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segunda-feira, 30 de junho de 2025

O acaso a meu favor - Página 29

 Por Clara...

Hoje o movimento foi mais corrido que o habitual. Por ser uma segunda-feira, estranhamos logo de início. Mas tudo fez sentido quando notamos os ônibus de excursão trazendo turistas para a cidade — aquele tipo de visita inesperada que faz o mercado parecer uma convenção. No meio da correria, sem nem perceber, o relógio já marcava 14h47 quando vi Juliana se aproximar. Ela vinha com os cabelos presos num coque alto, como sempre faz depois do almoço, e a inseparável garrafinha d’água.

— Clara, me tira uma dúvida aqui... — chamou minha atenção de forma casual, como quem puxa assunto qualquer, mas o olhar dizia outra coisa. — O que você tanto faz no escritório com a Verônica?

Na mesma hora, senti meu corpo gelar por dentro. Era como se alguém tivesse me jogado um balde de água fria por trás. Tentei manter o rosto tranquilo, como se nada demais tivesse sido dito, mas Juliana me conhece bem demais pra não notar quando estou desconcertada.

— Até almoços vocês têm juntas... e dentro do escritório ainda por cima — continuou, agora num tom mais carregado, com um sorrisinho irônico que nunca vi nela. — Você não acha que está tendo muitas regalias, não?

Aquela última palavra — regalias — bateu fundo. Regalias? A Ju? Juliana, minha amiga de tantos dias puxados, quem já dividi bolacha na sala de descanso, achando que podia confiar. De onde ela tirou isso? Quando foi que estar por alguns minutos no escritório virou privilégio? E os almoços... nem sempre eram planejados, às vezes só coincidiam. Às vezes nem almoçávamos de fato, só conversávamos sobre alguma coisa ou outra.

Pela primeira vez, me senti deslocada no lugar onde achei que estava finalmente me encaixando. O olhar da Juliana não foi só de desconfiança, foi de julgamento. Um julgamento que doeu.

E o pior de tudo: não consegui responder. Só sorri, fraco, e abaixei os olhos, como quem engole seco algo que não quer mastigar. Levanto os olhos e nesse momento vejo oque ela quer.

Depois que Juliana se afastou, senti um gosto amargo na boca. Tentei continuar o atendimento como se nada tivesse acontecido, mas as palavras dela rodavam em looping na minha cabeça. "Regalias." Aquilo foi pior do que se ela tivesse me acusado de algo diretamente. Foi como uma facada nas entrelinhas. Me senti suja... como se estivesse fazendo algo errado simplesmente por estar no mesmo ambiente que Verônica.

No fundo, o que doía não era a acusação. Era vir dela. A Ju, que ria comigo no caixa. Que me contava dos problemas com o ex, das vontades de sumir de vez em quando. Aquilo me desmontou.

Fiquei remoendo. E quanto mais eu tentava deixar passar, mais parecia que minha garganta se fechava.

Na primeira pausa, não resisti. Saí do caixa, fui direto pro banheiro e me tranquei. Sentei na tampa do vaso, puxei o celular, olhei a tela por alguns segundos sem saber pra quem escrever... Verônica? 

Respirei fundo. Talvez eu só precisasse calar por enquanto. Mas ali, dentro daquele cubículo com cheiro de água sanitária, percebi: essa aproximação com Verônica tava mexendo com muita coisa — inclusive com as pessoas ao redor.

"Nunca me aproximei de ninguém esperando receber algo em troca. Essa ideia nem sequer cabe em mim. Trabalho duro, às vezes até onde meu corpo e mente pedem arrego — e mesmo assim, no dia seguinte, estou ali. Um caco, sim, mas firme, com uma base sustentada por honestidade e um sorriso sincero. Por isso, ouvir que há quem ache que estou tendo privilégios... ou pior, que estou me aproveitando de algo, me quebra por dentro. Me quebra o coração. Porque não importa o quanto eu tente fazer tudo certo, parece que sempre vai existir alguém disposto a diminuir isso, a transformar em malícia o que, pra mim, sempre foi só entrega." — Penso enquanto enterro os dedos em meus cabelos. 

Saí do banheiro tentando engolir a dor que descia seco, presa na garganta. Passei em frente ao escritório da Verônica sem nem olhar para a porta. Meu rosto ainda denunciava algo — um dos meninos, dos que sempre me tratam com carinho, percebeu. Se aproximou em silêncio, e me deu um beijo no topo da cabeça. Esse gesto me desarmou um pouco. Somos assim: uma grande família, apesar de tudo.

Sigo em direção ao meu caixa, e então ouço a voz da Juliana, vinda de trás com aquele tom debochado que conheço bem:

— E aí, Clara... — ela começou.

Nem me virei. Continuei andando.

— Foi correr pra contar pra namoradinha sobre os comentários, foi? — ela lançou a frase como quem joga veneno no vento.

Não deixei nem ela terminar.

— Qual é a tua, Juliana? — virei de vez, encarando. Minha voz saiu cortante. Por um segundo, ela pareceu surpresa, mas rapidamente riu, como se fosse exatamente o que esperava.

— Olha só... Clarinha mostrando as garras — disse com sarcasmo, inflando ainda mais a raiva dentro de mim.

Foi aí que percebi o movimento ao redor. Seu Paulo vinha em direção ao caixa, e logo atrás dele, Verônica. Vi os olhos dela passarem de Juliana pra mim como se pesassem o momento.

— Só não quebro a tua cara aqui agora porque, diferente de você, que me chamou de interesseira, eu pago as minhas contas com o que ganho aqui e em outros lugares também. — Falei firme, com o peito arfando de raiva.

Juliana deu um passo à frente, pronta pra reagir. Mas Luiz, que sempre foi meu parceiro de guerra ali dentro, me segurou pela cintura, firme.

— Clara, calma... — sussurrou ele ao meu ouvido.

Seu Paulo entrou no meio sem pensar duas vezes, erguendo as mãos.

— O que tá acontecendo aqui?! — bradou, tentando dissipar a tensão.

Verônica parou ao lado dele. E mesmo sem dizer uma palavra de imediato, só o olhar dela já calou metade do ambiente.

— As duas, pra minha sala. Agora. — A voz dela saiu baixa, mas carregada de autoridade. Não era um pedido, era uma ordem.

Juliana ainda bufou, cruzando os braços, mas foi. Eu, apesar da vontade de recusar, fui também. Não queria parecer que estava fugindo. Luiz me soltou devagar, ainda com a mão no meu ombro em sinal de apoio. Seu Paulo ficou parado, observando, balançando a cabeça em desaprovação.

Entramos. Verônica fechou a porta com mais força do que o habitual, se posicionou atrás da mesa e cruzou os braços, olhando de uma para outra.

— Isso aqui não é escola, muito menos pátio de recreio. Vocês estão aqui pra trabalhar. E se tiverem algum problema pessoal uma com a outra, resolvam fora do horário e fora do meu mercado. — O tom era firme, controlado, mas cada palavra era um soco seco no ar.

Juliana tentou retrucar:

— Eu só...

— Cala a boca, Juliana. — interrompeu Verônica, sem alterar o tom. — Sem saber de fato oque aconteceu, a cortou. 

Juliana se calou, pela primeira vez visivelmente desconfortável.

Verônica então se virou pra mim, e o olhar endureceu um pouco mais.

— E você, Clara... Não me interessa o que aconteceu — disse me olhando de maneira decepcionada — levantar a voz e ameaçar uma colega de trabalho também não é aceitável. Você tinha que ter me procurado. 

Engoli em seco, sem conseguir falar nada. Verônica suspirou fundo e recuou um passo, apoiando as mãos na mesa.

— Isso vai acabar aqui. Hoje. Não quero mais ouvir burburinho ou barraco nesse chão. Porque da próxima, quem vai sair não é só com advertência, é com as contas na mão. Entendido?

As duas assentimos, em silêncio.

Verônica então se voltou para mim com um olhar menos duro:

— Pode voltar pro seu posto, Clara.

Depois olhou para Juliana:

— E você, passa o resto do dia no estoque. Vai ajudar o Luiz. Agora, fora as duas.

Saí da sala com o coração batendo forte...

E lá dentro, pela primeira vez também... vi Verônica perder a compostura por trás da frieza de chefe. Só por um segundo.


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O acaso a meu favor - Página 28

 Por Verônica...

Ao ouvir o pequeno apelido que acabei de ganhar  —, meu sorriso reagiu antes mesmo do meu corpo entender o que estava acontecendo. Foi automático. Quase bobo. Mas genuíno.

Ficamos ali por mais alguns minutos, em um silêncio que, surpreendentemente, não me incomodou. Era o tipo de silêncio raro, daqueles que não pesam, não apertam. Um silêncio que repousa, que se encaixa.

Mas, como tudo na vida, teve um fim. O som da porta abrindo, passos se aproximando, o tilintar do crachá no leitor. O restante dos funcionários começava a chegar para o turno da manhã. E, como quem acorda de um sonho discreto, Clara se levantou, bateu o ponto e foi para seu posto.

E eu? Fiquei. Sentada na minha cadeira, o cursor piscando na tela à minha frente, enquanto uma onda de sentimentos — sutis, estranhos, elétricos — dava pequenos choques dentro de mim.

