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quinta-feira, 26 de junho de 2025

O acaso a meu favor - Página 23

 Por Verônica...

Continuação da cena...

Quando menos espero, vejo o rapaz caminhar em direção à seção de bebidas. Seus gestos são sutis, treinados talvez — ou apenas frutos da audácia de quem acredita que ninguém está prestando atenção. Clara continua o seguindo discretamente, observando-o com cuidado. Admiro a postura dela, o modo como não entra em pânico, não se precipita. Inteligente… muito mais do que aparenta.

Ela leva a mão ao bolso e retira o celular. Pela câmera vejo os lábios dela se moverem rapidamente. Em segundos, outro monitor acende: Augusto atende a ligação com aquela cara de desdém automático que sempre faz quando não está no controle da situação. Claro, ela ligou para ele. Um pequeno sorriso se forma no canto da minha boca. Clara confia nela mesma, mas também sabe quando pedir reforço.

O rapaz, talvez percebendo que está sendo observado, hesita. Seus olhos vagam, rápidos demais, como quem procura uma rota de fuga. Ainda assim, tenta manter a postura — finge estar apenas decidindo qual bebida levar. Mas, sem notar onde exatamente estava, comete um erro primário: pega outro produto qualquer, provavelmente algo menor, e tenta enfiá-lo por baixo da camiseta. A movimentação é tão desajeitada que chego a franzir a testa.

E o destino — ou talvez apenas a ironia do acaso — decide que, justo naquele instante, ele comete o furto a menos de dois metros de onde Augusto está, repondo caixas no freezer de congelados.

Vejo Augusto se erguer devagar, parecendo processar a cena diante de si. Pela expressão em seu rosto, ele ainda não decidiu se está irritado ou feliz por ter flagrado algo que lhe dará autoridade momentânea.

Quase posso ouvir o barulho da tampa do freezer batendo, mesmo da minha sala. Pego meu rádio. Meu corpo já se move antes que a mente processe. Saio de frente as câmeras, pego meu celular e caminho para fora da sala com passos firmes. Não que eles precisem de mim para conter a situação. Mas algo dentro de mim não permitiria que Clara passasse por qualquer tipo de risco. Nem hoje. Nem nunca.

E talvez eu finalmente esteja pronta para admitir isso.


Ei, rapaz! – ouço a voz de Augusto ecoar alto pelo mercado, áspera, sem o menor traço de tato.
O alerta dispara dentro de mim como um estopim. Meu corpo já havia passado da porta do escritório, e agora minhas pernas correm antes mesmo de qualquer ordem racional.

O garoto se assusta. Seus olhos arregalam, e ele, num reflexo desordenado, tenta fugir por um dos corredores ao lado da padaria.
Vejo tudo em fragmentos: Augusto largando a caixa que segurava, correndo em disparada; o rapaz tropeçando nos próprios passos, tentando despistar; Clara, a poucos metros, se movendo rápido, talvez com a intenção de impedir a saída, talvez apenas pelo impulso de proteger.

E então tudo acontece de uma vez.

Augusto o alcança primeiro, bloqueia o caminho, e sem aviso, o garoto desfere um soco seco, direto no rosto de Augusto.
Ouço o som abafado do impacto mesmo à distância. Meu corpo congela por um segundo.

Clara... – sussurro quase sem ar.

Meu coração martela, descompassado. Meus olhos buscam ela em meio à correria do único funcionário presente ainda golpeado e dos poucos clientes que ainda estavam por ali com medo da situação. Ela aparece no canto do corredor, arregalando os olhos diante da cena. Dá um passo à frente, hesitante, como se não soubesse se avança ou se recua. Meu maior medo naquele instante era vê-la em perigo.

Augusto, ainda tonto pelo golpe, cambaleia um pouco, mas reage com fúria.

Não consigo ver a hora exata nas imagens do aplicativo que tenho pelo celular, os minutos parecem borrar entre si diante da tensão, mas algo salta aos meus olhos. Clara… ela estava em um dos corredores, com aquela mini escada que sempre usamos para alcançar produtos no alto. O rosto sério, mas o corpo em alerta, como se antecipasse o pior.

O garoto – ainda tentando fugir – corre em disparada na direção do corredor onde ela está. Talvez achando que era uma rota de escape. Mas ele não contava com Clara.

E então, sem pensar duas vezes, ela ergue a escada e a projeta com força contra ele, atingindo-o em cheio no rosto.
O som do impacto é alto. O corpo do rapaz cede no mesmo instante, caindo de costas no chão, desorientado.

Minha boca se entreabre num gesto de surpresa e incredulidade. Meus olhos permanecem fixos nela pela tela. Clara…


O que foi isso?
Um gesto de coragem?
De proteção?
Ou só instinto puro?

Corro até o local e quando viro no corredor, ela já está ajoelhada, ofegante, ao lado do rapaz desacordado por alguns segundos. As mãos ainda trêmulas segurando a lateral da escada.

Você tá bem? – pergunto, mais preocupada com ela do que com qualquer protocolo.

Ela apenas assente, respirando rápido, tentando se recompor. Seus olhos me encontram e por um segundo, há algo ali que me desmonta.
Não era medo. Era mais... fúria contida, adrenalina, e uma espécie de... orgulho?

– Eu vi ele correr... não pensei muito. – ela diz baixo, quase num sussurro, como se estivesse se desculpando por algo que, na verdade, me fez querer abraçá-la.

Mas eu não posso. Eu não devo.

Augusto se aproxima do lado, com a cara ainda marcada pela dor e pelo ego ferido.
Mas nesse instante, ele não tem o controle. Clara teve.

Nessa hora percebo o rapaz tentar se levantar, meio desorientado da pancada.

Augusto, ainda tonto pelo golpe, cambaleia um pouco, mas reage agarrando o garoto pelo braço e o imobiliza com força desnecessária. Um dos clientes ali presente já corre para ajudar, e eu também acelero os passos, tomando as rédeas da situação.

Já chega! – digo firme, minha voz saindo mais fria do que imaginei. – Augusto, solta ele, agora!

Ele me encara, respirando pesado, a mandíbula marcada pelo vermelho da pancada. Sua expressão é de quem quer retrucar, mas se contém. Solta o rapaz com brusquidão.

Leva para os fundos! –  digo a Augusto, já tirando o celular do bolso para ligar para a polícia.

Olho para Clara. Ela está com as mãos trêmulas, respirando ainda rápido, os olhos fixos em mim como se buscasse algum tipo de certeza.

E naquele instante, passos apressados e respirações ofegantes, percebo...
Não é o medo de uma ocorrência no mercado que me domina. É o medo de algo acontecer com os funcionários e eu não tiver como contornar, medo de acontecer algo com ela.

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