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sexta-feira, 27 de junho de 2025

O acaso a meu favor - Página 24

                               

 Capítulo 3

Por Clara...

Não tinha forças nem para pensar. Tudo em mim parecia esgotado: corpo, mente e até o coração.
Principalmente o coração.

Joguei a roupa em qualquer canto da sala, sem me importar com a persiana mal fechada ou com o breu da noite lá fora. Hoje, eu não queria ser mulher. Não queria ser corajosa, nem sensata.
Só queria existir.

O silêncio do apartamento me abraçou de um jeito estranho. Quase como se dissesse “acabou por hoje, você sobreviveu”. E sobrevivi mesmo.

Não vi o Bento de cara, o que é raro. Ele geralmente me espera na porta, com a cara de poucos amigos e o rabo inquieto, me julgando pelo atraso.
Mas hoje, ele estava estirado no chão do banheiro, como se também tivesse vivido o peso do meu dia. Quando me viu, abriu os olhos com lentidão, alongou as patas dianteiras e se espreguiçou em frente à porta, como um velho companheiro preguiçoso que entende cada silêncio meu.

– É, Bento… a vida tá uma loucura. – falei baixinho, entrando no banheiro.

Ele apenas se arrastou até meu pé e se encostou, como se soubesse que aquilo era tudo o que eu precisava: um toque de ternura sem perguntas.

A água quente caiu sobre minha pele no banho e por um instante senti vontade de chorar. Mas nem isso consegui.
O cansaço era tão grande que nem lágrima quis sair.

Depois, vesti a primeira camiseta limpa que encontrei e fui direto para a cama. Bento pulou no colchão e se acomodou no mesmo lugar de sempre, atrás dos meus joelhos. Como um quebra-cabeça de hábitos que nunca muda.

E ali, entre travesseiros e silêncio, me dei conta de uma coisa:
Eu não sabia exatamente o que Verônica despertava em mim,
mas sabia que aquilo me deixava viva.
E, sinceramente,
isso já era muita coisa.

Tento fechar os olhos.

Mas o travesseiro, que deveria ser meu refúgio, se torna cúmplice do turbilhão que insiste em revirar meu peito. A cena de hoje não sai da minha cabeça.
O susto, a escada, o caos, a adrenalina.
Mas... o que realmente me incomoda não foi o perigo.
Foi a sensação esquisita que senti quando vi aquela mulher bonita se aproximar.

Era só uma cliente. Uma entre tantas. E mesmo assim...
Verônica apareceu do nada.
Com aquele jeito firme, meio seco, como quem não perde o controle.
Mas eu conheço aquele olhar. Já consigo reconhecer quando ela tenta disfarçar algo.

E o que foi aquilo? Ciúmes?
Não.
Nunca! - É o que penso.

Viro de lado, puxo o lençol até o queixo.
Bento solta um suspiro pesado atrás de mim, como se dissesse: “Você tá pensando demais de novo”.

Sim, o pior que estou.

E talvez não devesse.
Mas por algum motivo, lembrar do jeito como ela me olhou — logo depois, no corredor, com aquele sorrisinho de canto contido — me provoca um calorzinho no estômago.
Daqueles que vem antes de algo acontecer, sabe?
Um calor bom. Familiar, quase perigoso.

Mas eu sou só...
uma funcionária.
Uma entre tantos.
E ela, bom... ela é Verônica.

– Aff, Clara... – resmungo em voz baixa e balanço a cabeça, como se isso fosse o suficiente pra expulsar o pensamento.
Quase como um exorcismo silencioso da minha própria confusão.

Viro mais uma vez, dessa vez de costas para a parede, como se assim eu me escondesse dos meus próprios sentimentos.

Talvez tudo passe.
Talvez seja só cansaço.
Ou talvez... seja o começo de algo que eu ainda não sei nomear.

Mas por enquanto, só quero dormir.

De tanto murmurar, pensar e sentir meus pensamentos rodopiarem como folhas num vendaval, o sono finalmente me venceu.

Apaguei.

