz sentido. Ela é simples. Eu sou complexa — ou pelo menos gosto de pensar que sou. Mas, às vezes, quando passo por ela e ela me olha nos olhos... parece que algo em mim desarma. E isso, honestamente, me irrita. Me tira do controle. Me faz sentir... humana demais.

Eu não sei o que está acontecendo. Só sei que, pela primeira vez, minhas certezas estão começando a tremer. E talvez, só talvez, eu esteja começando a ver Clara com outros olhos.

E isso me assusta. Mas também... me intriga.

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sábado, 5 de julho de 2025

O acaso a meu favor - Página 36

Por Verônica...

Ao voltar minha atenção ao computador, vejo pelas câmeras Clara e Augusto conversando no caixa. Mas algo naquela cena me prende por mais tempo do que deveria. Não é só a proximidade — é o jeito como falam. Os gestos meio ríspidos, os olhos mais intensos do que o normal. Há tensão ali.

Eles parecem alterados, mas me forço a acreditar que seja só isso — orientações, talvez. Augusto tem esse jeito bruto mesmo, às vezes. E Clara… bom, Clara costuma segurar bem as pontas.

Mesmo assim, algo no meu estômago se contrai. Uma intuição incômoda, como se eu estivesse vendo só a ponta de um iceberg que preferia não descobrir o que esconde.

Tento não dar atenção. Viro o rosto, continuo oque estava fazendo. Mas a cena insiste em ficar comigo. Talvez porque, por mais que eu diga pra mim mesma que não tem nada, no fundo… eu já não tenho tanta certeza assim. Sair para pedir a explicação do Augusto em alguma mercadoria que não havia chegado, e depois voltei a meu escritório.

Voltei para minha sala, algo dentro de mim não sossegava. A possível conversa entre Clara e Augusto ainda rondava meus pensamentos. Não gosto de tirar conclusões precipitadas — não posso. Mas também não sou cega. Conheço o tom de voz de Augusto quando ele está dando orientação... e o de quando está pressionando alguém.

Passei a mão pelos papéis na mesa, tentando me concentrar, quando ouvi o motor de uma caminhonete estacionando. Levantei e fui até a porta para espiar. Um homem desceu, segurando uma prancheta e um capacete. Logo me veio à mente: o construtor. O projeto do açougue.

Respirei fundo. Uma parte de mim queria voltar a lidar com a tensão entre Clara e Augusto, mas a outra — a parte prática, que move esse mercado — sabia que havia coisas mais urgentes a resolver. Pelo menos por agora.

Fui até a porta de entrada.

— Bom dia — ele disse, simpático. — Sou o Raul. Vim conversar sobre a reforma e o início da construção do açougue.

— Claro, Raul. Bem-vindo — respondi, oferecendo um sorriso profissional. — Pode entrar, por favor. A gente conversa melhor lá dentro.

Enquanto caminhávamos, notei o olhar de Clara cruzando com o meu. Foi rápido. Atento. O suficiente para me lembrar de que ela percebe mais do que fala. Isso, por si só, já é algo a se observar.

Mas agora era hora de falar de cimento, prazos e plantas. Só que, mesmo com o barulho das ferramentas chegando, a pulga atrás da minha orelha ainda não tinha ido embora.

E eu nunca ignorei uma intuição minha.

Raul guardou a trena no coldre da cintura e passou a mão pela testa, enxugando o suor discreto. Tinha percorrido cada canto do mercado com olhar clínico, anotando tudo com precisão. Medidas, esquinas, reforços necessários. Era bom no que fazia — e rápido.

Fechei a porta do escritório atrás de nós, sentindo um alívio quase físico de estar de volta ao ar-condicionado. Raul se acomodou na cadeira à frente da mesa, desenrolando os papéis com a planta do novo açougue.

— A estrutura tá boa, Verônica. Dá pra trabalhar tranquilo aqui. Vai precisar só de reforço nas vigas da parede dos fundos, mas nada que complique o prazo — ele disse, marcando algo na folha com o dedo. — E se a senhora quiser, dá até pra integrar um pequeno balcão de atendimento direto pro salão.

Assenti, analisando cada linha com atenção.

— E o orçamento?

Ele virou a prancheta na minha direção, revelando os valores estimados, mão de obra, tempo previsto, tudo milimetricamente organizado.

