quarta-feira, 16 de julho de 2025

O acaso a meu favor - Página 41

 Por Verônica...

Já se passaram alguns dias desde o desabafo da Clara, e de lá pra cá, tenho percebido ela mais silenciosa. Não aquele silêncio calmo de quando está concentrada, mas um tipo de silêncio que esconde coisa demais — como quem carrega perguntas não respondidas. E, para ser sincera, isso me inquieta. Só que, dessa vez, não estou conseguindo acompanhá-la de perto como gostaria. A obra tomou conta do meu tempo, da minha atenção, e até dos meus passos. Em pleno funcionamento do mercado, ainda tem gente medindo, batendo, serrando e subindo estruturas por cima do movimento. Um caos funcional.

Por conta disso, mantive o horário estendido das sete da manhã às dezoito horas, e reorganizei a equipe para conseguir dar conta sem sobrecarregar ninguém. Alguns entraram mais cedo para poder sair cedo, outros se adaptaram como deu. No meio disso tudo, a cabeça trabalha em mil lugares ao mesmo tempo, e ainda assim… me pego desviando o olhar vez ou outra na direção dela. Só pra ver se está tudo bem. Mas ela tem se mantido distante, contida. E eu entendo — às vezes, é preciso recuar para processar o que não se consegue dizer em voz alta.

Faltam apenas sete dias para o desligamento oficial de Juliana, Paulo e Luiz. A contagem já começou, e apesar de tudo o que acontece ao redor, algumas despedidas pesam mais do que outras. Mesmo quando são necessárias. Mesmo quando são urgentes.

Naquele fim de tarde abafado, entre o barulho do martelete e o vai e vem dos funcionários tentando manter o ritmo, encontrei uma pequena pausa no meio do caos. Fui até a sala do estoque para assinar umas ordens de pagamento quando notei, sobre o balcão da copa, a garrafinha azul fosca da Clara esquecida. Aquela mesma, com o nome meio apagado, riscado de caneta. Um detalhe comum, mas que prendeu meu olhar por alguns segundos. Talvez pelo simples fato de eu saber exatamente de quem era.

Não sei explicar o motivo, mas acabei pegando um pedaço de papel do caderno de controle e escrevendo algo rápido. Nada muito pensado. Algo leve, quase como quem joga uma âncora discreta num dia que parece meio perdido.

"Se hoje estiver puxado, respira. Eu vejo o que consigo."
— V.

Dobrei o papel e prendi na lateral da garrafinha, de um jeito que só ela perceberia. Sem intenção de fazer disso um gesto marcante — era só uma forma simples de dizer que, mesmo com tudo acontecendo ao mesmo tempo, eu estava por perto.

Coloquei a garrafa no canto do caixa dela, entre os papéis e os itens de rotina. E voltei para o som das máquinas, para as fitas métricas, para os horários espremidos entre cimento e pedidos pendentes. Talvez ela nem comente. Talvez nem leia de imediato. E tudo bem. Não era sobre resposta. Era só sobre deixar um rastro — desses que só quem realmente repara, entende.

Foi enquanto eu falava com o eletricista, ali de canto, que meus olhos caíram na cena diante do caixa. Clara explicava algo para as meninas novas — com uma paciência rara, daquelas que nem sempre ela se permite ter. Tinha um jeito calmo nos gestos, uma firmeza suave na voz, e mesmo entre a movimentação do mercado e o barulho das obras, parecia que ela criava uma pequena bolha de atenção ali. E então, como num acaso cronometrado, ela encontrou o bilhete. Vi quando seus dedos tocaram a garrafinha e ela parou por um segundo, como quem reconhece mais do que apenas um papel preso por fita. Nenhuma reação escancarada — nem sorriso, nem suspiro. Mas havia algo no modo como ela guardou o bilhete, quase com reverência, como quem entende o cuidado silencioso de um gesto que não exige retorno. E ali, observando de longe, percebi que é isso o que mais me desconcerta nela: essa forma leve e sincera de dar atenção ao que quase ninguém vê. Clara é feita dessas entrelinhas. E talvez, só talvez... seja por isso que tem me atravessado de um jeito que nem eu sei explicar.

Não sei exatamente o porquê fiz isso. Talvez nem seja algo que se explique com clareza. Só sei que, naquele instante, quis estar diante dos seus olhos. Não como um acontecimento, nem como algo especial… só estar ali. Presente nos seus pensamentos, mesmo que por um segundo. Quis fazer parte do que a move, do que ela carrega em silêncio entre um turno e outro. E é estranho — porque não costumo querer ser vista assim, nem me importar tanto com a atenção de alguém. Mas com ela... é diferente. Como se bastasse um gesto simples pra que algo em mim se sentisse menos disperso. Mais ancorado.

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