Tudo isso... por causa de um apelido. Um nome dito sem querer. Um carinho jogado no ar.

“Vê”. Repeti mentalmente. E, pra minha própria surpresa, gostei de ouvir.

Não era só um som. Era a forma como ela disse. Como se já me conhecesse mais do que deveria, ou como se quisesse me alcançar em um lugar onde ninguém mais ousou tocar.

E o pior — ou talvez o melhor — é que me senti alcançada.

E isso, pra alguém como eu, é mais perigoso do que qualquer ladrão de mercado.

E, na mesma fração de segundos, o sentimento genuíno se transformou em preocupação. Um baque discreto, mas certeiro. Até ontem, eu estava cogitando me afastar. Mas com a quebra de pernas que acabei de sofrer — com aquele “Vê” escapando dos lábios dela como se fosse natural —, como faço isso agora?

Como me distancio de algo que já está perto demais?

Respiro fundo. Mas respiro mesmo, como se o que estivesse me sufocando fosse a simples falta de oxigênio. Como se bastasse encher os pulmões de ar para colocar tudo de volta no lugar. Mas não é isso. Não é ar que está faltando. É controle.

E quando começo a perder o controle — mesmo que em silêncio — sei que estou pisando em território perigoso.

 O mais irônico? Ninguém notaria. Nem ela. E talvez seja exatamente isso que mais me assusta. Porque por dentro, tudo já começou a mudar. E não sei se consigo, ou sequer quero, impedir.

"

Não foi só ela que me chamou ou me chama assim — esse apelido já saiu da boca de outras pessoas antes. Amigas, colegas, até alguma paixonite do passado. Mas na voz delas… soou brega demais. Como se não combinasse comigo ser chamada assim. Como se não pertencesse. Só que, da boca dela… foi diferente. Me atingiu de um jeito que incomoda — não pela palavra, mas pelo que ela desperta.

Começo a me perder em pensamentos, com a porta do escritório semiaberta e o ar-condicionado jogando um frio artificial que já nem sinto direito. A mente vai longe, mesmo com o movimento aumentando no mercado. Me pego presa naquele momento, naquele som…

Volto os olhos para a tela do computador, tentando me distrair com os pedidos do mês, com números frios e listas pragmáticas. Mas nem o cursor piscando diante de mim é capaz de tirar aquela palavra da minha cabeça.

"

Por muitos motivos, me forço a puxar a cabeça de volta para os problemas reais. Reais e urgentes. Problemas que, se ignorados, podem virar bolas de neve e afetar muita gente, muitos funcionários — inclusive Clara. E talvez por isso mesmo, pela proximidade dela com esses pequenos riscos, eu esteja ainda mais atenta.

Vejo duas jovens entrarem no mercado, uma delas com uma prancheta e a outra segurando uma pastinha simples. Conversam algo com Clara, que está no caixa com aparência mais serena do que o habitual. Seu sorriso não é forçado. Isso me faz suspirar fundo.

Olho para o relógio de pulso. 9h58. Deduzo rapidamente: são as entrevistas que agendei para às 10h. O alarme mental toca, me puxando do torpor emocional que ainda lateja. Aperto os olhos por um instante, como se isso fosse organizar o turbilhão, e me levanto.

Ajusto a blusa, endireito os ombros e caminho em direção ao pequeno espaço reservado ao fundo do mercado para as entrevistas. Enquanto caminho, percebo Clara indicar com um gesto educado onde fica o escritório. As candidatas me notam e caminham em minha direção.

Volto a assumir a postura que esperam de mim. A dona, a que resolve, a que coordena tudo — e que não se perde por um apelido dito com doçura.

Pelo menos, é o que eu finjo muito bem.

Ao terminar as entrevistas, fecho o pequeno caderno de anotações que uso nesses momentos. Tento manter o tom imparcial, mas é inevitável quando a diferença de interesse entre as duas salta aos olhos. Uma das candidatas parecia estar ali por necessidade real — prestando atenção a cada palavra minha, como se quisesse absorver tudo. A outra... bom, talvez estivesse em busca de qualquer oportunidade, o que entendo, mas não posso me dar ao luxo de contratar alguém sem sangue nos olhos. Ainda mais agora.

Levanto, aperto a mão das duas com cordialidade e as acompanho até a porta. Ao vê-las saírem, o silêncio volta a tomar conta do escritório. Olho rapidamente para as câmeras e vejo Clara passando o código de um produto para uma senhora de cabelos grisalhos no caixa. Ela sorri, e mesmo que eu não ouça o som, sei exatamente como é a risada dela.

Respiro fundo e tento retomar o foco. Preciso de três operadoras de caixa fixas, e os repositores estão sobrecarregados com a falta de um dos meninos. Além disso, abrir o açougue até o fim do mês virou uma meta inadiável.

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domingo, 29 de junho de 2025

O acaso a meu favor - Página 27

 Por Clara...

Ao ver que era a Verônica e não o Augusto sentado na cadeira do escritório, minhas pernas viraram gelatina. Instantaneamente senti minhas orelhas esquentarem, aquele calor súbito que denuncia quando algo me pega desprevenida — e, geralmente, é ela quem causa esse efeito.

Era para eu ter um certo ressentimento dela, pela primeira impressão dura que me deixou, pela forma como me olhou no meu primeiro dia aqui, quase como se eu fosse um erro administrativo. Mas com o tempo... com o tempo dela aqui, das conversas no horário do almoço, dos olhares menos frios e mais atentos, das brincadeiras discretas — senti que ela tentava, à sua maneira, corrigir o erro daquela primeira vez.

E eu, mesmo tentando resistir, acabei me deixando tocar por isso. Por ela.

— Bom dia, Clara — disse, com uma euforia no tom que não combinava com o jeito controlado que costumava usar.

Eu sorri de volta, pequena, sem mostrar os dentes. Meu corpo respondeu antes que minha mente pudesse intervir: um “bom dia” quase sussurrado saiu dos meus lábios, e senti as bochechas queimando. Tentei esconder o nervosismo ajeitando a alça da mochila e desviando o olhar, como se o chão fosse mais interessante do que a mulher sentada à minha frente. Mas não era.

Ultimamente venho percebendo, que nada era mais interessante que Verônica.

Meio que minha fala sai um pouco gaga, porém acho que ela entendeu, pois acabou dando uma risada — aquela risada dela, que é baixa, mas sincera o suficiente para me desmontar.

— Eu pensei que... que fosse o Augusto... — tentei explicar, ainda parada na porta, como se meus pés tivessem se enraizado ali mesmo.

Na verdade, eu ia completar dizendo que estava preocupada com ele, por conta de ontem, da agressão e tudo mais... mas ela foi mais rápida, e do jeito que só ela consegue ser, me pegou de surpresa com uma pergunta que mais parecia uma armadilha — daquelas que a gente cai até querendo.

— Ah, então você preferiria que fosse o Augusto aqui do que eu? — perguntou, arqueando uma das sobrancelhas com um falso tom de indignação que me arrancou um arrepio inesperado na nuca.

Eu travei. Meu cérebro tentou desesperadamente encontrar uma resposta inteligente, casual, engraçada… qualquer coisa que não denunciasse o nó que ela causava no meu estômago.

— N-não foi isso que eu quis dizer... — gaguejei de novo, e senti minha vergonha crescer exponencialmente. — É que... eu... achei que ele que... que ia estar aqui hoje... só isso...

Ela manteve aquele meio sorriso nos lábios, como se tivesse acabado de ganhar um ponto num jogo que só ela sabia que estava sendo jogado.

Sem nem perceber, soltei as palavras como quem pensa alto, mais para mim mesma do que para ela:

— Qualquer pessoa é melhor que o Augusto pela manhã nesse mercado. — falei olhando para um ponto fixo qualquer à minha frente, só percebendo o que disse de verdade quando ouvi a gargalhada dela.

Uma risada leve, espontânea, dessas que escapam antes de qualquer filtro — e aquilo me fez sorrir também, mesmo querendo me esconder de vergonha.

— Mas não conta isso a ele — disse, voltando a olhá-la com um sorriso quase cúmplice. — É capaz dele me demitir.

Ela me lançou um olhar divertido, um tanto provocador, como se guardasse o segredo com gosto.

— Seu segredo está seguro comigo — respondeu, como quem faz uma promessa selada no ar.

Ficamos em silêncio por um segundo que pareceu mais longo do que deveria. Um daqueles silêncios que não incomodam, mas também não explicam nada. Apenas ficam ali, pairando entre a gente, como uma pergunta que ninguém tem coragem de fazer.

Quando penso que não posso me surpreender mais com essa mulher, ela vai lá e me prova o contrário. E faz isso sem esforço, como quem nem percebe o efeito que tem sobre mim.

— Senta aqui. — ela diz, apontando para a cadeira vazia ao seu lado, com um gesto quase casual. — Ainda tem vinte minutos pro seu horário começar.

Olho para ela meio sem acreditar, meio tentando entender o que está por trás desse convite simples. O tom era leve, mas tinha algo ali... algo na forma como ela disse, na forma como seus olhos me olharam rápido demais e desviaram depois. Ou talvez seja só coisa da minha cabeça.

Me aproximo devagar, puxo a cadeira e me sento com cuidado, como se estivesse entrando em um território novo. Eu não deveria estar aqui, eu sei. Mas algo dentro de mim quer muito ficar.

