quinta-feira, 7 de agosto de 2025

O acaso a meu favor - Página 47

 Por Clara....

Ao assumir o caixa, percebo uma movimentação mais intensa no mercado — tanto por causa da reforma quanto pelo aumento no número de clientes. Verônica havia ajustado o mix de produtos, priorizando os mais procurados no momento. Deu atenção especial aos itens sem glúten e zero lactose, atendendo à demanda que os clientes havia expressado com tanta clareza.

A procura por esses produtos foi tão intensa que não só esvaziou as prateleiras, como também zerou o estoque. Precisei da ajuda de um dos repositores durante toda a noite só para conseguir embalar as compras — não dava conta de atender e ensacar ao mesmo tempo.

Faltando duas horas para o fechamento, finalmente pude respirar. Acabei ficando com a Diana até o fim, e consegui convencer a Verônica de que ela ainda não estava pronta para encarar um movimento tão intenso. Mas, no fundo, a verdade era outra: por algum motivo que eu ainda não entendia, tudo o que eu mais queria... era estar ali. No mercado.

Com o movimento começando a acalmar, vi os pedreiros da obra se despedirem da gente no caixa com aquele bom humor cansado de fim de turno. Sorri de volta, tentando relaxar os ombros pela primeira vez em horas. Aproveitei a brecha e pedi licença à Diana para beber um pouco de água e ir ao banheiro. Ela assentiu com um aceno leve, e eu peguei minha garrafinha — aquela mesma — e segui pelo corredor estreito que levava aos fundos do mercado.

Lá atrás, entre o bebedouro e o banheiro, o silêncio era diferente. Mais íntimo. Mais meu. Desde o dia do bilhete, deixo a garrafinha sempre no mesmo canto. É um gesto bobo, quase infantil, mas vai que... vai que ela escreve de novo. Vai que eu não sonhei. Vai que ela, em algum lugar ali dentro, me viu.

A porta do escritório estava fechada — sinal de que ela devia estar ocupada. Mas, sinceramente, o que eu esperava? Que ela estivesse me esperando? Com aquele sorriso lindo, sereno, e o olhar confortavelmente cansado... mas ainda assim cheio de paciência quando o assunto era importante?
Sim. Talvez eu quisesse exatamente isso.

Talvez eu quisesse ser esperada.

Suspirei e continuei meu caminho até o banheiro. Fiz o que tinha que fazer ali, sem pressa, como quem tenta esticar o tempo num lugar onde, por algum motivo, começa a se sentir menos sozinha. Ao passar em frente à porta e vê-la ainda fechada, peguei minha garrafinha com um certo desânimo. Tinha algo no silêncio daquele corredor que me fazia sentir invisível. Segui em direção à entrada, pronta para voltar ao caixa e me juntar à Diana, quando ouvi o clique da maçaneta e, em seguida, meu nome ser chamado.

Paralisei. Como se um feitiço tivesse me atingido.

Por um segundo, achei que fosse coisa da minha cabeça — uma alucinação boba da mente cansada, faminta por atenção. Mas o som era real. A voz era dela. Verônica.

E naquele instante suspenso, tudo em mim quis acreditar que ela não me chamou por acaso.

 Virei devagar, tentando manter a expressão neutra, mesmo com o coração acelerado.

Verônica estava ali, parada na porta entreaberta do escritório, com as mangas da blusa levemente arregaçadas e os olhos cansados — mas atentos. Sempre atentos.

— Você tem um minuto? — perguntou, com a voz baixa, como se não quisesse interromper demais.

Assenti, me aproximando.

— Claro. Precisa de algo?

Ela deu um passo para o lado, abrindo mais espaço na porta, mas sem perder aquele cuidado que parecia pesar em cada gesto.

— Entra um instante, por favor.

O escritório estava do jeito de sempre: organizado, funcional, com a cadeira dela girada para o lado, como se tivesse acabado de levantar. Ela se encostou na beirada da mesa, enquanto eu permaneci de pé, segurando a garrafinha como se fosse meu calmante.

— Eu só queria saber como você está — disse, com um tom que tentava soar objetivo, mas deixava escapar uma preocupação real. — Hoje foi mais do que o esperado, e você ficou até o fim... sei que não é sua responsabilidade absorver tudo.

— Eu fiquei porque quis — respondi, mais rápido do que pretendia. — Achei melhor assim. E, sinceramente, não queria sair correndo. Gosto de estar aqui.

Ela assentiu devagar, o olhar abaixando por um instante.

— Eu notei. E por isso mesmo... se algum dia ficar demais, você pode me falar. Eu tô tentando manter o controle de tudo, mas às vezes não enxergo quem tá sobrecarregado até ser tarde demais.

Fiquei em silêncio por alguns segundos, absorvendo aquilo. Era uma preocupação profissional. Mas também havia algo mais. Algo que pairava no ar, sutil, mas vivo.

— Eu te aviso — falei por fim, suavemente. — Obrigada por perguntar.

Verônica sorriu de leve, aquele sorriso contido que não se entrega de primeira.

— Bom... era só isso. Pode voltar quando quiser. A Diana segura um pouco se precisar respirar mais.

Assenti, me virando para sair.

— Verônica?

Ela ergueu os olhos na mesma hora.

— O bilhete… foi você, né?

Um silêncio breve. Um segundo de hesitação. Depois, ela apenas respondeu:

— Foi.

E nada mais.

Eu saí do escritório sem olhar para trás, com a sensação de que algo havia sido dito — mesmo sem palavras.

Próxima página - O acaso a meu favor ...Página 48

Nenhum comentário:

O acaso a meu favor - Página 74

  Continuação — O beijo… por Verônica O “quase” entre nossas bocas dura longos segundos — segundos que esticam o mundo, que dilatam o ar ao...