O acaso a meu favor - Página 20
Por Verônica...
Os convites para almoçar, partindo de mim, tornaram-se frequentes. Não
por hábito social — disso eu sempre mantive distância —, mas porque,
curiosamente, havia algo de confortável naquele intervalo ao lado de Clara. Entre
um comentário espirituoso e outro, ela conseguia, nos dias em que não estava
tão elétrica, arrancar de mim pequenas risadas, ou pelo menos um certo alívio.
Por instantes, me distraía do desgaste constante que é tentar reerguer um
mercado que todos já davam por morto. Era como se, naquele espaço de tempo
medido, o peso das responsabilidades deslizasse para fora dos ombros, ainda que
por pouco.
Hoje, Clara está de folga. E, embora eu raramente me permita admitir
esse tipo de coisa, o mercado parece mais silencioso — não no sentido físico,
mas como se faltasse uma frequência habitual no ar. Uma ausência quase
irritante.
Cheguei cedo, mas já com a paciência por um fio. Há dias em que minha
tolerância se esgota antes mesmo do café esfriar. Chamei os três colaboradores
que, desde o início, demonstram maior resistência à nova gestão. Não houve
discursos. Quando se sentaram diante de mim, fui clara, objetiva — como deve
ser: informei o desligamento imediato. Sem rodeios, sem explicações longas.
Quem não acompanha o ritmo, atrasa a marcha. E eu não vim até aqui para tolerar
freios.
Hoje, além dos dois repositores, uma operadora de caixa também foi
dispensada. Não por impulso — nunca é. Mas por acúmulo.
Desde o início, ela demonstrava pouco apreço pelo ofício. Os deslizes se
repetiam: desatenção constante, o celular como extensão das mãos, até mesmo
durante o atendimento. Quando o movimento do mercado caía — e, inevitavelmente,
isso acontece — eu a observava permanecer imóvel, como se uma vassoura não
fosse parte do seu posto, como se manter o espaço limpo fosse uma gentileza
opcional.
Sua aparência, quase sempre desleixada, transmitia mais desleixo do que
cansaço. E havia algo de provocativo no hábito de lixar as unhas atrás do
caixa, como se estivesse no sofá de casa, e não em horário comercial sob minha
supervisão.
Dei uma advertência verbal. Chamei para uma segunda conversa, tentando,
ainda, buscar algum traço de compromisso. Na terceira ocorrência, não tolerei
mais. Quem não soma, não multiplica — e este mercado não é abrigo para hábitos
que atrasam o todo.
Além disso, sei que muitos — moças e rapazes — dariam tudo por uma vaga
estável nesta cidade. Lamentavelmente, alguns confundem estabilidade com
impunidade. E esse tipo de erro custa caro.
Ainda assim... apesar das decisões corretas, há algo estranho neste dia.
Um incômodo sutil.
Talvez seja só o eco da ausência de Clara — ou o silêncio que ela
costumava, inadvertidamente, preencher.
Voltando a atenção aos ex funcionários a minha frente, vejo a expressão
de surpresa e indignação tomar conta do rosto de um deles, que agora vem me
confrontar por causa da minha decisão.
— Servi esse mercado por anos… — ele esbraveja. — Na época do seu pai,
ajudei quando isso aqui não passava de um mercadinho de esquina barato. E é
assim que você me agradece?
Meu olhar, já frio, se tornou ainda mais gélido. Tenho gratidão pelo
tempo em que serviu ao meu pai com profissionalismo, sim. Mas não perdoo o modo
como, mais tarde, aproveitou-se da gestão frouxa do meu irmão para disfarçar
caprichos e deslizes como se fossem meros contratempos.
— Não acredito que está fazendo isso comigo, Verônica.
Inclinei levemente a cabeça, analisando cada palavra com a calma de quem
não se deixa arrastar por sentimentalismos. Ele engoliu seco, mas
continuou.
— Seu pai ele me considerava parte desse mercado. —
Continua — Fiz o que foi preciso, sacrifiquei fins de semana,
abri mão de férias.
E de maneira cortante disse calculadamente.
— E em troca você se sentiu autorizado a contornar regras, manipular
inventários e justificar gastos que não eram da empresa — rebati, cortante. —
Isso não é lealdade. É conveniência.
Houve um momento em que ele pareceu diminuir de tamanho diante de mim. A
arrogância se dissipava como o resto de dignidade no fundo de um copo quebrado.
Meu silêncio final pesava mais do que qualquer grito.
— Cheguei aqui com o intuito de corrigir cada erro cometido pela minha
família — disse, sem levantar a voz, olhando ainda pela janela.
Houve um instante de silêncio. Eu sabia que ele me ouvia, mesmo sem
resposta.
— Mas você, junto de alguns colegas, se opôs a cada mudança que visava
restaurar a integridade dessa empresa. Preferiram manter os erros como meio —
continuou —, de disfarçadamente porem a culpa na desculpa de estarem apenas
"fazendo o que sempre funcionou".
Virei-me lentamente, encontrando seu olhar.
— A verdade é que vocês estavam confortáveis demais com a desordem.
Ele não respondeu. Apenas baixou os olhos, como se, pela primeira vez,
sentisse o peso da própria consciência. Mas arrependimento tardio não pesava na
minha balança.
— Não vim aqui para agradar. Vim para corrigir.
Não dei margem para que a situação se prolongasse. Os dispensei com a
mesma frieza com que uma lâmina corta um laço já desgastado — informei que
havia trabalho a ser feito. E havia mesmo.
Retornei à minha mesa, organizei os papéis, respirei fundo. Era hora de
fazer os anúncios das vagas que agora estavam abertas. Este mercado precisava
de sangue novo — uma geração disposta a transformar o "novo" em
oportunidade, em crescimento real. Pessoas que não vissem o cargo como um
favor, mas como um campo fértil para despertar talentos adormecidos, para se
aprimorarem através do desafio, e não da zona de conforto.
O passado, por mais que doa ou incomode, já tinha sido arquivado. Agora,
eu construía o futuro — com alicerces firmes e gente capaz de sustentá-lo.
Pretendo oferecer bons benefícios àqueles que permanecerem e abraçarem
as novas diretrizes, assim como aos novos integrantes que farão parte desta equipe
a partir de agora. Quero deixar para trás o passado de uma empresa limitada,
estagnada, e transformá-la em uma organização inovadora — onde o talento se
destaca, independentemente do cargo.
Mesmo sendo apenas um mercado, meu objetivo é claro: expandir a rede o mais rápido possível. E para isso, precisarei de pessoas comprometidas, de futuros gerentes, de líderes em potencial. Quem estiver disposto a crescer junto, terá espaço e reconhecimento.
Próxima página - O acaso a meu favor
Nenhum comentário:
Postar um comentário