Ela me olha de um jeito que... me conforta. É diferente de tudo que já senti vindo dela antes — não tem autoridade, nem aquele ar de controle. Só um silêncio calmo, como se dissesse que estava tudo bem ali, entre nós duas.

Enquanto digita algo no computador, vejo seus olhos atentos na tela, os dedos rápidos no teclado. Me pego observando-a mais do que deveria, até que sua voz suave quebra o silêncio:

— Pode ligar esse computador à sua frente pra mim? — pede sem sequer desviar os olhos da tela.

Apenas obedeço, meio sem pensar, apertando o botão e vendo a luz da logo acender. Tudo normal... até a próxima ordem.

— E coloca numa rádio qualquer aí... que toque música brasileira clássica.

Reviro os olhos internamente. Ah, não. De novo não. A última semana foi praticamente uma trilha sonora de Elis Regina, Cartola, e Vinícius, repetida em loop. Eu até gosto, mas já decorei as respirações da Gal Costa.

— Música brasileira clássica? — pergunto, quase numa provocação. — Não tem nada com um pouco mais de batida, não?

Ela dá um sorrisinho rápido, ainda olhando para o monitor.

— E você gosta de estilo musical, bonita? — ela pergunta com um sorriso leve, divertido, meio provocador. — Menos funk, por favor.

Me permito rir de forma solta, daquele jeito que vem fácil quando estou confortável. Ela me pega desprevenida com esse tom brincalhão que tem usado ultimamente.

— Não, não é funk. — respondo ainda risonha. — Poxa, um sertanejinho não faz mal a ninguém. Além do mais, aqui é praticamente o berço do estilo. Tem que valorizar, né?

Ela vira o rosto na minha direção, tirando os olhos do monitor, e eu dou de cara com aquele par de óculos que, sinceramente... deixam ela ainda mais interessante. Sexy. É isso mesmo que estou pensando? Clara, foco. Mas é difícil com aquele olhar avaliador por trás das lentes, e o sorrisinho no canto da boca.

— Desde quando pessoa da sua região curtem sertanejo? — diz, arqueando uma sobrancelha.

A olho com um fingido olhar ofendido e, sem pensar muito, pego um papel em branco que estava por perto e dou uma batidinha leve em seu braço.

— Olha o preconceito! — exclamo, teatralmente indignada.

Ela ri — uma risada verdadeira, leve, sem pressa. Mas não me repreende. Pelo contrário, me olha de um jeito que quase me faz esquecer onde estou.

Pesquiso algumas músicas sertanejas antigas, já preparando a playlist para deixar no fundo enquanto o dia começa. Mas, antes que eu consiga dar play, ouço a voz dela se intrometer com aquele tom meio indignado, meio brincalhão que já estou começando a reconhecer.

— Ah, não... — começa, se virando na cadeira. — Aposto que você nem gosta das clássicas de verdade. Aqueles modões bons mesmo... Porque, claro, muito deles nem vivos são, né? — Ela revira os olhos com exagero, e continua antes que eu possa retrucar. — Mas eu tenho que escutar as músicas dos cantores que você gosta, que também já morreram! Isso é jogo sujo, Clara.

— Ah, não, Vê... só hoje vai?! — solto automaticamente, num tom meio manhoso, meio brincando.

Mas assim que percebo o que acabei de dizer — —, sinto o corpo inteiro congelar. Arregalo os olhos, como se a palavra pudesse voltar pra dentro de mim. Tento me justificar rápido, tropeçando nas palavras.

— Digo, Verônica... É que... foi no impulso, eu... desculpa.

Ela me encara por um segundo, e juro que vejo algo diferente em seu olhar. Não é julgamento. Nem deboche. É... surpresa, talvez. Curiosidade. E um brilho divertido, claro — como quem acabou de ganhar um presente inesperado.

Ela dá um sorrisinho de canto, daqueles que não mostram os dentes, mas dizem muita coisa.

— "Vê", é? — repete, com um ar leve, como se tivesse saboreando a palavra. 

Sinto minhas bochechas queimarem como se alguém tivesse acendido uma fogueira nelas.

— Eu juro que não foi de propósito. — digo nervosa, sem saber onde enfiar o rosto.

— Ainda bem. — ela responde, voltando os olhos pro computador. — Porque se fosse, ia ser ainda mais difícil eu fingir que não gostei. —  Essa parte eu não ouço ela dizer com clareza, mas ela sabe que eu ouvir.

E aí ficamos em silêncio. Um silêncio confortável, preenchido pelo som de alguma dupla antiga cantando sobre saudades e corações partidos. E, de repente, nenhuma música parece mais tão brega assim.

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O acaso a meu favor - Página 26

 Continuação por Verônica...

Ao mandar as mensagens para Clara, decido deixar o celular de lado e refletir sobre como anda minha vida nesses últimos meses aqui em Caldas. Percebo que estamos progredindo de alguma maneira, mesmo com as demissões, com a falta de recurso e novidade no mercado. Tenho em mente que o básico bem feito, é melhor que uma... …inovação mal executada. E é nisso que venho me apoiando: em tentar fazer o simples com excelência. A cada dia que passa, entendo um pouco mais sobre as pessoas daqui, sobre o ritmo dessa cidade que parece parada no tempo, mas que aos poucos vai me permitindo espaço.

O mercado, mesmo pequeno, se tornou meu maior desafio — não apenas como administradora, mas como mulher tentando sobreviver em meio a tantas expectativas e desconfianças.

Não consigo evitar pensar em Clara nesse processo. O jeito espontâneo dela, a forma como me olha às vezes, como se pudesse me desarmar com aquele meio sorriso distraído. Tentei não me apegar, manter distância. Mas como manter distância de algo que, mesmo sem querer, se aproxima mais a cada dia?

Não me incomodo com a solitude que escolhi viver todos os dias. Gosto da minha própria companhia, do silêncio que me organiza por dentro. E, sinceramente, duvido que exista alguém que acompanhe o ritmo acelerado dos meus pensamentos, minhas exigências, minhas manias. Mas... e se? E se essa pessoa existisse? …E se essa pessoa já estivesse por perto, se esgueirando pelas frestas do meu cotidiano, sem que eu tivesse me dado conta?

Não quero idealizar, muito menos correr. Mas e se... a minha solitude estivesse só preparando espaço para algo novo, algo que, por mais assustador que pareça, também pode ser leve?

Começo a rir dos meus próprios pensamentos e penso - Às vezes penso que estou perdendo o juízo. Ficar com o coração acelerado só por ver uma funcionária agir com coragem demais, ou se preocupar com alguém a ponto de mandar mensagem à noite, não é exatamente algo que eu faria — ou que eu deveria fazer. Talvez seja só o estresse, ou quem sabe... carência. Carência física, emocional, ou os dois misturados em um coquetel hormonal que me faz enxergar coisa onde não tem.

Devo estar mesmo precisando de algo mais... íntimo. Um toque, uma distração, um corpo quente que não seja só o travesseiro. Só pode ser isso. Não tem lógica esse meu cérebro transformar um ato de coragem da Clara em cena de filme romântico. Mas então por que eu não consigo parar de lembrar o jeito que ela olhou pra mim antes de sair hoje? Será que tô mesmo ficando louca?

Nesse turbilhão de pensamentos, me vem à cabeça a Ana, que deixei em San Diego. Tivemos algo... casual. Talvez só algumas noites de distração. Não era ruim, pelo contrário — era prático, simples, direto. Aquele tipo de envolvimento que se encaixa bem quando tudo o que você quer é silenciar o corpo por umas horas. Nunca passou disso. Nunca quis que passasse, e acredito que ela também não. Só que agora, pensando com mais clareza, percebo que não sinto — ou nunca senti — nada além de atração física por ela. E isso, que antes era suficiente, hoje parece... vazio.

O que me incomoda é isso: o raso, o básico, o controlado… não está mais me preenchendo. Não sei se é o ambiente novo, a rotina intensa ou… Clara. Mas há algo nessa sensação que não consigo calar. E o pior? Nem sei se quero calar. Depois de fervilhar a cabeça com tantos pensamentos, decido dormir.

No dia seguinte, chego mais cedo que o habitual. Ainda com o corpo cansado da noite mal dormida e da cabeça cheia demais para suportar o silêncio de casa. Dispensei os serviços do Augusto — achei o mínimo que podia fazer depois da confusão de ontem. Pedi que se recuperasse, mesmo sabendo que ele preferiria estar aqui, fazendo questão de parecer indispensável. Mas hoje eu queria o mercado mais calmo. Mais... meu. E talvez, com sorte, um pouco dela também.

Organizo algumas planilhas no computador, mas meus olhos, de tempos em tempos, desviam para a câmera da entrada. Como se fosse um relógio bem programado, Clara aparece, alguns minutos antes do horário dela. Não era pontual por acaso. Quando vejo a cabeça dela surgindo pela porta, seus olhos procuram por alguém, e percebo a surpresa contida ao notar que sou eu quem está ali — e não o Augusto.

Viro a cadeira em sua direção devagar, sem pressa, quase como se esperasse esse momento. Sorrio, involuntariamente. Um sorriso mais leve do que estou acostumada a mostrar.