— Aqui tá tudo detalhado. Como falamos antes, dá pra parcelar em três etapas, conforme a obra for avançando. E com o fornecedor que tenho, a gente consegue o material com desconto à vista — completou, me lançando um olhar de quem entende que tudo tem que caber no bolso também.

Peguei uma caneta e comecei a fazer algumas anotações ao lado.

— Pode me enviar isso por e-mail também? Assim eu deixo registrado com o contador.

— Mando ainda hoje — garantiu, já recolhendo os papéis.

Ficamos alguns segundos em silêncio. Eu olhei para ele, depois para a porta fechada. A movimentação do mercado seguia do lado de fora, abafada, como um mundo paralelo que eu comandava de dentro daquela sala.

— Raul — chamei, antes que ele se levantasse. — Discrição é importante pra mim. Essa reforma tem que ser tranquila. Sem bagunça, sem gente de fora demais, sem virar assunto entre os funcionários.

Ele assentiu, firme.

— Pode deixar. Comigo, serviço é no sigilo e no prazo.

— Ótimo — respondi, me levantando também. Estendi a mão para ele. — Negócio fechado, então.

Ele apertou minha mão com segurança.

— Fechado. Segunda-feira a gente começa.

Quando ele saiu, fiquei por um momento parada diante da mesa. O mercado estava prestes a mudar — fisicamente, sim, mas havia algo mais. Um novo ritmo, novas presenças, novos olhares.

E no meio disso tudo... pessoas que já estavam ali, mas que talvez eu estivesse começando a ver sob uma nova luz.

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O acaso a meu favor - Página 35

 Por Clara...

Quando Verônica passou por mim hoje, me cumprimentando, meu corpo reagiu de um jeito estranho. Por algum motivo, vê-la ali me trouxe uma sensação boa, quase um alívio. Mas, logo em seguida, me lembrei das palavras da Juliana. Na hora, me contive ao máximo e tentei me ocupar com qualquer coisa, só para evitar passar na frente daquele escritório.

Esse era o meu plano de agora em diante. Só que, quando comecei a achar que ele daria certo, Verônica mandou me chamar. Queria que eu fosse até o escritório. Naquele momento, meu corpo gelou.

Será que ela ficou sabendo dos comentários? Será que está achando que fui eu quem espalhou? Será que vai me ameaçar, dizendo que, se eu não me calar, posso ser mandado embora? Que posso acabar prejudicado no mercado?

São tantas perguntas, tantos medos misturados...

Eu só percebi que estava segurando uma flanela quando já estava de pé na frente do escritório. Era como se minha mente precisasse se agarrar a algo conhecido, algo concreto, pra não se perder na ansiedade.

Entrei esperando o pior. Depois dos comentários, das insinuações, da tensão no ar... não podia ser algo bom. Mas, conforme Verônica foi falando, as palavras não vieram como acusação, e sim como reconhecimento. E, por mais que eu tentasse resistir, aquilo me desmontou.

Senti meu corpo ceder, os ombros relaxarem, a tensão me abandonar aos poucos. E isso me fez pensar: por que a presença dela me afeta tanto? Por que o que ela diz tem esse peso sobre mim? Não é normal eu reagir assim.

A verdade é que estou começando a sentir algo que vai além da admiração profissional. É respeito, sim. É gratidão, também. Mas tem uma curiosidade, um brilho nos olhos quando ela entra na sala. Uma vontade de agradar, de ser notada — não pela chefia, mas por ela.

E isso me assusta. Porque não sei onde isso vai dar, nem se é recíproco, nem se é certo sentir isso dentro do ambiente em que estou. Mas o que sei é que, toda vez que ela fala comigo daquele jeito... eu esqueço, por um momento, de todos os riscos.

Saí da sala um pouco atordoada pelos sentimentos, mas aliviada por saber que ela não pensava o pior de mim. Meus passos ainda estavam leves demais para alguém que achava que sairia dali em apuros. Voltei para o caixa tentando retomar o foco, mas dei de cara com Augusto — e sua expressão fechada.

Assim que me viu, ele não perdeu tempo:

— Até que enfim, né? O que você aprontou pra levar um esporro tão demorado? — disse, já contornando o caixa para sair.

— Eu não tenho tempo pra ficar fazendo serviço dos outros, não! — reclamou, passando por mim sem nem me olhar direito.

