O acaso a meu favor - Página 21
Por Clara...
Ao chegar no mercado naquela manhã, fui surpreendida pela notícia
das demissões da Ju, do seu Paulo e do Luís. Me deu um aperto no peito,
confesso. Fiquei em silêncio por alguns minutos, digerindo a informação com um
nó na garganta. Foram colegas que, de certa forma, fizeram meus dias mais leves
por aqui. Sempre tão presentes, tão humanos. É impossível não sentir falta.
Mas, mesmo com a tristeza, não consegui sentir raiva ou julgamento pelas
escolhas da Verônica. Pelo contrário, sei que ela está tentando reestruturar
tudo e fazer o mercado caminhar de um jeito mais justo e profissional. Entendo
que, por mais que doa, algumas mudanças são necessárias. Ainda assim… vai ser
estranho depois que passar a rescisão não ver os rostos deles por aqui.
E seu Paulo sendo quem é, justo no dia em que ia cobrir a folga de outro
colega, resolve faltar. Eu já imaginava que isso poderia acontecer, não vou
mentir. Conhecendo o jeitão dele, dava pra ver que essa saída já estava sendo
pensada fazia tempo. O mais curioso foi ver o Augusto praticamente surtar —
começou a ligar pra ele desesperadamente, como se fosse uma emergência de vida
ou morte. Era nítido o pânico estampado no rosto dele, tentando de todas as
formas contornar a situação sem quebrar a nova regra da Verônica. — Caso
contrário, o gerente presente será o responsável por cobrir a ausência de
qualquer funcionário, seja no caixa, seja como repositor. — Quase me
escapou uma risada ao ver ele se equilibrando entre o orgulho e o medo de tomar
uma chamada. A verdade é que, até pouco tempo atrás, ele mandava e desmandava
por aqui… agora tá engolindo seco, tentando seguir as novas ordens.
Vejo o carro da Verônica passar em frente ao mercado, e, como de
costume, imagino que vá estacionar na vaga preferencial dela. Augusto,
completamente alheio à movimentação, continua grudado no celular, tentando —
sem sucesso — falar com seu Paulo. Quando ela entra pela porta, uma discreta
euforia me percorre. É estranho, não sei bem explicar, mas algo nela sempre me
tira do eixo.
Retira os óculos escuros que nunca faltam nas manhãs e, ao cruzar o
olhar comigo, me lança um sorriso — mais largo que o de costume, mas ainda
assim contido.
— Bom dia, Clara. — Sua voz firme e tranquila me alcança, e seus olhos
permanecem fixos em mim por poucos segundos, que mais parecem minutos.
Assinto, meio sem jeito, temendo que qualquer palavra soasse fora de
lugar. Ela, percebendo meu embaraço, apenas mantém o sorriso e segue com passos
seguros em direção ao que suponho ser o escritório. E eu fico ali, com um leve
calor nas bochechas, como se tivesse sido pega no flagra de um pensamento bobo.
Ao ver o fraco movimento, adentrei mercado adentro entrando no galpão
pegar algumas mercadorias para repor a frente de caixa, estava com alguns
buracos, então decidir matar o tempo trabalhando.
Ao notar o fraco movimento, resolvi entrar no galpão para buscar algumas
mercadorias e repor os espaços vazios na frente de caixa. Havia várias
prateleiras com buracos, então achei que seria uma boa forma de matar o tempo e
me manter ocupada.
Vejo o Augusto indo na mesma direção que eu, e percebo que junto comigo
ele começa a pegar algumas mercadorias.
Então pergunto a ele: - Essas caixas é para repor a sessão de café? -
Ele com cara de poucos amigos apenas afirma com a cabeça. Então continuo - Se
quiser reponho pra você, já que a sessão fica de frente para o meu caixa.
Ele me analisa e então em um tom duvidoso me pergunta - Oque você quer
garota?
Te ajudar, ingrato. - Penso comigo - Já que seu Paulo não veio, como sei
que hoje é Quinta-feira, alguém precisa repor a sessão de legumes.
Vejo Augusto indo na mesma direção que eu e, claro, começa a pegar
mercadorias também. Coincidência ou não, parecia até que estávamos em sintonia
— só que não.
— Essas caixas aí são pra repor a sessão de café? — pergunto, mesmo
sabendo a resposta.
Ele só confirma com a cabeça, daquele jeito simpático de sempre, como se
sorrir custasse caro.
— Se quiser, eu reponho pra você. A sessão é de frente pro meu caixa
mesmo, não vai matar ninguém.
Ele me encara como se eu tivesse oferecido veneno, não ajuda.
— O que você quer, garota? — solta, desconfiado.
Te ajudar, ingrato, penso, rolando os olhos por dentro.
Mas tudo bem. Já que seu Paulo resolveu desaparecer justo numa
quinta-feira — porque claro, quinta é dia de legumes:
— alguém precisa fazer o trabalho pesado. E, adivinha?
Sobrou pra você.
Ele me olha como se não esperasse a resposta. Meio surpreso, meio
irritado — o que, no caso dele, é praticamente a mesma expressão. Aí, do jeito
dele, solta:
— Só vou aceitar porque teu amiguinho hoje resolveu, por vingança,
faltar… depois da demissão que levou.
Dou uma risada nasal, curta, quase irônica. Não porque achei engraçado —
longe disso —, mas porque era mais fácil rir do que entrar nessa conversa.
Sem dizer mais nada, pego um carrinho, encaixo as caixas dentro dele com
calma e começo a caminhar em direção à sessão, onde, como sempre, ninguém repõe
nada.
Passei a manhã inteira repondo e limpando as prateleiras. Sem pressa,
confesso. O movimento estava fraco e, pelo mês em que estamos, já era esperado
— Caldas Novas praticamente esvazia fora de temporada.