— Bom dia, Clara. — digo, com uma euforia quase desajeitada, que me escapa antes de eu conseguir controlá-la. Ela hesita um segundo, como se tentasse entender meu tom. E, por um instante, meu peito pesa — não sei se pela tensão de ontem ou por essa sensação estranha de estar começando o dia... bem.

Clara, sendo quem é, me devolve o cumprimento de maneira genuína, com aquele sorriso pequeno, quase envergonhado, que ela sempre tenta esconder, mas que insiste em aparecer. Vejo seu tom de pele mudar sutilmente — as bochechas ganham um leve avermelhado que, em outra pessoa, talvez passasse despercebido. Mas nela, não. Presumo que esteja com vergonha. E, bom... quem diria?

Ela ajeita a alça da mochila no ombro como se isso fosse esconder o desconforto que começa a tomar forma entre nós, mas eu finjo não notar. Ou melhor — noto cada detalhe, mas não demonstro. Aprendi a fazer isso muito bem. E ainda assim, Clara parece ser a única pessoa capaz de me fazer desejar, por alguns segundos, não esconder nada.

— Dormiu bem? — pergunto, como quem joga a isca na água calma.
Ela me encara por um segundo, talvez surpresa com o interesse, e então assente devagar, como se ainda estivesse tentando entender a que jogo estou jogando.

Não sei ao certo o que estou fazendo. Não sei quando isso tudo deixou de ser só profissional. Só sei que, mesmo que tenha começado como curiosidade, agora isso... me assusta um pouco.

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sábado, 28 de junho de 2025

O acaso a meu favor - Página 25

 Por Verônica...


Mandei aquela mensagem sem perceber exatamente como ela poderia soar para a Clara. Só queria, de verdade, saber se ela estava bem. O que aconteceu hoje ultrapassou qualquer limite do que eu estava preparada para lidar — tanto como gestora... quanto como mulher.

Mesmo depois de fechar o mercado, organizar os relatórios do dia, responder e-mails do jurídico... meu corpo ainda vibra como se estivesse correndo, como se não pudesse parar. A adrenalina me tomou de um jeito que eu não lembro da última vez.

Mas a verdade é que não é só o acontecimento em si.
É quem estava no meio daquilo.

A cena dela — com aquela escada, aquele olhar tenso e determinado — parece não sair da minha mente. Mas o que mais me abala é pensar...

E se tivesse dado errado?
E se, por segundos, ele tivesse sido mais rápido?
E se ela tivesse se machucado, ou pior?

Só de imaginar, meu peito aperta de um jeito que me desconcerta.
Não posso — ou talvez não deva — me importar tanto assim. Mas meu coração, traiçoeiro, nem se dá ao trabalho de pedir permissão.

Além disso, o vídeo já está nas redes sociais. Aquele trecho exato, com a legenda sensacionalista de sempre:
"Funcionária de mercado impede roubo com escada!"
Ótimo para os curiosos. Um desastre para a imagem do mercado. E uma exposição absurda pra ela.

E mesmo com tudo isso, minha maior aflição é que ela esteja bem.
Que tenha conseguido chegar em casa.
Que tenha conseguido... descansar.

Talvez seja por isso que mandei tantas mensagens. Talvez no fundo, o que eu mais queria, era um respiro de paz em forma de resposta dela.

E quando recebo, alguns minutos depois, e leio o que ela escreveu:

“Hoje foi um daqueles dias que a gente não esquece, né?”

Eu fecho os olhos.

Não sei o que está acontecendo exatamente comigo.
Mas sei o suficiente pra entender que o medo que senti hoje... não foi só medo de gestora.
Foi medo de perder algo que talvez nem tenha começado direito.
Mas que, de alguma forma, já é importante demais pra mim.


Estava sentada no sofá, ainda vestida com a mesma roupa do expediente, tentando processar tudo, quando o celular vibrou. Era meu irmão. Atendi no segundo toque, e antes mesmo de dizer “alô”, ouvi a voz dele tensa do outro lado da linha:
— Verônica, pelo amor de Deus, acabei de ver a notícia... você tá bem?


Fechei os olhos por um instante, sentindo a tensão subir de novo pelo corpo. Tentei tranquilizá-lo com um "tô bem", mas minha voz falhou um pouco. Ele sempre teve esse jeito protetor, mesmo sendo mais novo.

— Precisamos de segurança nesse lugar, Nica. Isso pode se repetir....                                              

Ouvi-lo me chamar daquele apelido antigo, que ele só usava quando estava realmente preocupado, mexeu comigo. Respirei fundo. Ele tinha razão. E mesmo sendo a gestora ali, naquele momento, me permiti ser só irmã dele — e sentir o alívio de ser cuidada também.

Conversamos por mais cinco minutos. Fui firme, serena. Tranquilizei-o. Disse que não havia razão para interromper a viagem com Lia por causa do ocorrido.


Subo para o quarto. Entro no chuveiro.

A água quente desce, silenciosa. E então me permito chorar — discretamente, como quem esvazia um copo sem deixar rastros.

Não sei exatamente por quê. Mas um medo surdo se instalou em mim. Um medo frio, antigo, difícil de nomear.

Medo da perda.

Mas perder o quê? — me pergunto.

Visto um robe de seda azul-marinho. Os cabelos ainda úmidos, penteados para trás. Desço até a cozinha.

Abro o aplicativo do iFood e peço uma massa à carbonara. Enquanto isso, abro uma garrafa de vinho tinto. Sirvo-me de uma taça — sem pressa.

Sento-me. Apoio os cotovelos no balcão. O silêncio da casa pesa, mas não me incomoda. Estou acostumada a ele.

Em menos de vinte minutos, a notificação anunciava a chegada do meu pedido. Caminho até a porta, pego a encomenda e me sirvo ali mesmo, direto da embalagem, sem muita frescura.

Pego o celular e fico na indecisão: visualizo ou não as mensagens da Clara? Não sei se foi por causa do vinho, mas acabei respondendo de um jeito divertido.

Li as mensagens da Clara com um sorriso discreto nos lábios. Meus dedos pairaram sobre o teclado por alguns segundos antes de começar a digitar, buscando não parecer tão eufórica quanto me sentia:


"Fico feliz que esteja bem. Achei que ia ter que colocar uma plaquinha de 'funcionária em recuperação' no setor de atendimento."
Parei por um instante, respirei fundo e continuei:


"E olha... se essa sua promessa de não virar heroína for verdadeira, vou até colocar no quadro de avisos." 


"Boa noite, Clara. Dorme bem. Qualquer coisa, tô por aqui (mas sem escadas como arma, por favor).”


Enviei antes que pudesse pensar demais. Às vezes, deixar o tom leve era a única maneira de esconder o que eu realmente queria dizer.

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Página 26

sexta-feira, 27 de junho de 2025

O acaso a meu favor - Página 24

                               

 Capítulo 3

Por Clara...

Não tinha forças nem para pensar. Tudo em mim parecia esgotado: corpo, mente e até o coração.
Principalmente o coração.

Joguei a roupa em qualquer canto da sala, sem me importar com a persiana mal fechada ou com o breu da noite lá fora. Hoje, eu não queria ser mulher. Não queria ser corajosa, nem sensata.
Só queria existir.

O silêncio do apartamento me abraçou de um jeito estranho. Quase como se dissesse “acabou por hoje, você sobreviveu”. E sobrevivi mesmo.

Não vi o Bento de cara, o que é raro. Ele geralmente me espera na porta, com a cara de poucos amigos e o rabo inquieto, me julgando pelo atraso.
Mas hoje, ele estava estirado no chão do banheiro, como se também tivesse vivido o peso do meu dia. Quando me viu, abriu os olhos com lentidão, alongou as patas dianteiras e se espreguiçou em frente à porta, como um velho companheiro preguiçoso que entende cada silêncio meu.

– É, Bento… a vida tá uma loucura. – falei baixinho, entrando no banheiro.

Ele apenas se arrastou até meu pé e se encostou, como se soubesse que aquilo era tudo o que eu precisava: um toque de ternura sem perguntas.

A água quente caiu sobre minha pele no banho e por um instante senti vontade de chorar. Mas nem isso consegui.
O cansaço era tão grande que nem lágrima quis sair.

Depois, vesti a primeira camiseta limpa que encontrei e fui direto para a cama. Bento pulou no colchão e se acomodou no mesmo lugar de sempre, atrás dos meus joelhos. Como um quebra-cabeça de hábitos que nunca muda.

E ali, entre travesseiros e silêncio, me dei conta de uma coisa:
Eu não sabia exatamente o que Verônica despertava em mim,
mas sabia que aquilo me deixava viva.
E, sinceramente,
isso já era muita coisa.

Tento fechar os olhos.

Mas o travesseiro, que deveria ser meu refúgio, se torna cúmplice do turbilhão que insiste em revirar meu peito. A cena de hoje não sai da minha cabeça.
O susto, a escada, o caos, a adrenalina.
Mas... o que realmente me incomoda não foi o perigo.
Foi a sensação esquisita que senti quando vi aquela mulher bonita se aproximar.

Era só uma cliente. Uma entre tantas. E mesmo assim...
Verônica apareceu do nada.
Com aquele jeito firme, meio seco, como quem não perde o controle.
Mas eu conheço aquele olhar. Já consigo reconhecer quando ela tenta disfarçar algo.