Respirei fundo, tentando manter a calma. Então, soltei:

— Então, meu amigo... — ele já virava o corpo na minha direção, curioso.

— Cê reclama com ela.

Augusto parou por um segundo, me olhando como se não tivesse certeza se tinha ouvido direito.

— Como é que é? — ele perguntou, com um sorriso irônico que não chegava nos olhos. — Agora você tá mandando em quem eu devo reclamar?

— Não tô mandando em nada, Augusto — respondi, firme. — Só tô dizendo que se tá incomodado com o tempo que eu demorei, resolve com quem me chamou. Porque foi ela quem pediu pra eu ir.

— E você foi, né? Correndo. Igual um cachorrinho atrás de ossinho — ele cuspiu as palavras, carregadas de veneno. — Impressionante.

Fiquei em silêncio por um momento. O tipo de silêncio que corta mais do que grito. Ele sabia que tinha passado dos limites — e ainda assim, parecia satisfeito por isso.

— Você tá com algum problema comigo, é isso? — perguntei, encarando ele de frente.

— Não. Meu problema é com gente que esquece onde tá pisando — ele respondeu. — Com gente que acha que pode se escorar nos outros e depois posar de inocente.

— Engraçado… — respondi, cruzando os braços. — Porque, até onde eu sei, eu sempre fiz minha parte. E mais um pouco. Se alguém aqui anda se escorando, não sou eu.

Ele riu de canto, mas já não tinha resposta. Ficou apenas me encarando, como se estivesse tentando decidir se valia a pena continuar o embate ou não.

— Quer saber? — ele disse por fim, dando meia-volta. — Fica aí com tua chefe protetora.

E saiu.

Eu respirei fundo, tentando não deixar que aquilo me afetasse mais do que já tinha afetado. Mas era difícil. Porque, por trás da raiva dele, tinha algo mais. Inveja? Ciúme? Medo? Eu ainda não sabia. Mas sabia que aquela história estava longe de acabar.

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quarta-feira, 2 de julho de 2025

O acaso a meu favor - Página 34

 Continuação por Verônica parte lll...

 Chego ao mercado por volta das 9h da manhã. Ao estacionar, observo Clara jogando água na calçada. Percebo que ela já está terminando. Imagino que tenha notado minha chegada — é difícil não perceber. A presença do meu carro, parado ao lado do mercado, costuma anunciar minha chegada sem muito esforço.

Desço do carro e, a poucos metros dela, a cumprimento com naturalidade:

— Bom dia, Clara.

Ela levanta os olhos em minha direção e, com uma timidez contida — quase hesitante —, responde:

— Bom dia, Verônica.

Sua voz é baixa, cuidadosa, como se estivesse pisando em território sensível. E isso apenas confirma o que o Luiz me disse ontem. Clara está, de fato, tentando se afastar. Como se já tivesse aceitado que manter distância de mim fosse mais seguro.

Ofereço um sorriso leve, tentando quebrar a tensão, e sigo em direção ao mercado. Cumprimento o restante da equipe com um aceno breve. Logo vejo Augusto, com uma folha nas mãos que me parece ser o controle de mercadorias.

— Bom dia, Augusto! — chamo.

Ele levanta o olhar e logo se posiciona à minha frente, atento.

— Está melhor?

Ele responde com prontidão, num tom cordial:

— Bom dia, Verônica. Estou bem melhor, obrigado.

O analiso por um instante e percebo que, de fato, ele parece estar bem. Seu semblante está mais leve, e sua postura é firme. Aproveito que o movimento da manhã ainda está fraco, e decido agir.

— Chama a Clara no meu escritório, por favor.

Augusto me olha com certa surpresa, talvez esperando uma explicação que não virá. Não agora. Apenas sustento o olhar por um breve momento, depois lhe dou as costas e sigo em direção à minha sala.

Fecho a porta atrás de mim, tentando organizar meus pensamentos. Agora não é hora de emoção. É hora de clareza.

Sento-me à mesa, mas permaneço inquieta. Sei que, em poucos minutos, Clara entrará por aquela porta — e que o que for dito ali poderá mudar o rumo das coisas.

                                                       ..................................

Quando menos espero ouço leves batidas na porta, e deduzo ser Clara. Ao ter certeza a peço para entrar na sala e fechar a porta.

— Clara, tem um minuto? — perguntei, com a voz mais neutra possível.

