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quarta-feira, 25 de junho de 2025

O acaso a meu favor - Página 19

 O acaso a meu favor - Página 19

 

Por Clara...

 

Depois daquela cena em que peguei o Augusto esbravejando sobre a Verônica, fiquei com as antenas mais ligadas. Eu e ele nunca fomos exatamente próximos — respeitava por conveniência, pra ser sincera, ou talvez por medo mesmo. No dia seguinte, já entrou em vigor aquela nova regra do banco de horas. A Ju tinha feito umas horas extras no mercado e acabou ganhando três dias de folga. Sobrou pra mim cobrir, claro. Mas tudo bem, gosto de trabalhar sozinha. Antes eu cobria o turno completo.

 

 Agora, com a Verônica, tudo mudou: quem estiver cobrindo alguém de folga encerra o expediente três horas mais cedo. Fazendo assim o mercado fechar o mesmo horário que encerramos nossos expedientes. Confesso que não achei ruim, não. Nem a Ju.

 

A verdade é que, depois que ela chegou, o clima mudou. Não pra pior, nem pra melhor — só... diferente. Antes era tudo meio largado, cada um fazia do seu jeito e ninguém dizia muita coisa. Agora, ela aparece com uma pasta preta, uma caneta na mão e aquele olhar que atravessa a gente sem levantar a voz. Assusta? Um pouco. Mas funciona.

 

A gente começou a perceber que ela ouve mais do que fala, e quando fala, já vem com alguma coisa decidida. Sem rodeio. E não é que ela impõe as coisas no grito, tipo o Augusto. É no jeito. Dá uma sensação estranha, como se tudo tivesse que andar mais reto, mais limpo. 

 

Até o jeito da Ju mudou. No primeiro dia que voltou da folga, ficou mais quieta. E olha que fazer a Ju ficar quieta é feito raro. Só me disse um “a mulher é braba, mas justa”. Eu ri, claro. A Ju tem essas tiradas.

 

Já estava na hora de tirar meu intervalo. Duas horas inteiras, como a Verônica tinha determinado. Nem discuti. Augusto, com a cara amarrada de sempre, me lançou um “Vaza!” seco, daquele jeito que ele acha que impõe respeito. Só levantei as sobrancelhas e saí. Não pensei nem duas vezes.

 

Lá no fundo, me deu até vontade de responder algo do tipo “ordem da chefe, né?”, só pra cutucar. Mas deixei quieto. Tenho aprendido a escolher melhor onde gasto minha energia. E com o Augusto, a economia é certa.

 

 

Mal tinha virado o corredor em direção à salinha de descanso quando ouvi os passos ecoando atrás de mim. Precisos, firmes, daquele tipo que não corre, mas sempre chega. Nem precisei olhar: era a Verônica.

 

Tentei manter o ritmo normal, como se não tivesse notado. Mas, antes que alcançasse a porta, escutei:

 

— Clara.

 

Parei. Virei devagar, controlando a expressão. Ela estava a poucos passos, com as mãos juntas à frente, segurando a pasta preta que parecia extensão do corpo.

 

— Já almoçou? — perguntou. O tom era neutro, mas havia algo hesitante ali. Quase imperceptível.

 

— Ainda não. Acabei não trazendo comida hoje.

Disse de maneira envergonhada.

 

Ela fez um leve gesto com a cabeça, depois falou, sem mudar muito o rosto:

 

— Preparei algo em casa. Nada demais... Só que acabei fazendo demais, o suficiente para duas pessoas. Se quiser, pode comer comigo.

 

Demorei um segundo pra entender. a Verônica está me convidando para almoçar com ela?

 

— Está bem. — respondi, simples. Não era o tipo de convite que se recusa, mas também não era o tipo que se recebe todo dia. — Só vou deixar minhas coisas na salinha e já apareço lá.

 

— "Está bem." - Ela usou o mesmo tom que usei quando aceitei o convite, e saiu rindo.

 

Ela virou-se e foi andando no mesmo passo controlado de antes, como se não tivesse dito nada fora do comum. Mas disse.

 

Fiquei parada, olhando o corredor vazio. Respirei fundo, meio rindo por dentro. Que mulher difícil de decifrar. Mas confesso: fiquei curiosa.