E o que foi aquilo? Ciúmes?
Não.
Nunca! - É o que penso.

Viro de lado, puxo o lençol até o queixo.
Bento solta um suspiro pesado atrás de mim, como se dissesse: “Você tá pensando demais de novo”.

Sim, o pior que estou.

E talvez não devesse.
Mas por algum motivo, lembrar do jeito como ela me olhou — logo depois, no corredor, com aquele sorrisinho de canto contido — me provoca um calorzinho no estômago.
Daqueles que vem antes de algo acontecer, sabe?
Um calor bom. Familiar, quase perigoso.

Mas eu sou só...
uma funcionária.
Uma entre tantos.
E ela, bom... ela é Verônica.

– Aff, Clara... – resmungo em voz baixa e balanço a cabeça, como se isso fosse o suficiente pra expulsar o pensamento.
Quase como um exorcismo silencioso da minha própria confusão.

Viro mais uma vez, dessa vez de costas para a parede, como se assim eu me escondesse dos meus próprios sentimentos.

Talvez tudo passe.
Talvez seja só cansaço.
Ou talvez... seja o começo de algo que eu ainda não sei nomear.

Mas por enquanto, só quero dormir.

De tanto murmurar, pensar e sentir meus pensamentos rodopiarem como folhas num vendaval, o sono finalmente me venceu.

Apaguei.

Achei que tinha dormido só uns minutos...
Mas, ao abrir os olhos, o céu pela fresta da janela já estava em tons de azul desbotado, e o som tímido da cidade começava a aumentar na medida que despertava.

Cinco horas.

Cinco horas mergulhada num sono pesado, desses que deixam a cabeça um pouco zonza ao acordar, como se os sonhos tivessem sido confusos demais pra lembrar — ou importantes demais pra esquecer.

Me sento na cama devagar, sentindo o lençol ainda quente sob mim.

Abro primeiro as mensagens da Camila.

Camila.
A mulher que, por muito tempo, foi minha resposta para tudo.
E depois, se tornou o maior ponto de interrogação da minha vida.

"Clara, vi o noticiário sobre o mercado que você trabalha."
"Você está bem?"

Minhas mãos gelam. O coração acelera.
E não é de emoção — é de susto, de angústia, de uma raiva quieta que ainda mora em mim mesmo quando tento negá-la.

Essa falsa preocupação me prende de maneira tão doentia…
Porque eu sei, eu sei, que se fosse há algumas semanas, eu estaria pulando de felicidade só por ela lembrar que eu existo.
Mas agora? Agora eu só sinto esse nó no estômago.

Ela que me ignorava como se eu fosse um erro que ela queria apagar.
Que lia minhas mensagens e me deixava no vácuo como se o silêncio falasse mais alto do que qualquer "oi".
E agora aparece assim? Com esse tom doce, disfarçado de empatia?

Por quê? Por culpa? Por tédio?

Não respondo. Não posso responder.
Pelo menos não agora.

Bloqueio a tela por instinto e respiro fundo. Meu peito ainda está pressionado — como se a presença dela, mesmo só digital, ocupasse espaço demais.

E foi nesse mesmo suspiro que me lembrei da outra notificação.
Daquela que, por mais confusa que seja, me faz sentir algo diferente. Algo... vivo.

Verônica.
Minha chefe. Minha bagunça mental.
Minha calma e meu caos.

Respiro fundo antes de abrir a mensagem dela.
Algo me diz que essa vai me fazer sentir ainda mais.

Termino de ler as mensagens com o celular firme entre as mãos, como se ele fosse escorregar se eu me permitisse sentir tudo de uma vez.

"- Clara, boa noite!"
"- Gostaria de saber se está bem?"
"- Se chegou bem em casa?"
"- Quero que saiba que, o que precisar, estarei aqui. Prestarei ajuda a você caso precise depois de hoje."
"- E por favor, nunca mais se ponha em perigo daquela maneira. Eu não sei o que seria de mim se algo tivesse lhe acontecido."

Leio e releio.
Paro na última frase e... meu coração erra. Literalmente.
Como se tropeçasse dentro de mim.

Pisco algumas vezes e solto o ar pela boca, como se fosse possível esvaziar junto o nó que se formava na garganta.

“Eu não sei o que seria de mim…”


De onde vem essa frase?
E por que, em meio a tanta coisa hoje, é justamente ela que ecoa nos meus pensamentos como uma melodia baixa e constante?

Ela é minha chefe. Uma mulher centrada, direta, exigente.
Mas, por trás daquelas mensagens formais — ou tentativamente formais — existe algo ali.
Existe um cuidado que me embriaga discretamente.

Não lembro a última vez que alguém perguntou se eu cheguei bem em casa.
Muito menos com esse tipo de delicadeza cravada nas entrelinhas.

Começo a digitar uma resposta.
Apago.
Escrevo outra. Apago de novo.

No fim, deixo o coração falar mais que a cabeça:

“Oi, Verônica. Tô bem sim. Cheguei bem, e agradeço por se preocupar.”                      "Fico aliviada que nada tenha te acontecido de ruim..."
“Hoje foi um daqueles dias que a gente não esquece, né? 
“Prometo não virar heroína de mercado de novo.”
“Boa noite.”

Envio.
Suspiro.

E então olho pro teto escuro do quarto e deixo um pensamento escapar baixinho:

— Só uma preocupação de chefe, né? Só isso…

Mas no fundo, bem no fundo... talvez eu não queira que seja só isso.

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quinta-feira, 26 de junho de 2025

O acaso a meu favor - Página 23

 Por Verônica...

Continuação da cena...

Quando menos espero, vejo o rapaz caminhar em direção à seção de bebidas. Seus gestos são sutis, treinados talvez — ou apenas frutos da audácia de quem acredita que ninguém está prestando atenção. Clara continua o seguindo discretamente, observando-o com cuidado. Admiro a postura dela, o modo como não entra em pânico, não se precipita. Inteligente… muito mais do que aparenta.

Ela leva a mão ao bolso e retira o celular. Pela câmera vejo os lábios dela se moverem rapidamente. Em segundos, outro monitor acende: Augusto atende a ligação com aquela cara de desdém automático que sempre faz quando não está no controle da situação. Claro, ela ligou para ele. Um pequeno sorriso se forma no canto da minha boca. Clara confia nela mesma, mas também sabe quando pedir reforço.

O rapaz, talvez percebendo que está sendo observado, hesita. Seus olhos vagam, rápidos demais, como quem procura uma rota de fuga. Ainda assim, tenta manter a postura — finge estar apenas decidindo qual bebida levar. Mas, sem notar onde exatamente estava, comete um erro primário: pega outro produto qualquer, provavelmente algo menor, e tenta enfiá-lo por baixo da camiseta. A movimentação é tão desajeitada que chego a franzir a testa.

E o destino — ou talvez apenas a ironia do acaso — decide que, justo naquele instante, ele comete o furto a menos de dois metros de onde Augusto está, repondo caixas no freezer de congelados.

Vejo Augusto se erguer devagar, parecendo processar a cena diante de si. Pela expressão em seu rosto, ele ainda não decidiu se está irritado ou feliz por ter flagrado algo que lhe dará autoridade momentânea.

Quase posso ouvir o barulho da tampa do freezer batendo, mesmo da minha sala. Pego meu rádio. Meu corpo já se move antes que a mente processe. Saio de frente as câmeras, pego meu celular e caminho para fora da sala com passos firmes. Não que eles precisem de mim para conter a situação. Mas algo dentro de mim não permitiria que Clara passasse por qualquer tipo de risco. Nem hoje. Nem nunca.

E talvez eu finalmente esteja pronta para admitir isso.


Ei, rapaz! – ouço a voz de Augusto ecoar alto pelo mercado, áspera, sem o menor traço de tato.
O alerta dispara dentro de mim como um estopim. Meu corpo já havia passado da porta do escritório, e agora minhas pernas correm antes mesmo de qualquer ordem racional.

O garoto se assusta. Seus olhos arregalam, e ele, num reflexo desordenado, tenta fugir por um dos corredores ao lado da padaria.
Vejo tudo em fragmentos: Augusto largando a caixa que segurava, correndo em disparada; o rapaz tropeçando nos próprios passos, tentando despistar; Clara, a poucos metros, se movendo rápido, talvez com a intenção de impedir a saída, talvez apenas pelo impulso de proteger.

E então tudo acontece de uma vez.

Augusto o alcança primeiro, bloqueia o caminho, e sem aviso, o garoto desfere um soco seco, direto no rosto de Augusto.
Ouço o som abafado do impacto mesmo à distância. Meu corpo congela por um segundo.

Clara... – sussurro quase sem ar.

Meu coração martela, descompassado. Meus olhos buscam ela em meio à correria do único funcionário presente ainda golpeado e dos poucos clientes que ainda estavam por ali com medo da situação. Ela aparece no canto do corredor, arregalando os olhos diante da cena. Dá um passo à frente, hesitante, como se não soubesse se avança ou se recua. Meu maior medo naquele instante era vê-la em perigo.

Augusto, ainda tonto pelo golpe, cambaleia um pouco, mas reage com fúria.