Ela entrou hesitante, segurando uma flanela como se fosse escudo. Me olhou com aquela expressão de quem já estava esperando alguma coisa ruim. O que me cortou mais do que qualquer fala maldosa do dia.

Esperei ela se sentar, respirei fundo e fui direto ao ponto — mas com um tom baixo, quase gentil:

— Ouvi algumas coisas ontem pelos corredores. Coisas que não me agradaram. E que, sinceramente, me preocupam.

Ela me olhou surpresa. Eu continuei:

— Comentários... sobre você. Sobre mim. Sobre o fato de almoçarmos juntas às vezes, ou de você entrar no escritório com frequência.

Vi os olhos dela se arregalarem. A expressão encolheu. Estava quase pedindo desculpas sem palavras. Então, antes que dissesse qualquer coisa que não precisava dizer, fui clara:

— Você não está fazendo nada de errado, Clara. Eu sei que você é dedicada, honesta, e que está aqui porque merece. E se alguém insinua o contrário, o problema não é você. É a cabeça pequena de quem prefere apontar o dedo do que fazer o próprio trabalho com o mesmo empenho.

Ela não falou nada de imediato, só mordeu o canto da boca, tensa. Então eu terminei:

— Eu só queria que você soubesse que tem meu respeito. E que não deve abaixar a cabeça por algo que não fez. Se quiser parar de vir aqui no escritório ou evitar almoçar algumas vezes comigo pra não alimentar fofoca... eu vou entender. Mas não é o que quero. Só quero que você se sinta segura.

Pela primeira vez no dia, sinto que ela relaxou os ombros. Ainda em silêncio, assentiu de leve com a cabeça.

— Obrigada por me chamar aqui. — murmurou. — Acho que... eu precisava ouvir isso mais do que imaginava.

Eu apenas sorri. Não tinha mais nada a dizer. Mas naquela troca curta, silenciosa, ficou claro: a ponte entre nós não estava abalada — talvez só estivesse começando a se firmar.

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O acaso a meu favor - Página 33

 Continuação pela Verônica....

Como hoje dei folga ao Augusto, fiquei até o horário de fechamento. Aproveitei o período mais calmo da noite para revisar algumas informações no sistema, especialmente a ficha da funcionária Juliana.

Ao abrir o cadastro dela, não pude deixar de notar certos padrões que me chamaram a atenção. Vi que ela tem uma filha pequena — um bebê — e que há diversos atestados em nome dela e da criança. Muitos, até demais. Também encontrei várias faltas, algumas justificadas, outras não. E o que mais me incomodou foi a frequência: é como se sempre houvesse um motivo, uma ausência, uma brecha.

Fiquei em silêncio, encarando a tela. Não quero julgar antes da hora, mas algo nessa ficha não bate. Será que estou diante de alguém realmente sobrecarregada... ou alguém que aprendeu a se esconder atrás da justificativa certa na hora certa?

Fechei o sistema com uma leve inquietação no peito. Ainda não sei ao certo o que está acontecendo — mas tenho cada vez mais certeza de que tem algo aí que eu preciso entender melhor.


Ainda sentindo o peso da ficha de Juliana, decido abrir também a de Clara. Talvez por instinto, talvez para entender melhor o que está em jogo. E, assim que leio as primeiras linhas, sou surpreendida — mas dessa vez, de forma positiva.

O histórico de Clara é impecável. Nenhum atestado recente, nenhuma falta injustificada, nenhum registro disciplinar. Pelo contrário: presença constante, horários cumpridos com rigor, e anotações elogiosas vindas de turistas que avalia nosso mercado. Mas o que mais me chama a atenção são os registros feitos por Augusto.

Vejo várias observações indicando que Clara assumiu responsabilidades além de sua função de operadora de caixa — organizando estoque, apoiando na escala, cuidando de pequenos treinamentos com novos funcionários. E tudo isso escrito com um tom quase natural, como se fosse um direito dela fazer mais do que a função para a qual foi contratada. Como se ela devesse isso ao setor.

Franzo a testa. A dedicação dela é inegável, mas agora percebo uma sobrecarga disfarçada de confiança. Será que ela realmente quis assumir tudo isso? Ou será que, aos poucos, foi empurrada para ocupar espaços que não eram dela — e que agora estão sendo usados como justificativa para invejas e rumores?

Fecho a ficha com um incômodo crescendo dentro de mim. O problema é mais profundo do que parece. E talvez eu tenha deixado passar sinais importantes.