 

Quando cheguei na sala do escritorio, ela já estava sentada na cadeira na pequena mesa do lugar, com os potes abertos e talheres no local. Nada chique: arroz branco, frango grelhado, legumes no vapor. Mas tudo arrumado com um cuidado que me chamou atenção. Ela parecia o tipo que não fazia nada pela metade — nem o almoço.

 

— Espero que goste de comida simples — disse, sem levantar o olhar. Estava mexendo num talher, como se aquilo fosse mais importante do que minha resposta.

 

— Já gostei de não precisar ficar sem almoçar — brinquei, puxando a cadeira ao lado.

 

Ela sorriu, quase imperceptível. Quase.

 

Sentamos em silêncio por alguns segundos. O som dos potes se abrindo, das colheres raspando o fundo, preenchia o ar. Era um silêncio confortável... ou pelo menos não incômodo.

 

O cheiro da comida ainda quente escapava das marmitas improvisadas sobre a mesa do escritório. Era um daqueles almoços silenciosos, meio apressados, meio resignados, que faziam parte da rotina do mercado. Eu me sentei diante de Verônica, sentindo a presença dela pesar no ar — não como algo opressor, mas como se cada gesto da mulher fosse sempre milimetricamente calculado, até no modo como mexia o garfo ou observava o ambiente ao redor.

 

Foi Verônica quem falou primeiro, sem levantar os olhos do prato.

 

— Você já pensou em como seria ter uma cozinha aqui dentro?

 

 Erguir os olhos, surpresa.

— Cozinha? Aqui no mercado?

 

Verônica assentiu, como se fosse algo óbvio.

— Sim. Nada muito elaborado. Só o suficiente pra garantir uma comida decente no meio do dia. Pra vocês. Pra mim também, se quiser saber. Essas marmitas são uma tortura.

 

Acabei soltando uma risada curta, mais de nervoso do que de graça. Demorou alguns segundos antes de responder.

 

— Eu... sinceramente achei que isso não fosse acontecer.

 

Verônica ergueu o olhar, curiosa, mas sem cobrança.

— O quê?

 

— As mudanças. Tudo isso. Quando você chegou... toda séria, falando difícil, reorganizando tudo como quem redesenha um campo de batalha... eu pensei: "ela vai passar o rolo por cima da gente e fingir que melhorou".  -  Acabei desabafando.

 

Verônica não pareceu ofendida. Apenas recostou levemente na cadeira e escutou.

 

— A gente já ouviu tanta promessa, sabe? — continuei, sentindo as palavras escaparem com uma franqueza que nem eu mesma esperava. — “Agora vai ser diferente”, “Estamos pensando nos funcionários”... Só discurso. No fim, continua tudo igual. Lanche frio, micro-ondas enguiçado e a gente comendo em pé entre uma entrega e outra.

 

Verônica cruzou os braços, os olhos fixos em mim, sérios mas não duros.

— Eu não vim aqui pra fingir, Clara. Não atravessei fronteira, nem deixei a minha vida antiga pra fazer teatrinho de liderança. Se eu disser que vai ter cozinha, vai ter. E não é só por bondade. Gente alimentada trabalha melhor. Mas também... gente respeitada trabalha com mais verdade.

 

Senti um calor estranho no peito. Algo entre a surpresa e a sensação de que, pela primeira vez em muito tempo, alguém estava mesmo olhando para nós.

 

— Você é diferente — digo, quase num sussurro. — No começo eu achei que isso fosse ruim. Hoje... já não sei.

 

Verônica sorriu. Pouco, mas o suficiente pra quebrar o gelo.

— Talvez eu seja mesmo. E talvez você também.

 

 Franzo a testa, sem entender.

— Eu?

 

— Mesmo achando que nada ia mudar, você ficou. Tem gente que só continua quando ainda guarda uma pontinha de esperança. Mesmo que não admita.

 

A resposta ficou presa na minha garganta. Ao invés disso, voltei os olhos para o prato e continuei a comer, sentindo que algo — bem pequeno, mas firme — se movia dentro de mim. Talvez fosse só fome. Talvez fosse o começo de alguma coisa nova.

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