Não consigo ver a hora exata nas imagens do aplicativo que tenho pelo celular, os minutos parecem borrar entre si diante da tensão, mas algo salta aos meus olhos. Clara… ela estava em um dos corredores, com aquela mini escada que sempre usamos para alcançar produtos no alto. O rosto sério, mas o corpo em alerta, como se antecipasse o pior.

O garoto – ainda tentando fugir – corre em disparada na direção do corredor onde ela está. Talvez achando que era uma rota de escape. Mas ele não contava com Clara.

E então, sem pensar duas vezes, ela ergue a escada e a projeta com força contra ele, atingindo-o em cheio no rosto.
O som do impacto é alto. O corpo do rapaz cede no mesmo instante, caindo de costas no chão, desorientado.

Minha boca se entreabre num gesto de surpresa e incredulidade. Meus olhos permanecem fixos nela pela tela. Clara…


O que foi isso?
Um gesto de coragem?
De proteção?
Ou só instinto puro?

Corro até o local e quando viro no corredor, ela já está ajoelhada, ofegante, ao lado do rapaz desacordado por alguns segundos. As mãos ainda trêmulas segurando a lateral da escada.

Você tá bem? – pergunto, mais preocupada com ela do que com qualquer protocolo.

Ela apenas assente, respirando rápido, tentando se recompor. Seus olhos me encontram e por um segundo, há algo ali que me desmonta.
Não era medo. Era mais... fúria contida, adrenalina, e uma espécie de... orgulho?

– Eu vi ele correr... não pensei muito. – ela diz baixo, quase num sussurro, como se estivesse se desculpando por algo que, na verdade, me fez querer abraçá-la.

Mas eu não posso. Eu não devo.

Augusto se aproxima do lado, com a cara ainda marcada pela dor e pelo ego ferido.
Mas nesse instante, ele não tem o controle. Clara teve.

Nessa hora percebo o rapaz tentar se levantar, meio desorientado da pancada.

Augusto, ainda tonto pelo golpe, cambaleia um pouco, mas reage agarrando o garoto pelo braço e o imobiliza com força desnecessária. Um dos clientes ali presente já corre para ajudar, e eu também acelero os passos, tomando as rédeas da situação.

Já chega! – digo firme, minha voz saindo mais fria do que imaginei. – Augusto, solta ele, agora!

Ele me encara, respirando pesado, a mandíbula marcada pelo vermelho da pancada. Sua expressão é de quem quer retrucar, mas se contém. Solta o rapaz com brusquidão.

Leva para os fundos! –  digo a Augusto, já tirando o celular do bolso para ligar para a polícia.

Olho para Clara. Ela está com as mãos trêmulas, respirando ainda rápido, os olhos fixos em mim como se buscasse algum tipo de certeza.

E naquele instante, passos apressados e respirações ofegantes, percebo...
Não é o medo de uma ocorrência no mercado que me domina. É o medo de algo acontecer com os funcionários e eu não tiver como contornar, medo de acontecer algo com ela.

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Página 24

O acaso a meu favor - Página 22

 Por Verônica...

"Nem sei exatamente o que me deu naquele momento. Estava olhando as câmeras, e vi a Clara... ali, demorando mais do que devia. E pelo jeito, gostando da conversa com aquela mulher. Algo meio impulsivo tomou conta de mim, como se eu precisasse acabar com aquilo.

Não havia urgência. Nenhum problema real. Os cafés que ela organizava estavam em ordem, os preços, checados. Mas mesmo assim... senti uma vontade súbita de tirá-la dali. Um impulso que eu mesma não consegui entender.

Talvez tenha sido só zelo, talvez tenha sido só minha maneira de querer manter o controle de tudo. Mas, no fundo, não foi isso. E eu sei.

Não havia necessidade de ela buscar os preços comigo naquele momento — eu poderia muito bem ter delegado. Mas ainda assim, chamei. Quis que ela viesse até mim.
Talvez só quisesse afastá-la daquela mulher. Talvez eu só quisesse tê-la por perto.

É difícil admitir, mas aquele impulso foi meu. E eu ainda estou tentando entender por quê.


Ao ver que a minha resposta a calou, me bateu aquele leve arrependimento. Mas também, conhecendo a Clara como venho conhecendo, imaginei que ela reagiria com alguma brincadeira, talvez um comentário atravessado com aquele humor debochado dela. E, se eu for honesta comigo mesma… era isso que eu queria. Uma provocação, uma gracinha qualquer. Desde que fosse só pra mim.

Seguimos até o escritório em silêncio. Ela caminhava atrás de mim, e eu tentava manter a postura, o rosto sério — sério demais, talvez. Mas por dentro, eu estava num embaraço infantil. Me sentia ridícula e orgulhosa ao mesmo tempo. Que contradição insuportável essa menina me faz sentir.

Sentei à mesa, evitando encará-la de imediato. Quando finalmente levantei os olhos, lá estava ela: encostada na parede, braços cruzados, o corpo relaxado, mas os olhos… ah, os olhos dela estavam me analisando. Com aquele brilho divertido, quase maldoso, que me tira do sério e, de alguma forma inexplicável, me alegra também.

Ela não disse nada. E o silêncio dela me dizia mais do que qualquer resposta. Não era um silêncio bravo, magoado… Era um silêncio curioso, do tipo “tô tentando entender o que foi isso agora”.

E eu queria explicar. Queria dizer “desculpa, foi só um impulso idiota”, ou então admitir que me incomodou ver ela tão entretida com outra mulher. Mas nada saía. Em vez disso, fiquei ali, com cara de poucos amigos e coração desorganizado.

Foi então que ela deu um passo à frente, arqueando uma sobrancelha com aquele ar sapeca:

— Só pra entender… foi o café mesmo que te incomodou, ou foi o papo bom demais?

Quase revirei os olhos. Mas segurei. Dei um suspiro exagerado, e respondi da forma mais seca que consegui — pra me proteger, claro:

— Não vejo problema em você fazer seu trabalho. Desde que lembre onde ele começa... e termina.

Ela riu. Baixo, de canto. Um riso provocador e suave, do tipo que me desmonta.

— Entendi. Limite geográfico e afetivo, anotado.

Virei a cadeira levemente, para esconder o sorriso que escapava no canto da boca. Essa garota me tira do eixo.

E mesmo com vontade de colocar ela pra fora da sala, também me peguei desejando que ficasse mais um pouquinho.


Ao vê-la sair do escritório, meus olhos automaticamente buscaram pelas câmeras, como quem tenta continuar perto mesmo de longe. Eu me odiava um pouco por isso. Cada canto que ela passava, cada gesto simples como arrumar o uniforme ou prender o cabelo, me prendia a atenção de uma forma que… sinceramente, começava a me assustar.

Talvez eu esteja mesmo levando pra um lado pessoal demais. Nossas conversas na hora do almoço, os sorrisos sutis. Eu sei que não tem nada ali, ou pelo menos, não deveria ter. Ela é apenas uma funcionária. E eu sou a chefe. Deveria bastar essa linha pra colocar freio no que ando sentindo.

Talvez eu precise mesmo começar a me afastar. Diminuir os encontros. Esfriar qualquer sinal de aproximação. Mas o problema é: como faço isso, se justamente esses pequenos momentos com ela são os que me aquecem no meio dessa rotina fria e solitária?

Com os outros funcionários, meu contato é direto, objetivo, quase sempre técnico. E sim — muitos têm medo de mim. A forma como me olham, como evitam conversas além do necessário, como se estivessem sempre esperando uma bronca. No começo me incomodava. Agora, confesso que prefiro assim. É mais fácil manter o controle quando ninguém se aproxima demais.

Mas a Clara... ela atravessou essa barreira sem nem perceber que ela existia. E eu permiti. Talvez até desejei.

Agora, sozinha na sala, me vejo encarando meu reflexo na tela preta do monitor desligado. O rosto sério, os olhos cansados, e o pensamento... totalmente voltado para ela.

Suspirei fundo, passando a mão no cabelo e me forçando a voltar ao trabalho. O problema de lidar com o inesperado, é que às vezes ele tem um sorriso bonito e um jeito de rir que te desmonta inteira.


Não sei ao certo por que agora estou deixando esses pensamentos fluírem… Talvez seja o silêncio do escritório, ou o fato de me permitir pequenas distrações quando penso nela. Respiro fundo, endireito a postura na cadeira, jogo os cabelos para trás como um ato quase automático de retomada de controle, e me concentro no que deveria estar fazendo: revisar os pedidos do mês.

Foco em manter as compras dentro do necessário, nada além do básico. O mês ainda está no começo, e depois das últimas movimentações e desligamentos, prefiro conter gastos. Hoje estamos com a equipe reduzida — um repositor de folga, o caixa também. Restamos apenas eu, Augusto, e… Clara.

É quando vejo um rapaz entrando no mercado. Casaco maior do que o necessário para um clima como o de hoje. Largo a caneta com suavidade sobre a mesa. Meus olhos se estreitam, não por paranoia, mas por precaução. O instinto que me acompanha desde que assumi essa função nunca falha. Mas meu reflexo imediato é outro: Clara.

Procuro por ela nas câmeras. Lá está, concentrada como sempre, arrumando a seção de grãos. Mas logo percebo algo em seu olhar — ela também reparou. Clara não é boba. Ela se ergue com calma, como quem apenas está cumprindo seu trabalho, mas seu corpo diz outra coisa: alerta.