Faço algumas ligações para confirmar o início do projeto de construção do açougue, que será integrado à nova cozinha nos fundos do mercado. Há um espaço generoso ali atrás, que venho estudando há algum tempo. Quero aproveitar para reformar também o depósito de mercadorias — torná-lo mais funcional, organizado, à altura do crescimento que estamos buscando.

Já analisei nossa verba com cuidado, revisei as finanças e solicitei um pré-orçamento. Tudo parece dentro do possível, e agora só falta um passo: a visita do construtor, agendada para amanhã. Preciso que ele veja o espaço pessoalmente, avalie a estrutura, e, principalmente, entenda a dinâmica do nosso dia a dia.

Mesmo diante de tantas tensões internas, sigo com esse projeto. Porque, apesar de tudo, o mercado precisa continuar. E, de certa forma, tocar essa reforma também é uma forma de reorganizar o ambiente — física e emocionalmente.

Finalizamos a noite bem, graças aos céus. O movimento acalmou, os corredores foram esvaziando aos poucos, e vejo o pessoal se organizando para ir embora. Alguns riem discretamente, outros apenas agradecem e seguem em silêncio — cada um levando o dia consigo.

Fico mais um pouco. Preciso adiantar alguns relatórios antes de encerrar de vez. A rotina me dá certa paz, como se colocar números no lugar ajudasse a organizar também os pensamentos.

Mas enquanto os papéis se acumulam sobre a mesa, sei que ainda há algo que não posso adiar. Preciso conversar com a Clara. Sobre mais cedo. Sobre tudo o que veio à tona depois.

Decido que amanhã estarei aqui cedo. Não posso adiar essa conversa com Clara. Preciso esclarecer tudo de uma vez, por ela, por mim, e pelo ambiente ao nosso redor que começa a rachar em silêncio. Se for preciso tomar uma decisão difícil, que seja. Nem que doa. Mas que seja pelo bem dela — pelo bem de alguém que só tem dado o melhor, mesmo em meio a tanta desconfiança.

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O acaso a meu favor - Página 32

 Por Verônica...

Até agora, eu ainda não entendi o que aconteceu. Tirei os óculos e os pus sobre a mesa, afundando os dedos entre os cabelos, pensando: Mais um problema. E o pior — com a Clara envolvida. E ainda pior — envolvida de forma negativa.

Ainda não esclareci essa história, e, pra ser sincera, nem sei se quero. Estou sobrecarregada, com tantos problemas, tantas metas que precisam ser entregues antes da temporada de julho. Mal consigo respirar. Tudo parece se acumular ao mesmo tempo, e essa situação com a Clara veio como um peso extra que eu não pedi.

Vejo que, mesmo tendo agido com a intenção de fazer o certo, não me sinto bem por ter falado daquele jeito com ela. Observo Clara sair apressadamente, visivelmente atordoada, sem nem ao menos se despedir ou fazer aquela pequena festa que costuma fazer antes de encerrar o expediente. Aquela energia dela, sempre tão presente, hoje... sumiu.

Respiro fundo, e a culpa começa a me pesar no peito. Não era para ser assim. Não era para acabar assim.

Saio do escritório com a intenção de beber um copo de água — minha cabeça está prestes a explodir. No caminho, noto que um dos funcionários que está cumprindo aviso prévio permaneceu para finalizar a seção que o Augusto, no meio da confusão, não conseguiu organizar.

Enquanto encho um copo descartável de água e dou alguns goles, chamo por ele:

— Luiz.

Ele me olha, aguardando alguma ordem.

— Posso conversar um pouco com você no meu escritório?

O olhar dele muda imediatamente. Parece preocupado, como se tentasse, em silêncio, lembrar o que poderia ter feito de errado. Mas apenas larga o que estava fazendo e me segue, sem dizer uma palavra.

Ele entra no escritório, e logo peço que se sente. Ele obedece, ainda em silêncio. Viro minha cadeira, me posicionando de frente para ele, e pergunto com calma:

— Você estava próximo da situação das brigas entre as meninas... Pode me contar o que aconteceu?

Luiz me encara por um instante, visivelmente desconfiado. Pelo que percebo, ele é próximo das duas e parece relutante, talvez com medo de expô-las ou de causar algum problema maior.

