Continuação por Clara...
Tem coisas que a gente não percebe que carrega até o momento em que elas pesam tanto que começam a nos fazer andar torto. E acho que é isso que a relação com meu pai fez comigo: me ensinou, sem palavras, a me proteger até mesmo de quem eu amo. Ou talvez, principalmente deles.
Rogério sempre foi um homem de presença seca. Um daqueles pais que fazem tudo “certinho”, mas sem deixar espaço para o afeto escapar. Não faltou comida, nem escola, nem presença física. Mas, ao mesmo tempo, faltou tudo. Quando minha mãe nos deixou, fugindo com outro homem e me levando só até a metade do caminho da infância, foi ele quem ficou. Mas ficou no corpo, não no colo. Nunca conversamos sobre a dor. Ele trancou tudo por dentro e eu aprendi a fazer o mesmo.
Cresci assim: com um amor que não me tocava. Com um cuidado que existia, mas não aquecia. Quando contei que gostava de mulheres, já morando sozinha, ele reagiu com aquele mesmo silêncio cortante de sempre. Não gritou, não discutiu, mas o que não disse foi mais barulhento do que qualquer resposta. Me afastou devagar. Liga nos aniversários, aparece uma vez ou outra com alguma desculpa boba — mas nunca mais me olhou da mesma forma. E eu, mesmo sabendo disso, continuo desejando o que nunca recebi: um reconhecimento inteiro. Um orgulho verbalizado. Um amor sem condições.
Essa ferida quieta moldou tudo. Me ensinou que não vale a pena mostrar quem você é por completo, porque pode ser que até quem te ama não fique. Que não se pode esperar demais, porque esperar dói. Então fui ficando boa em manter distância, mesmo quando o peito queria se aproximar. Virei especialista em risos curtos, em desvios de olhar, em evitar vulnerabilidades com uma piada ou uma mudança de assunto. Virei alguém que observa, mas não confessa. Que sente, mas não diz.
E agora, com Verônica, algo começa a sair do controle. Porque ela tem aquele tipo de presença que vê sem perguntar, que toca sem invadir. E isso me desconcerta. Me deixa com medo. Porque o afeto dela — mesmo silencioso — me lembra tudo aquilo que não tive. E me mostra o quanto eu ainda estou armada. Ainda estou tentando proteger uma parte de mim que não aprendeu a confiar que, dessa vez, talvez seja diferente.
O problema é que o amor, mesmo disfarçado, exige entrega. E eu ainda não sei se sou capaz. Ainda estou presa num padrão velho, num medo antigo de ser deixada se mostrar demais. E, pior, de ser amada de volta. Porque aí sim, o risco seria real. O risco de depender de alguém. O risco de ser feliz — e perder. Como meu pai, que ficou... mas pela metade. E eu cresci acreditando que é isso que me cabe: metades.
Mas não é só o passado com meu pai que me prende. Tem também Camila. E esse talvez seja o medo mais difícil de admitir: o de que Verônica, por mais diferente que pareça, acabe se revelando igual. Porque Camila também começou assim — cheia de presença, de cuidado, de gestos doces. Me olhava como se visse cada parte minha com reverência. Me dizia que eu era especial. Que nunca tinha amado alguém assim.
E eu acreditei.
Acreditei tanto que me entreguei sem reservas. Mostrei tudo. Rasguei os silêncios que vinha colecionando há anos. E, quando ela viu minha vulnerabilidade por completo, foi aí que tudo mudou. As mesmas mãos que antes acariciavam, passaram a medir. Os elogios viraram cobranças. Os olhares, desconfiança. O amor — ou o que eu achava que era amor — passou a me aprisionar em um ciclo confuso de paixão e punição.
Camila era doce quando queria algo. E cruel quando eu precisava dela. Tinha uma habilidade assustadora de virar o jogo, de me fazer sentir culpada por emoções que nem eram minhas. Chorava por mim e depois me fazia chorar por ela. Me dizia que era intensa, que amava demais, que eu era fria demais. Eu tentava entender. Tentava ser melhor. Mas quanto mais eu cedia, menos de mim sobrava.
Demorei pra sair. Porque, mesmo no caos, ela sabia como parecer encantadora. E, às vezes, o pior veneno é aquele que vem disfarçado de remédio.
Por isso, agora, com Verônica, minha mente insiste em procurar semelhanças. Um tom de voz mais cortante num dia ruim e meu peito já grita alerta. Um silêncio mais longo e eu já escuto a sombra de Camila sussurrando que isso é o começo do fim. Me pego observando demais, medindo demais, duvidando demais — não dela, mas de mim. Do meu julgamento. Da minha capacidade de identificar o que é amor e o que é ilusão.
E o mais triste é que Verônica não fez nada para merecer essa suspeita. Ela é paciente, presente, verdadeira. Mas eu, marcada pelo que vivi, fico esperando a virada. Como se todo afeto tivesse prazo. Como se o amor sempre escondesse uma faca.
Verônica me olha com calma, mas eu já me preparo para a tempestade. Porque aprendi que, às vezes, o pior não é o grito — é o silêncio entre os gritos. E, em Camila, aprendi que amar alguém pode virar um campo minado, onde qualquer passo em falso te explode por dentro.
Eu não quero fazer de Verônica uma continuação daquilo que foi destrutivo. Não quero jogar nela os fantasmas de alguém que me apagou aos poucos. Mas também não posso fingir que essa cicatriz não existe. Ela tá aqui, latejando, toda vez que sinto algo bonito demais pra ser seguro.
Talvez amar, pra mim, nunca venha sem medo. Talvez eu precise aprender a distinguir alerta de trauma. E a aceitar que Verônica pode errar, pode se irritar, pode ter dias ruins — sem que isso signifique que ela vai virar outra Camila. Que ser humano não é ser perfeito, e que o amor verdadeiro não é ausência de conflito, mas presença mesmo nos dias nublados.
Ainda estou aprendendo isso. E é difícil. Porque meu corpo inteiro, minha memória inteira, quer fugir antes de doer. Antes de repetir. Antes de confiar e cair. Mas, talvez, dessa vez, não seja queda. Talvez seja voo. E o risco... seja só o preço de se viver algo real.
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