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quarta-feira, 25 de junho de 2025

O acaso a meu favor - Página 20

 O acaso a meu favor - Página 20


Por Verônica...

Os convites para almoçar, partindo de mim, tornaram-se frequentes. Não por hábito social — disso eu sempre mantive distância —, mas porque, curiosamente, havia algo de confortável naquele intervalo ao lado de Clara. Entre um comentário espirituoso e outro, ela conseguia, nos dias em que não estava tão elétrica, arrancar de mim pequenas risadas, ou pelo menos um certo alívio. Por instantes, me distraía do desgaste constante que é tentar reerguer um mercado que todos já davam por morto. Era como se, naquele espaço de tempo medido, o peso das responsabilidades deslizasse para fora dos ombros, ainda que por pouco.

 

Hoje, Clara está de folga. E, embora eu raramente me permita admitir esse tipo de coisa, o mercado parece mais silencioso — não no sentido físico, mas como se faltasse uma frequência habitual no ar. Uma ausência quase irritante.

 

Cheguei cedo, mas já com a paciência por um fio. Há dias em que minha tolerância se esgota antes mesmo do café esfriar. Chamei os três colaboradores que, desde o início, demonstram maior resistência à nova gestão. Não houve discursos. Quando se sentaram diante de mim, fui clara, objetiva — como deve ser: informei o desligamento imediato. Sem rodeios, sem explicações longas. Quem não acompanha o ritmo, atrasa a marcha. E eu não vim até aqui para tolerar freios.

 

Hoje, além dos dois repositores, uma operadora de caixa também foi dispensada. Não por impulso — nunca é. Mas por acúmulo.

 

Desde o início, ela demonstrava pouco apreço pelo ofício. Os deslizes se repetiam: desatenção constante, o celular como extensão das mãos, até mesmo durante o atendimento. Quando o movimento do mercado caía — e, inevitavelmente, isso acontece — eu a observava permanecer imóvel, como se uma vassoura não fosse parte do seu posto, como se manter o espaço limpo fosse uma gentileza opcional.

 

Sua aparência, quase sempre desleixada, transmitia mais desleixo do que cansaço. E havia algo de provocativo no hábito de lixar as unhas atrás do caixa, como se estivesse no sofá de casa, e não em horário comercial sob minha supervisão.

 

Dei uma advertência verbal. Chamei para uma segunda conversa, tentando, ainda, buscar algum traço de compromisso. Na terceira ocorrência, não tolerei mais. Quem não soma, não multiplica — e este mercado não é abrigo para hábitos que atrasam o todo.

 

Além disso, sei que muitos — moças e rapazes — dariam tudo por uma vaga estável nesta cidade. Lamentavelmente, alguns confundem estabilidade com impunidade. E esse tipo de erro custa caro.

 

Ainda assim... apesar das decisões corretas, há algo estranho neste dia. Um incômodo sutil.

 Talvez seja só o eco da ausência de Clara — ou o silêncio que ela costumava, inadvertidamente, preencher.

 

Voltando a atenção aos ex funcionários a minha frente, vejo a expressão de surpresa e indignação tomar conta do rosto de um deles, que agora vem me confrontar por causa da minha decisão.

— Servi esse mercado por anos… — ele esbraveja. — Na época do seu pai, ajudei quando isso aqui não passava de um mercadinho de esquina barato. E é assim que você me agradece?

 

Meu olhar, já frio, se tornou ainda mais gélido. Tenho gratidão pelo tempo em que serviu ao meu pai com profissionalismo, sim. Mas não perdoo o modo como, mais tarde, aproveitou-se da gestão frouxa do meu irmão para disfarçar caprichos e deslizes como se fossem meros contratempos.

 

— Não acredito que está fazendo isso comigo, Verônica.

Inclinei levemente a cabeça, analisando cada palavra com a calma de quem não se deixa arrastar por sentimentalismos. Ele engoliu seco, mas continuou.

— Seu pai ele me considerava parte desse  mercado.  — Continua  — Fiz o que foi preciso, sacrifiquei fins de semana, abri mão de férias.

 

E de maneira cortante disse calculadamente.

 

— E em troca você se sentiu autorizado a contornar regras, manipular inventários e justificar gastos que não eram da empresa — rebati, cortante. — Isso não é lealdade. É conveniência.

Houve um momento em que ele pareceu diminuir de tamanho diante de mim. A arrogância se dissipava como o resto de dignidade no fundo de um copo quebrado. Meu silêncio final pesava mais do que qualquer grito.

 

— Cheguei aqui com o intuito de corrigir cada erro cometido pela minha família — disse, sem levantar a voz, olhando ainda pela janela.

 

Houve um instante de silêncio. Eu sabia que ele me ouvia, mesmo sem resposta.

 

— Mas você, junto de alguns colegas, se opôs a cada mudança que visava restaurar a integridade dessa empresa. Preferiram manter os erros como meio — continuou —, de disfarçadamente porem a culpa na desculpa de estarem apenas "fazendo o que sempre funcionou".

 

Virei-me lentamente, encontrando seu olhar.

 

— A verdade é que vocês estavam confortáveis demais com a desordem.

 

Ele não respondeu. Apenas baixou os olhos, como se, pela primeira vez, sentisse o peso da própria consciência. Mas arrependimento tardio não pesava na minha balança.

 

— Não vim aqui para agradar. Vim para corrigir.

Não dei margem para que a situação se prolongasse. Os dispensei com a mesma frieza com que uma lâmina corta um laço já desgastado — informei que havia trabalho a ser feito. E havia mesmo.

 

Retornei à minha mesa, organizei os papéis, respirei fundo. Era hora de fazer os anúncios das vagas que agora estavam abertas. Este mercado precisava de sangue novo — uma geração disposta a transformar o "novo" em oportunidade, em crescimento real. Pessoas que não vissem o cargo como um favor, mas como um campo fértil para despertar talentos adormecidos, para se aprimorarem através do desafio, e não da zona de conforto.

 

O passado, por mais que doa ou incomode, já tinha sido arquivado. Agora, eu construía o futuro — com alicerces firmes e gente capaz de sustentá-lo.

 

Pretendo oferecer bons benefícios àqueles que permanecerem e abraçarem as novas diretrizes, assim como aos novos integrantes que farão parte desta equipe a partir de agora. Quero deixar para trás o passado de uma empresa limitada, estagnada, e transformá-la em uma organização inovadora — onde o talento se destaca, independentemente do cargo.

 

Mesmo sendo apenas um mercado, meu objetivo é claro: expandir a rede o mais rápido possível. E para isso, precisarei de pessoas comprometidas, de futuros gerentes, de líderes em potencial. Quem estiver disposto a crescer junto, terá espaço e reconhecimento.

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