“Caldas Novas…” — penso comigo — “Cheguei aqui e essa cidade me abraçou
de um jeito estranho. Intenso. Não foi de uma vez, claro. Tiveram dias ruins,
empresas péssimas, gente pior ainda… Mas a cidade em si? Um lugar cheio de
oportunidades. Aqui, trabalho não falta. E tem mais — a cultura, as músicas de
rua, os festivais espalhados pela cidade, e claro, as famosas águas termais.”
Na época, quando ouvi que era a única cidade do Brasil com águas quentes
naturais, não dei muita bola. Achei que era só mais uma daquelas frases de
panfleto turístico. Mas depois, com o tempo, entendi: essa cidade vive em cima
dessas águas. Respira turismo, gira em torno disso. E mesmo eu, que nunca fui
de mergulhar em nada, acabei ficando.
Sentada num banquinho meio torto, quase encaixada entre a gôndola e a
prateleira de baixo, eu ia colocando os pacotes de café no lugar, quando escuto
uma voz feminina me chamar logo atrás:
— Moça, você trabalha aqui?
Já vinha aquele impulso automático de revirar os olhos com esse tipo de
pergunta — afinal, uniforme, crachá e tudo mais… Mas antes de qualquer reação,
virei o rosto e... uau.
Uma mulher linda. Daquelas que fazem a gente até esquecer o que ia
dizer. Cabelos castanhos claros, lisos e brilhosos, caindo com naturalidade até
abaixo dos ombros. Trajava um vestido simples, mas elegante, e tinha um
daqueles sorrisos que desarmam qualquer um.
Me levantei quase tropeçando no próprio pé, ajeitei a camiseta e
respondi com um sorriso meio sem graça:
— Sim, sim, trabalho aqui. Você precisa de ajuda?
Naquele momento, não sabia se era o perfume dela ou o efeito colateral
da cafeína dos pacotes que eu estava repondo… mas meu coração bateu meio torto.
— Na verdade, sim. — ela sorriu com doçura. — Estou procurando um café
mais suave. Meu estômago não aguenta esses muito fortes. Você teria alguma
sugestão?
Tentei disfarçar o nervosismo e a vontade de perguntar se ela queria o
café ou meu número.
— Ah, claro, tem esse aqui — apontei para uma embalagem azul clara — ele
é mais fraco, com torra média e sabor bem suave. A maioria dos clientes que
gostam de algo mais leve costuma preferir ele.
Ela pegou o pacote, leu com atenção e comentou:
— Obrigada! Você tem um jeitinho calmo, é bom ser atendida assim. A
maioria das pessoas só quer se livrar logo da gente.
Sorri meio boba. Até cogitei responder alguma gracinha, mas antes que
minha coragem chegasse, ouvi o salto conhecido ecoando no piso encerado do
mercado. Não demorou muito para Verônica surgir no corredor, como quem não
queria nada — só que queria tudo.
— Clara — chamou meu nome com uma pontada de doçura forçada — você pode
me ajudar com uma conferência de preços? Preciso disso pra agora.
Virei meio sem jeito, tentando disfarçar a decepção pelo corte abrupto
na conversa. A moça bonita deu um sorrisinho educado para a Verônica, mas foi
correspondida com um aceno quase imperceptível e nada simpático.
— Ah... claro, só um minuto. — respondi para a Verônica, e me virei para
a cliente. — Qualquer coisa, pode me procurar, viu? Fico feliz em ajudar.
Ela agradeceu com o mesmo sorriso bonito e foi embora, enquanto eu
seguia Verônica, que agora andava à frente com um silêncio ensaiado, quase
barulhento.
— Algum problema com café? — perguntei, tentando quebrar o gelo.
— Nenhum — ela respondeu seca. — Só achei que você já tinha terminado
essa reposição há tempos.
Era mentira. Ela sabia que ainda estava na metade. Mas a verdade é que
ela não veio pelo café, e sim por algo que nem eu acreditava que nem ela ainda
sabia explicar.
Segui Verônica pelos corredores em direção ao fundo, ainda sentindo o
leve calor no rosto pela interrupção repentina. O salto dela ecoava com firmeza,
e eu tentava acompanhar seu ritmo, mesmo sentindo o ar meio pesado entre nós.
Antes de chegarmos à porta do estoque, resolvi quebrar o silêncio.
— Só uma coisa... o caixa ficou sozinho, como a Ju hoje tá de folga... Talvez seja bom dar uma olhada nas câmeras, só por precaução. — falei
com a voz controlada, tentando parecer neutra, embora soubesse exatamente o que
eu estava tentando evitar.
Ela parou de andar, virando o rosto levemente para mim, o suficiente
para lançar aquele olhar que dizia mais do que qualquer frase.
— A sua preocupação é com o caixa... — ela começou com calma, mas com um
tom que já entregava o veneno vindo. — ...ou está mais preocupada em voltar
correndo pra dar atenção à moça do café?
Travei. Por um instante fiquei sem saber se ria, se respondia, ou se
fingia que não entendi a provocação. Mas ela entendeu meu silêncio antes mesmo
de eu abrir a boca.
— Relaxa, Clara. Eu olho as câmeras. Vai que ela resolve procurar outra
sugestão de café e se perde nos corredores — disse com um sorrisinho enviesado
nos lábios, já virando de novo para seguir caminho.
Fiquei parada por um segundo, absorvendo a indireta mais direta que já
tinha recebido dela. Suspirei e a segui em silêncio.
Talvez o mercado tivesse câmeras em todos os cantos, mas era impossível
não notar quando alguém estava vigiando a gente bem de perto. E no caso da
Verônica... a lente era mais pessoal do que profissional.
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