Por Clara...
Ao desligar o celular, ainda meio zonza, me sento na beira da cama. O corpo tá preguiçoso, mas a cabeça já começou a rodar com tudo que me espera dali a pouco.
Olho pro pé da cama e vejo o Bento, completamente estirado, do jeito mais dramático possível — patas pra cima, barriga exposta, como se o mundo não exigisse nada dele.
Solto uma risada baixa, daquelas nasais, sem nem conseguir evitar.
— Ai Bento, queria ser você por um dia... — murmuro.
Mas não sou. Então levanto.
Primeiro passo: rotina felina. Limpo a caixa de areia com um certo orgulho (e uma careta), troco a água, coloco ração nova. Ele nem se mexe. Só quando me abaixo pra dar aquele beijinho na cabeça dele é que abre um olho preguiçoso, como quem diz “Sério humana?”.
— Mal acostumado... — brinco, sorrindo.
Sigo pro banheiro. O banho é rápido, prático. Escovo os dentes debaixo do chuveiro mesmo, pensando na correria que já me espera. A mente corre, mas o corpo vai despertando.
Ao sair, pego o uniforme e quase solto um suspiro de gratidão.
— Graças a Deus que lavei ontem. — penso, aliviada, enquanto visto a camisa e amarro o cabelo.
Olho no espelho. Ainda tô com cara de sono, mas os olhos já estão decididos.
Chego no mercado e já sinto o ar denso, como se o lugar tivesse absorvido toda a tensão da manhã. Empurro a porta com cuidado e entro. O som do movimento já me abraça: caixas sendo organizadas, o bip rápido do leitor de código, o vai e vem dos meninos no estoque.
Mas meus olhos vão direto pra ela.
Verônica está atrás do balcão, de pé, com uma pilha de notas fiscais numa mão e o celular na outra. Quando me vê, ela congela por um segundo.
Vejo rostos apressados, caixas se acumulando, e no meio do caos... ela.
Verônica.
Está ali, de pé, corpo rígido, olhos vasculhando tudo ao mesmo tempo. E nesse segundo, eu entendo tudo.
O alívio dela me atravessa.
Ela não sorri com a boca, mas os olhos suavizam como se, enfim, pudesse respirar. Me aproximo e apenas balanço a cabeça, como quem diz: “Tô aqui.” Ela responde com um olhar que mistura gratidão, cansaço e um pedido mudo de “fica.”
E eu fico.
Mas antes que eu assuma o caixa, cruzo com o Augusto. Ele já me viu, mas finge surpresa.
Se aproxima com aquele sorrisinho meio irônico, meio forçado. O tipo de sorriso que não chega nos olhos.
— Uau... não achei que você viesse. — diz, como quem elogia, mas empurra veneno por trás.
— Pois é... — respondo, sem dar espaço. — Verônica precisava.
Ele levanta uma sobrancelha, disfarçando o incômodo.
— Claro, claro... sempre bom ver quem tá disposto a sair da cama na folga.
O tom é leve, mas a cutucada está ali.
Sorrio de lado, sem perder o compasso.
— Sempre bom ver quem ainda consegue se surpreender com responsabilidade, né?
Ele engole seco, mas não responde. Apenas entrega a chave do caixa com um movimento apressado e vira as costas.
Não digo mais nada. Só caminho até meu posto, com a cabeça erguida. Porque hoje eu não vim por ele.
Vim por ela. Por Verônica.
Sento no caixa com cuidado. Passo álcool nas mãos, ajeito o uniforme e respiro fundo. Por dentro, ainda tô tentando acordar direito, mas o corpo já entrou no ritmo.
Não vim pra salvar nada. Nem acho que tô fazendo algo grande. Só... não consegui dizer não.
Verônica precisava. E eu senti que devia estar aqui. Simples assim.
Levanto os olhos e vejo ela me olhando de longe. O rosto cansado, os ombros mais soltos agora. E por um instante, nossos olhares se cruzam.
Ela não diz nada. Mas o jeito como me olha me faz sentir que fiz a coisa certa.
E isso, pra mim, já é muito.
Não me vejo como indispensável. Nem acho que sou melhor que ninguém. Só quero ajudar quando posso, e hoje eu pude.
Talvez seja porque vejo nela algo que admiro — essa força de continuar, mesmo quando tudo tá caindo aos pedaços. E se ela, com tanto mais nas costas, não desiste... então eu também posso levantar da cama e vir somar.
Não vim pra brilhar, nem pra aparecer.
Vim porque me importo.
E isso, no fundo, é o que mais me move.
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