Finge estar analisando um produto, mas seus olhos estão nele. Assim como os meus.

Desvio os olhos da tela e pressiono os lábios. Augusto está no fundo, repondo os freezers. Ele não percebeu nada. Claro que não. Não presta atenção em nada além de si mesmo.

Eu continuo observando, mas sem intervir ainda. Quero ver até onde isso vai. E, talvez, de forma ainda mais forte do que a preocupação com o rapaz, vem o incômodo latente de ver Clara se expor, ainda que com elegância, a algo que eu preferia evitar pra ela.

Sou invadida por aquele sentimento estranho novamente — o de querer protegê-la. Mesmo que isso me atrapalhe. Mesmo que eu não entenda ainda o porquê.

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quarta-feira, 25 de junho de 2025

O acaso a meu favor - Página 21

O acaso a meu favor - Página 21

 

Por Clara...

 Ao chegar no mercado naquela manhã, fui surpreendida pela notícia das demissões da Ju, do seu Paulo e do Luís. Me deu um aperto no peito, confesso. Fiquei em silêncio por alguns minutos, digerindo a informação com um nó na garganta. Foram colegas que, de certa forma, fizeram meus dias mais leves por aqui. Sempre tão presentes, tão humanos. É impossível não sentir falta. Mas, mesmo com a tristeza, não consegui sentir raiva ou julgamento pelas escolhas da Verônica. Pelo contrário, sei que ela está tentando reestruturar tudo e fazer o mercado caminhar de um jeito mais justo e profissional. Entendo que, por mais que doa, algumas mudanças são necessárias. Ainda assim… vai ser estranho depois que passar a rescisão não ver os rostos deles por aqui. 

E seu Paulo sendo quem é, justo no dia em que ia cobrir a folga de outro colega, resolve faltar. Eu já imaginava que isso poderia acontecer, não vou mentir. Conhecendo o jeitão dele, dava pra ver que essa saída já estava sendo pensada fazia tempo. O mais curioso foi ver o Augusto praticamente surtar — começou a ligar pra ele desesperadamente, como se fosse uma emergência de vida ou morte. Era nítido o pânico estampado no rosto dele, tentando de todas as formas contornar a situação sem quebrar a nova regra da Verônica. — Caso contrário, o gerente presente será o responsável por cobrir a ausência de qualquer funcionário, seja no caixa, seja como repositor. — Quase me escapou uma risada ao ver ele se equilibrando entre o orgulho e o medo de tomar uma chamada. A verdade é que, até pouco tempo atrás, ele mandava e desmandava por aqui… agora tá engolindo seco, tentando seguir as novas ordens.  

Vejo o carro da Verônica passar em frente ao mercado, e, como de costume, imagino que vá estacionar na vaga preferencial dela. Augusto, completamente alheio à movimentação, continua grudado no celular, tentando — sem sucesso — falar com seu Paulo. Quando ela entra pela porta, uma discreta euforia me percorre. É estranho, não sei bem explicar, mas algo nela sempre me tira do eixo.

Retira os óculos escuros que nunca faltam nas manhãs e, ao cruzar o olhar comigo, me lança um sorriso — mais largo que o de costume, mas ainda assim contido.

— Bom dia, Clara. — Sua voz firme e tranquila me alcança, e seus olhos permanecem fixos em mim por poucos segundos, que mais parecem minutos.

Assinto, meio sem jeito, temendo que qualquer palavra soasse fora de lugar. Ela, percebendo meu embaraço, apenas mantém o sorriso e segue com passos seguros em direção ao que suponho ser o escritório. E eu fico ali, com um leve calor nas bochechas, como se tivesse sido pega no flagra de um pensamento bobo.

 

Ao ver o fraco movimento, adentrei mercado adentro entrando no galpão pegar algumas mercadorias para repor a frente de caixa, estava com alguns buracos, então decidir matar o tempo trabalhando.

 

Ao notar o fraco movimento, resolvi entrar no galpão para buscar algumas mercadorias e repor os espaços vazios na frente de caixa. Havia várias prateleiras com buracos, então achei que seria uma boa forma de matar o tempo e me manter ocupada.

Vejo o Augusto indo na mesma direção que eu, e percebo que junto comigo ele começa a pegar algumas mercadorias. 

Então pergunto a ele: - Essas caixas é para repor a sessão de café? - Ele com cara de poucos amigos apenas afirma com a cabeça. Então continuo - Se quiser reponho pra você, já que a sessão fica de frente para o meu caixa.

Ele me analisa e então em um tom duvidoso me pergunta - Oque você quer garota?

Te ajudar, ingrato. - Penso comigo - Já que seu Paulo não veio, como sei que hoje é Quinta-feira, alguém precisa repor a sessão de legumes.

 

Vejo Augusto indo na mesma direção que eu e, claro, começa a pegar mercadorias também. Coincidência ou não, parecia até que estávamos em sintonia — só que não.

 

— Essas caixas aí são pra repor a sessão de café? — pergunto, mesmo sabendo a resposta.

 

Ele só confirma com a cabeça, daquele jeito simpático de sempre, como se sorrir custasse caro.

 

— Se quiser, eu reponho pra você. A sessão é de frente pro meu caixa mesmo, não vai matar ninguém.

 

Ele me encara como se eu tivesse oferecido veneno, não ajuda.

 

— O que você quer, garota? — solta, desconfiado.

 

Te ajudar, ingrato, penso, rolando os olhos por dentro.

Mas tudo bem. Já que seu Paulo resolveu desaparecer justo numa quinta-feira — porque claro, quinta é dia de legumes:

  — alguém precisa fazer o trabalho pesado. E, adivinha? Sobrou pra você.

 

Ele me olha como se não esperasse a resposta. Meio surpreso, meio irritado — o que, no caso dele, é praticamente a mesma expressão. Aí, do jeito dele, solta:

 

— Só vou aceitar porque teu amiguinho hoje resolveu, por vingança, faltar… depois da demissão que levou.

 

Dou uma risada nasal, curta, quase irônica. Não porque achei engraçado — longe disso —, mas porque era mais fácil rir do que entrar nessa conversa.

 

Sem dizer mais nada, pego um carrinho, encaixo as caixas dentro dele com calma e começo a caminhar em direção à sessão, onde, como sempre, ninguém repõe nada.

 

Passei a manhã inteira repondo e limpando as prateleiras. Sem pressa, confesso. O movimento estava fraco e, pelo mês em que estamos, já era esperado — Caldas Novas praticamente esvazia fora de temporada.

 

“Caldas Novas…” — penso comigo — “Cheguei aqui e essa cidade me abraçou de um jeito estranho. Intenso. Não foi de uma vez, claro. Tiveram dias ruins, empresas péssimas, gente pior ainda… Mas a cidade em si? Um lugar cheio de oportunidades. Aqui, trabalho não falta. E tem mais — a cultura, as músicas de rua, os festivais espalhados pela cidade, e claro, as famosas águas termais.”

 

Na época, quando ouvi que era a única cidade do Brasil com águas quentes naturais, não dei muita bola. Achei que era só mais uma daquelas frases de panfleto turístico. Mas depois, com o tempo, entendi: essa cidade vive em cima dessas águas. Respira turismo, gira em torno disso. E mesmo eu, que nunca fui de mergulhar em nada, acabei ficando.

Sentada num banquinho meio torto, quase encaixada entre a gôndola e a prateleira de baixo, eu ia colocando os pacotes de café no lugar, quando escuto uma voz feminina me chamar logo atrás:

— Moça, você trabalha aqui?

Já vinha aquele impulso automático de revirar os olhos com esse tipo de pergunta — afinal, uniforme, crachá e tudo mais… Mas antes de qualquer reação, virei o rosto e... uau.

Uma mulher linda. Daquelas que fazem a gente até esquecer o que ia dizer. Cabelos castanhos claros, lisos e brilhosos, caindo com naturalidade até abaixo dos ombros. Trajava um vestido simples, mas elegante, e tinha um daqueles sorrisos que desarmam qualquer um.

Me levantei quase tropeçando no próprio pé, ajeitei a camiseta e respondi com um sorriso meio sem graça:

— Sim, sim, trabalho aqui. Você precisa de ajuda?

Naquele momento, não sabia se era o perfume dela ou o efeito colateral da cafeína dos pacotes que eu estava repondo… mas meu coração bateu meio torto.

— Na verdade, sim. — ela sorriu com doçura. — Estou procurando um café mais suave. Meu estômago não aguenta esses muito fortes. Você teria alguma sugestão?

Tentei disfarçar o nervosismo e a vontade de perguntar se ela queria o café ou meu número.

— Ah, claro, tem esse aqui — apontei para uma embalagem azul clara — ele é mais fraco, com torra média e sabor bem suave. A maioria dos clientes que gostam de algo mais leve costuma preferir ele.

Ela pegou o pacote, leu com atenção e comentou:

— Obrigada! Você tem um jeitinho calmo, é bom ser atendida assim. A maioria das pessoas só quer se livrar logo da gente.

Sorri meio boba. Até cogitei responder alguma gracinha, mas antes que minha coragem chegasse, ouvi o salto conhecido ecoando no piso encerado do mercado. Não demorou muito para Verônica surgir no corredor, como quem não queria nada — só que queria tudo.

