Por Clara...
Ultimamente, venho mais cansada que o normal. Não é só o corpo — é um tipo de exaustão que mora entre o peito e a cabeça, como se até os pensamentos estivessem arrastando os pés. Sinto um reboliço estranho, como se dentro de mim houvesse uma sala em reforma: sentimentos antigos saindo aos trancos, fazendo barulho, enquanto outros, novos e sem nome, vão entrando devagar, ocupando espaços que nem sei se estão prontos. É tudo muito rápido, muito intenso, e eu… eu ainda estou tão ferida. Carrego rachaduras que finjo que já cicatrizaram, mas que, quando tocadas de jeito certo — ou errado —, voltam a arder. Por isso, esses indícios que vêm se manifestando no meu peito, especialmente por ela, me assustam. Porque não sei se são reais, ou só mais uma fantasia tentando se agarrar em algo bonito. E porque, no fundo, tenho medo de não conseguir sustentar de novo algo que me faça sentir tanto.
Foi no fim da tarde daquele mesmo dia, quando o calor já começava a recuar e o mercado entrava naquele ritmo mais morno. Eu estava repondo umas sacolas no caixa quando olhei para a sala envidraçada da gerência. Verônica estava lá, sentada de lado na cadeira, a mão apoiando a testa e o olhar perdido em algum ponto fora da janela. Não havia nada de grandioso na cena, mas algo nela me prendeu. O corpo dela parecia pesado — não de sono, mas de quem carrega muita coisa no silêncio. Eu a conheço o suficiente pra saber que, quando está assim, se esconde atrás de tarefas. Que prefere parecer ocupada do que vulnerável.
Esperei uns minutos, e quando ela saiu da sala, indo em direção ao estoque, deixei sobre sua mesa um dos cafés que havíamos feito para os funcionários. Sem bilhete, sem palavra, sem gesto chamativo. Só deixei ali. E voltei pro meu lugar. Ela viu. Pegou o copo. E antes de entrar no corredor dos fundos, por um segundo, me olhou. Um olhar rápido, mas cheio de coisa não dita. E foi só isso. Mas foi o bastante pra mim. Porque às vezes, quando a gente reconhece a dor do outro em silêncio, a gente diz mais do que qualquer frase bonita.
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Me senti bem em ensinar para as meninas coisas e detalhes que, lá no começo, ninguém se deu ao trabalho de me mostrar. Coisas simples, mas que fariam tanta diferença se tivessem me dito. Senti como se, de alguma forma, estivesse quebrando um ciclo — aquele em que a gente aprende na marra, apanha calada, e depois repete a mesma frieza com quem chega. Não quis ser assim. Ensinar com paciência foi como oferecer à elas o que eu mesma precisei e não tive. E, no fundo, acho que também era um jeito de cuidar de mim. Como se cada explicação dada fosse também um abraço atrasado à Clara que um dia se sentiu sozinha demais atrás de um caixa tentando dar conta de tudo sem entender nada.
Ultimamente, venho ficando sensível demais, como se estivesse andando com a pele virada do avesso. Às vezes sinto que todo mundo vê — menos quem eu gostaria que visse. E talvez essa sensação tenha algo a ver com meu pai. Rogerio sempre foi um homem seco, do tipo que ama em silêncio, no máximo com um prato de comida deixado na mesa. Fomos só nós dois desde que minha mãe foi embora com outro homem — eu tinha sete anos, ele não disse uma palavra, só ficou. E mesmo assim, quando contei que era mulher que me fazia o coração bater, ele recuou como se tivesse levado um choque. Não me cortou da vida dele, mas também nunca mais a olhou do mesmo jeito. Liga no Natal, aparece com uma sacola de frutas de vez em quando, pergunta da saúde — mas desvia o olhar se toco em qualquer coisa que diga respeito a quem eu sou de verdade. E eu… fico ali, tentando me contentar com as migalhas desse amor torto, que não me rejeita, mas também não me acolhe.
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