Percebo sua hesitação e tento tranquilizá-lo, deixando claro que minha intenção não é prejudicar ninguém.

— Pode ficar tranquilo, Luiz. Nada do que me disser aqui será usado contra você ou contra as meninas — falo com sinceridade, olhando em seus olhos. — Mas alguma coisa aconteceu, e eu preciso entender. Quero evitar que isso se repita.

Ele respira fundo, ainda ponderando. Consigo ver no rosto dele o conflito entre a lealdade e o senso de responsabilidade.

Ao perceber que, de um jeito ou de outro, essa informação viria à tona — fosse dele ou de outro funcionário — Luiz cede.

— Parece que a Juliana insinuou que, por você e... — ele hesita. Tenta dizer o nome da Clara, mas a palavra não sai.

— Eu e...? — o incentivo com um olhar calmo, tentando passar confiança.

Ele baixa um pouco o olhar, respira fundo e, por fim, solta:

— Que você e a Clara, por estarem almoçando juntas algumas vezes... ou por passarem alguns minutos conversando no escritório... que ela estaria tendo privilégios aqui no mercado.

Fico em silêncio por um instante. O peso daquela suposição me atinge de forma amarga. Uma acusação velada, disfarçada de fofoca, mas que tem força suficiente para abalar relações, criar barreiras... e ferir.

Meu coração aperta. Não apenas pela injustiça da situação, mas pela forma como as coisas se espalham — silenciosas, cheias de veneno, sussurradas pelos cantos.

— Entendi... — murmuro, olhando fixamente para a parede por trás de Luiz, tentando digerir a informação. — E os outros funcionários? Elas comentaram algo, ou isso partiu só da Juliana?

Luiz balança a cabeça devagar, como se organizasse as lembranças antes de responder.

— No começo, só a Juliana. Mas depois... alguns começaram a repetir, sabe? Não com as mesmas palavras, mas com aquele tom. Como se tivessem comprado a ideia, mesmo sem provas. Foi aí que começaram os olhares atravessados, as indiretas... e aquele clima ruim.

Ele faz uma pausa, claramente desconfortável por estar expondo aquilo.

— Eu sei que a Clara.... ela irá se afastar um pouco por causa disso. E... sinceramente, deu pra ver que ela ficou bem abalada.

Fecho os olhos por um segundo, sentindo um nó se formar na garganta. A dor de saber que algo tão mesquinho conseguiu corroer o ambiente que lutei tanto para manter saudável é indescritível.

— Obrigada por ser honesto comigo, Luiz. Eu sei que isso não é fácil. — digo, com um leve aceno de cabeça.

Ele parece aliviado por ouvir isso, mas ainda inseguro. Então completa:

— Só... só tenta não deixar isso piorar pra elas, tá? Sei que você é justa. Só achei que você devia saber.

— Pode deixar. É exatamente por isso que estou tendo essa conversa. Preciso entender o que está acontecendo pra agir da forma certa. — respondo, firme.

Silêncio. Por um instante, apenas o som distante dos caixas e dos corredores preenchendo o espaço entre nós. Depois, Luiz se levanta devagar.

— Posso voltar lá fora?

— Pode sim, Luiz. E mais uma vez... obrigada.

Ele sai, e quando a porta se fecha atrás dele, me vejo ali, sozinha, sentindo o peso de mais uma camada dessa história — a que corre nos bastidores, longe dos olhos, mas que faz tanto estrago quanto um confronto direto.

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terça-feira, 1 de julho de 2025

O acaso a meu favor - Página 31

 Continuação da cena por Clara - Parte ll...

Ao sair do banheiro, a encontro mais relaxada. Está sentada no sofá, os ombros menos tensos, o olhar um pouco mais leve. Um sorriso involuntário me escapa — vê-la bem, mesmo que por instantes, ainda mexe comigo. Por reflexo, quase sem pensar, a convido para jantar. Ela aceita sem hesitar, como se ainda fôssemos nós, como se nada tivesse se quebrado entre aquele "oi" e esse agora.

Ela começa a arrumar a mesa com a naturalidade de quem já pertenceu àquele espaço. E eu vou para a cozinha, assumindo o comando da comida. Não trocamos muitas palavras. O silêncio não era hostil, mas tampouco era confortável. Era... suportável.