Achei que tinha dormido só uns minutos...
Mas, ao abrir os olhos, o céu pela fresta da janela já estava em tons de azul desbotado, e o som tímido da cidade começava a aumentar na medida que despertava.

Cinco horas.

Cinco horas mergulhada num sono pesado, desses que deixam a cabeça um pouco zonza ao acordar, como se os sonhos tivessem sido confusos demais pra lembrar — ou importantes demais pra esquecer.

Me sento na cama devagar, sentindo o lençol ainda quente sob mim.

Abro primeiro as mensagens da Camila.

Camila.
A mulher que, por muito tempo, foi minha resposta para tudo.
E depois, se tornou o maior ponto de interrogação da minha vida.

"Clara, vi o noticiário sobre o mercado que você trabalha."
"Você está bem?"

Minhas mãos gelam. O coração acelera.
E não é de emoção — é de susto, de angústia, de uma raiva quieta que ainda mora em mim mesmo quando tento negá-la.

Essa falsa preocupação me prende de maneira tão doentia…
Porque eu sei, eu sei, que se fosse há algumas semanas, eu estaria pulando de felicidade só por ela lembrar que eu existo.
Mas agora? Agora eu só sinto esse nó no estômago.

Ela que me ignorava como se eu fosse um erro que ela queria apagar.
Que lia minhas mensagens e me deixava no vácuo como se o silêncio falasse mais alto do que qualquer "oi".
E agora aparece assim? Com esse tom doce, disfarçado de empatia?

Por quê? Por culpa? Por tédio?

Não respondo. Não posso responder.
Pelo menos não agora.

Bloqueio a tela por instinto e respiro fundo. Meu peito ainda está pressionado — como se a presença dela, mesmo só digital, ocupasse espaço demais.

E foi nesse mesmo suspiro que me lembrei da outra notificação.
Daquela que, por mais confusa que seja, me faz sentir algo diferente. Algo... vivo.

Verônica.
Minha chefe. Minha bagunça mental.
Minha calma e meu caos.

Respiro fundo antes de abrir a mensagem dela.
Algo me diz que essa vai me fazer sentir ainda mais.

Termino de ler as mensagens com o celular firme entre as mãos, como se ele fosse escorregar se eu me permitisse sentir tudo de uma vez.

"- Clara, boa noite!"
"- Gostaria de saber se está bem?"
"- Se chegou bem em casa?"
"- Quero que saiba que, o que precisar, estarei aqui. Prestarei ajuda a você caso precise depois de hoje."
"- E por favor, nunca mais se ponha em perigo daquela maneira. Eu não sei o que seria de mim se algo tivesse lhe acontecido."

Leio e releio.
Paro na última frase e... meu coração erra. Literalmente.
Como se tropeçasse dentro de mim.

Pisco algumas vezes e solto o ar pela boca, como se fosse possível esvaziar junto o nó que se formava na garganta.

“Eu não sei o que seria de mim…”


De onde vem essa frase?
E por que, em meio a tanta coisa hoje, é justamente ela que ecoa nos meus pensamentos como uma melodia baixa e constante?

Ela é minha chefe. Uma mulher centrada, direta, exigente.
Mas, por trás daquelas mensagens formais — ou tentativamente formais — existe algo ali.
Existe um cuidado que me embriaga discretamente.

Não lembro a última vez que alguém perguntou se eu cheguei bem em casa.
Muito menos com esse tipo de delicadeza cravada nas entrelinhas.

Começo a digitar uma resposta.
Apago.
Escrevo outra. Apago de novo.

No fim, deixo o coração falar mais que a cabeça:

“Oi, Verônica. Tô bem sim. Cheguei bem, e agradeço por se preocupar.”                      "Fico aliviada que nada tenha te acontecido de ruim..."
“Hoje foi um daqueles dias que a gente não esquece, né? 
“Prometo não virar heroína de mercado de novo.”
“Boa noite.”

Envio.
Suspiro.

E então olho pro teto escuro do quarto e deixo um pensamento escapar baixinho:

— Só uma preocupação de chefe, né? Só isso…

Mas no fundo, bem no fundo... talvez eu não queira que seja só isso.

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