— Clara — chamou meu nome com uma pontada de doçura forçada — você pode me ajudar com uma conferência de preços? Preciso disso pra agora.

Virei meio sem jeito, tentando disfarçar a decepção pelo corte abrupto na conversa. A moça bonita deu um sorrisinho educado para a Verônica, mas foi correspondida com um aceno quase imperceptível e nada simpático.

— Ah... claro, só um minuto. — respondi para a Verônica, e me virei para a cliente. — Qualquer coisa, pode me procurar, viu? Fico feliz em ajudar.

Ela agradeceu com o mesmo sorriso bonito e foi embora, enquanto eu seguia Verônica, que agora andava à frente com um silêncio ensaiado, quase barulhento.

— Algum problema com café? — perguntei, tentando quebrar o gelo.

— Nenhum — ela respondeu seca. — Só achei que você já tinha terminado essa reposição há tempos.

Era mentira. Ela sabia que ainda estava na metade. Mas a verdade é que ela não veio pelo café, e sim por algo que nem eu acreditava que nem ela ainda sabia explicar.

Segui Verônica pelos corredores em direção ao fundo, ainda sentindo o leve calor no rosto pela interrupção repentina. O salto dela ecoava com firmeza, e eu tentava acompanhar seu ritmo, mesmo sentindo o ar meio pesado entre nós.

Antes de chegarmos à porta do estoque, resolvi quebrar o silêncio.

— Só uma coisa... o caixa ficou sozinho, como a Ju hoje tá de folga... Talvez seja bom dar uma olhada nas câmeras, só por precaução. — falei com a voz controlada, tentando parecer neutra, embora soubesse exatamente o que eu estava tentando evitar.

Ela parou de andar, virando o rosto levemente para mim, o suficiente para lançar aquele olhar que dizia mais do que qualquer frase.

— A sua preocupação é com o caixa... — ela começou com calma, mas com um tom que já entregava o veneno vindo. — ...ou está mais preocupada em voltar correndo pra dar atenção à moça do café?

Travei. Por um instante fiquei sem saber se ria, se respondia, ou se fingia que não entendi a provocação. Mas ela entendeu meu silêncio antes mesmo de eu abrir a boca.

— Relaxa, Clara. Eu olho as câmeras. Vai que ela resolve procurar outra sugestão de café e se perde nos corredores — disse com um sorrisinho enviesado nos lábios, já virando de novo para seguir caminho.

Fiquei parada por um segundo, absorvendo a indireta mais direta que já tinha recebido dela. Suspirei e a segui em silêncio.

Talvez o mercado tivesse câmeras em todos os cantos, mas era impossível não notar quando alguém estava vigiando a gente bem de perto. E no caso da Verônica... a lente era mais pessoal do que profissional.

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Por Verônica...

Os convites para almoçar, partindo de mim, tornaram-se frequentes. Não por hábito social — disso eu sempre mantive distância —, mas porque, curiosamente, havia algo de confortável naquele intervalo ao lado de Clara. Entre um comentário espirituoso e outro, ela conseguia, nos dias em que não estava tão elétrica, arrancar de mim pequenas risadas, ou pelo menos um certo alívio. Por instantes, me distraía do desgaste constante que é tentar reerguer um mercado que todos já davam por morto. Era como se, naquele espaço de tempo medido, o peso das responsabilidades deslizasse para fora dos ombros, ainda que por pouco.

 

Hoje, Clara está de folga. E, embora eu raramente me permita admitir esse tipo de coisa, o mercado parece mais silencioso — não no sentido físico, mas como se faltasse uma frequência habitual no ar. Uma ausência quase irritante.

 

Cheguei cedo, mas já com a paciência por um fio. Há dias em que minha tolerância se esgota antes mesmo do café esfriar. Chamei os três colaboradores que, desde o início, demonstram maior resistência à nova gestão. Não houve discursos. Quando se sentaram diante de mim, fui clara, objetiva — como deve ser: informei o desligamento imediato. Sem rodeios, sem explicações longas. Quem não acompanha o ritmo, atrasa a marcha. E eu não vim até aqui para tolerar freios.

 

Hoje, além dos dois repositores, uma operadora de caixa também foi dispensada. Não por impulso — nunca é. Mas por acúmulo.

 

Desde o início, ela demonstrava pouco apreço pelo ofício. Os deslizes se repetiam: desatenção constante, o celular como extensão das mãos, até mesmo durante o atendimento. Quando o movimento do mercado caía — e, inevitavelmente, isso acontece — eu a observava permanecer imóvel, como se uma vassoura não fosse parte do seu posto, como se manter o espaço limpo fosse uma gentileza opcional.

 

Sua aparência, quase sempre desleixada, transmitia mais desleixo do que cansaço. E havia algo de provocativo no hábito de lixar as unhas atrás do caixa, como se estivesse no sofá de casa, e não em horário comercial sob minha supervisão.

 

Dei uma advertência verbal. Chamei para uma segunda conversa, tentando, ainda, buscar algum traço de compromisso. Na terceira ocorrência, não tolerei mais. Quem não soma, não multiplica — e este mercado não é abrigo para hábitos que atrasam o todo.

 

Além disso, sei que muitos — moças e rapazes — dariam tudo por uma vaga estável nesta cidade. Lamentavelmente, alguns confundem estabilidade com impunidade. E esse tipo de erro custa caro.

 

Ainda assim... apesar das decisões corretas, há algo estranho neste dia. Um incômodo sutil.

 Talvez seja só o eco da ausência de Clara — ou o silêncio que ela costumava, inadvertidamente, preencher.

 

Voltando a atenção aos ex funcionários a minha frente, vejo a expressão de surpresa e indignação tomar conta do rosto de um deles, que agora vem me confrontar por causa da minha decisão.

— Servi esse mercado por anos… — ele esbraveja. — Na época do seu pai, ajudei quando isso aqui não passava de um mercadinho de esquina barato. E é assim que você me agradece?

 

Meu olhar, já frio, se tornou ainda mais gélido. Tenho gratidão pelo tempo em que serviu ao meu pai com profissionalismo, sim. Mas não perdoo o modo como, mais tarde, aproveitou-se da gestão frouxa do meu irmão para disfarçar caprichos e deslizes como se fossem meros contratempos.

 

— Não acredito que está fazendo isso comigo, Verônica.

Inclinei levemente a cabeça, analisando cada palavra com a calma de quem não se deixa arrastar por sentimentalismos. Ele engoliu seco, mas continuou.

— Seu pai ele me considerava parte desse  mercado.  — Continua  — Fiz o que foi preciso, sacrifiquei fins de semana, abri mão de férias.

 

E de maneira cortante disse calculadamente.

 

— E em troca você se sentiu autorizado a contornar regras, manipular inventários e justificar gastos que não eram da empresa — rebati, cortante. — Isso não é lealdade. É conveniência.

Houve um momento em que ele pareceu diminuir de tamanho diante de mim. A arrogância se dissipava como o resto de dignidade no fundo de um copo quebrado. Meu silêncio final pesava mais do que qualquer grito.

 

— Cheguei aqui com o intuito de corrigir cada erro cometido pela minha família — disse, sem levantar a voz, olhando ainda pela janela.

 

Houve um instante de silêncio. Eu sabia que ele me ouvia, mesmo sem resposta.

 

— Mas você, junto de alguns colegas, se opôs a cada mudança que visava restaurar a integridade dessa empresa. Preferiram manter os erros como meio — continuou —, de disfarçadamente porem a culpa na desculpa de estarem apenas "fazendo o que sempre funcionou".

 

Virei-me lentamente, encontrando seu olhar.

 

— A verdade é que vocês estavam confortáveis demais com a desordem.

 

Ele não respondeu. Apenas baixou os olhos, como se, pela primeira vez, sentisse o peso da própria consciência. Mas arrependimento tardio não pesava na minha balança.

 

— Não vim aqui para agradar. Vim para corrigir.

Não dei margem para que a situação se prolongasse. Os dispensei com a mesma frieza com que uma lâmina corta um laço já desgastado — informei que havia trabalho a ser feito. E havia mesmo.

 

Retornei à minha mesa, organizei os papéis, respirei fundo. Era hora de fazer os anúncios das vagas que agora estavam abertas. Este mercado precisava de sangue novo — uma geração disposta a transformar o "novo" em oportunidade, em crescimento real. Pessoas que não vissem o cargo como um favor, mas como um campo fértil para despertar talentos adormecidos, para se aprimorarem através do desafio, e não da zona de conforto.

 

O passado, por mais que doa ou incomode, já tinha sido arquivado. Agora, eu construía o futuro — com alicerces firmes e gente capaz de sustentá-lo.

 

Pretendo oferecer bons benefícios àqueles que permanecerem e abraçarem as novas diretrizes, assim como aos novos integrantes que farão parte desta equipe a partir de agora. Quero deixar para trás o passado de uma empresa limitada, estagnada, e transformá-la em uma organização inovadora — onde o talento se destaca, independentemente do cargo.

 

Mesmo sendo apenas um mercado, meu objetivo é claro: expandir a rede o mais rápido possível. E para isso, precisarei de pessoas comprometidas, de futuros gerentes, de líderes em potencial. Quem estiver disposto a crescer junto, terá espaço e reconhecimento.

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