Por Verônica...
"Nem sei exatamente o que me deu naquele momento. Estava olhando as câmeras, e vi a Clara... ali, demorando mais do que devia. E pelo jeito, gostando da conversa com aquela mulher. Algo meio impulsivo tomou conta de mim, como se eu precisasse acabar com aquilo.
Não havia urgência. Nenhum problema real. Os cafés que ela organizava estavam em ordem, os preços, checados. Mas mesmo assim... senti uma vontade súbita de tirá-la dali. Um impulso que eu mesma não consegui entender.
Talvez tenha sido só zelo, talvez tenha sido só minha maneira de querer manter o controle de tudo. Mas, no fundo, não foi isso. E eu sei.
Não havia necessidade de ela buscar os preços comigo naquele momento — eu poderia muito bem ter delegado. Mas ainda assim, chamei. Quis que ela viesse até mim.
Talvez só quisesse afastá-la daquela mulher. Talvez eu só quisesse tê-la por perto.
É difícil admitir, mas aquele impulso foi meu. E eu ainda estou tentando entender por quê.
Ao ver que a minha resposta a calou, me bateu aquele leve arrependimento. Mas também, conhecendo a Clara como venho conhecendo, imaginei que ela reagiria com alguma brincadeira, talvez um comentário atravessado com aquele humor debochado dela. E, se eu for honesta comigo mesma… era isso que eu queria. Uma provocação, uma gracinha qualquer. Desde que fosse só pra mim.
Seguimos até o escritório em silêncio. Ela caminhava atrás de mim, e eu tentava manter a postura, o rosto sério — sério demais, talvez. Mas por dentro, eu estava num embaraço infantil. Me sentia ridícula e orgulhosa ao mesmo tempo. Que contradição insuportável essa menina me faz sentir.
Sentei à mesa, evitando encará-la de imediato. Quando finalmente levantei os olhos, lá estava ela: encostada na parede, braços cruzados, o corpo relaxado, mas os olhos… ah, os olhos dela estavam me analisando. Com aquele brilho divertido, quase maldoso, que me tira do sério e, de alguma forma inexplicável, me alegra também.
Ela não disse nada. E o silêncio dela me dizia mais do que qualquer resposta. Não era um silêncio bravo, magoado… Era um silêncio curioso, do tipo “tô tentando entender o que foi isso agora”.
E eu queria explicar. Queria dizer “desculpa, foi só um impulso idiota”, ou então admitir que me incomodou ver ela tão entretida com outra mulher. Mas nada saía. Em vez disso, fiquei ali, com cara de poucos amigos e coração desorganizado.
Foi então que ela deu um passo à frente, arqueando uma sobrancelha com aquele ar sapeca:
— Só pra entender… foi o café mesmo que te incomodou, ou foi o papo bom demais?
Quase revirei os olhos. Mas segurei. Dei um suspiro exagerado, e respondi da forma mais seca que consegui — pra me proteger, claro:
— Não vejo problema em você fazer seu trabalho. Desde que lembre onde ele começa... e termina.
Ela riu. Baixo, de canto. Um riso provocador e suave, do tipo que me desmonta.
— Entendi. Limite geográfico e afetivo, anotado.
Virei a cadeira levemente, para esconder o sorriso que escapava no canto da boca. Essa garota me tira do eixo.
E mesmo com vontade de colocar ela pra fora da sala, também me peguei desejando que ficasse mais um pouquinho.
Ao vê-la sair do escritório, meus olhos automaticamente buscaram pelas câmeras, como quem tenta continuar perto mesmo de longe. Eu me odiava um pouco por isso. Cada canto que ela passava, cada gesto simples como arrumar o uniforme ou prender o cabelo, me prendia a atenção de uma forma que… sinceramente, começava a me assustar.
Talvez eu esteja mesmo levando pra um lado pessoal demais. Nossas conversas na hora do almoço, os sorrisos sutis. Eu sei que não tem nada ali, ou pelo menos, não deveria ter. Ela é apenas uma funcionária. E eu sou a chefe. Deveria bastar essa linha pra colocar freio no que ando sentindo.
Talvez eu precise mesmo começar a me afastar. Diminuir os encontros. Esfriar qualquer sinal de aproximação. Mas o problema é: como faço isso, se justamente esses pequenos momentos com ela são os que me aquecem no meio dessa rotina fria e solitária?
Com os outros funcionários, meu contato é direto, objetivo, quase sempre técnico. E sim — muitos têm medo de mim. A forma como me olham, como evitam conversas além do necessário, como se estivessem sempre esperando uma bronca. No começo me incomodava. Agora, confesso que prefiro assim. É mais fácil manter o controle quando ninguém se aproxima demais.
Mas a Clara... ela atravessou essa barreira sem nem perceber que ela existia. E eu permiti. Talvez até desejei.
Agora, sozinha na sala, me vejo encarando meu reflexo na tela preta do monitor desligado. O rosto sério, os olhos cansados, e o pensamento... totalmente voltado para ela.
Suspirei fundo, passando a mão no cabelo e me forçando a voltar ao trabalho. O problema de lidar com o inesperado, é que às vezes ele tem um sorriso bonito e um jeito de rir que te desmonta inteira.
Não sei ao certo por que agora estou deixando esses pensamentos fluírem… Talvez seja o silêncio do escritório, ou o fato de me permitir pequenas distrações quando penso nela. Respiro fundo, endireito a postura na cadeira, jogo os cabelos para trás como um ato quase automático de retomada de controle, e me concentro no que deveria estar fazendo: revisar os pedidos do mês.
Foco em manter as compras dentro do necessário, nada além do básico. O mês ainda está no começo, e depois das últimas movimentações e desligamentos, prefiro conter gastos. Hoje estamos com a equipe reduzida — um repositor de folga, o caixa também. Restamos apenas eu, Augusto, e… Clara.
É quando vejo um rapaz entrando no mercado. Casaco maior do que o necessário para um clima como o de hoje. Largo a caneta com suavidade sobre a mesa. Meus olhos se estreitam, não por paranoia, mas por precaução. O instinto que me acompanha desde que assumi essa função nunca falha. Mas meu reflexo imediato é outro: Clara.
Procuro por ela nas câmeras. Lá está, concentrada como sempre, arrumando a seção de grãos. Mas logo percebo algo em seu olhar — ela também reparou. Clara não é boba. Ela se ergue com calma, como quem apenas está cumprindo seu trabalho, mas seu corpo diz outra coisa: alerta.
Finge estar analisando um produto, mas seus olhos estão nele. Assim como os meus.
Desvio os olhos da tela e pressiono os lábios. Augusto está no fundo, repondo os freezers. Ele não percebeu nada. Claro que não. Não presta atenção em nada além de si mesmo.
Eu continuo observando, mas sem intervir ainda. Quero ver até onde isso vai. E, talvez, de forma ainda mais forte do que a preocupação com o rapaz, vem o incômodo latente de ver Clara se expor, ainda que com elegância, a algo que eu preferia evitar pra ela.
Sou invadida por aquele sentimento estranho novamente — o de querer protegê-la. Mesmo que isso me atrapalhe. Mesmo que eu não entenda ainda o porquê.
Próxima página - O acaso a meu favor
Nenhum comentário:
Postar um comentário