E aí, no meio daquele silêncio cheio de pratos e talheres, eu percebi: era isso o que sempre tínhamos tido antes do fim. Suportável. Nunca foi exatamente paz — era apenas uma ausência momentânea de guerra. Um cuidado constante em não pisar forte demais, em não falar alto demais, em não sentir demais.

Era como viver sobre uma superfície fina de gelo — e eu sempre soube que, um dia, isso iria romper.


Lembro com nitidez dos momentos em que tentei alcançá-la. Tentava chamar sua atenção com palavras brandas, com gestos, com um amor quase desesperado por salvar o que ainda restava. Tentava arrancá-la daquela ira que parecia morar em seu peito — mas, invariavelmente, quem acabava ferida era eu.

A cada tentativa de diálogo, a cada vez que me abria para dizer o que me doía, o retorno era o silêncio. Ou pior: o descaso, aquele olhar perdido que me dizia que minhas dores não tinham importância. Como se eu fosse invisível no meio do furacão que ela mesma carregava.

E hoje, olhando para tudo com a distância que a solidão permite, percebo que ficar sozinha foi, talvez, o maior presente que ela pôde me dar. Porque ali, naquele abandono, eu finalmente me libertei. Me libertei da necessidade constante de consertar o inquebrável, de entender o que não era meu para curar. Me libertei da guerra que, por tanto tempo, travava sozinha em nome de um “nós” que só existia na minha esperança.

Sentamos à mesa. A comida entre nós é simples, mas quente — quase reconfortante. Bento se enrola aos pés de Camila, como se ela nunca tivesse partido. Ela sorri com isso, pega um pedaço de pão, mas hesita antes da primeira mordida. Sinto no ar que ela quer falar. A respiração mais longa, o olhar que evita o meu, os dedos inquietos na borda do copo.

— Clara... — começa, finalmente. A voz dela é baixa, como se pisasse em território sagrado. — Sobre esses meses... sobre o sumiço...

Levanto os olhos devagar, sem pressa. Ela continua:

— Eu não sabia como voltar. Tinha medo do que você ia dizer. Medo de me encarar depois de tudo que eu...

— Camila. — a interrompo, sem levantar o tom, mas com firmeza. — Talvez hoje não seja o melhor dia pra isso.

Ela engole o resto da frase como se tivesse gosto amargo. Olha para o prato, balança a cabeça levemente, em silêncio. O clima muda, mas não explode. Só se torna mais denso, mais cheio de tudo o que não está sendo dito.

— Eu entendo. — ela murmura, quase para si mesma.

Continuamos a comer. Mastigamos o jantar, e com ele, todas as palavras engasgadas entre nós. Às vezes, nossos olhos se cruzam, mas nenhum de nós segura o olhar por muito tempo.

Terminamos o jantar em silêncio, cada um mergulhado no próprio prato, no próprio passado. Os talheres descansam agora sobre os pratos vazios, e Bento, já satisfeito com os carinhos e a presença, se acomoda num canto, observando tudo com olhos semicerrados.

Camila se levanta devagar, como quem entende que o tempo ali acabou — não só o do jantar, mas o do que restava entre nós. Ela começa a juntar os pratos com o mesmo cuidado com que, um dia, eu tentei juntar os pedaços de algo que ela mesma quebrou.

— Eu... — ela começa, mas para no meio da frase, com os olhos presos aos meus por um breve instante. Não há raiva, nem mágoa. Apenas cansaço e o eco do que já fomos.

Me levanto também, caminhando até a porta antes que as palavras voltem. Não quero mais explicações. Algumas coisas, quando ditas, só machucam mais.

Ela entende. Camila sempre soube ler silêncios melhor do que palavras.

— Obrigada por hoje — diz por fim, com uma honestidade rara, talvez pela primeira vez em muito tempo.

— Cuida de você — respondo, e minha voz sai firme, mesmo com o nó na garganta.

Ela sorri, triste. Um sorriso de despedida, de quem entende que o retorno talvez não seja mais possível — e que, no fundo, nunca foi.

Abro o portão. Ela passa por mim devagar, e antes de seguir pela calçada, se vira uma última vez. O olhar dela se prende no meu por alguns segundos que parecem eternos. Nenhum de nós diz nada.

Ela vai.

E, assim, eu fecho a porta. Sem pressa. Sem drama. Apenas fecho.

E pela primeira vez em muito tempo, sinto que algo dentro de mim também começa a se fechar — mas em paz.

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