Por Clara...
Hoje o movimento foi mais corrido que o habitual. Por ser uma segunda-feira, estranhamos logo de início. Mas tudo fez sentido quando notamos os ônibus de excursão trazendo turistas para a cidade — aquele tipo de visita inesperada que faz o mercado parecer uma convenção. No meio da correria, sem nem perceber, o relógio já marcava 14h47 quando vi Juliana se aproximar. Ela vinha com os cabelos presos num coque alto, como sempre faz depois do almoço, e a inseparável garrafinha d’água.
— Clara, me tira uma dúvida aqui... — chamou minha atenção de forma casual, como quem puxa assunto qualquer, mas o olhar dizia outra coisa. — O que você tanto faz no escritório com a Verônica?
Na mesma hora, senti meu corpo gelar por dentro. Era como se alguém tivesse me jogado um balde de água fria por trás. Tentei manter o rosto tranquilo, como se nada demais tivesse sido dito, mas Juliana me conhece bem demais pra não notar quando estou desconcertada.
— Até almoços vocês têm juntas... e dentro do escritório ainda por cima — continuou, agora num tom mais carregado, com um sorrisinho irônico que nunca vi nela. — Você não acha que está tendo muitas regalias, não?
Aquela última palavra — regalias — bateu fundo. Regalias? A Ju? Juliana, minha amiga de tantos dias puxados, quem já dividi bolacha na sala de descanso, achando que podia confiar. De onde ela tirou isso? Quando foi que estar por alguns minutos no escritório virou privilégio? E os almoços... nem sempre eram planejados, às vezes só coincidiam. Às vezes nem almoçávamos de fato, só conversávamos sobre alguma coisa ou outra.
Pela primeira vez, me senti deslocada no lugar onde achei que estava finalmente me encaixando. O olhar da Juliana não foi só de desconfiança, foi de julgamento. Um julgamento que doeu.
E o pior de tudo: não consegui responder. Só sorri, fraco, e abaixei os olhos, como quem engole seco algo que não quer mastigar. Levanto os olhos e nesse momento vejo oque ela quer.
Depois que Juliana se afastou, senti um gosto amargo na boca. Tentei continuar o atendimento como se nada tivesse acontecido, mas as palavras dela rodavam em looping na minha cabeça. "Regalias." Aquilo foi pior do que se ela tivesse me acusado de algo diretamente. Foi como uma facada nas entrelinhas. Me senti suja... como se estivesse fazendo algo errado simplesmente por estar no mesmo ambiente que Verônica.
No fundo, o que doía não era a acusação. Era vir dela. A Ju, que ria comigo no caixa. Que me contava dos problemas com o ex, das vontades de sumir de vez em quando. Aquilo me desmontou.
Fiquei remoendo. E quanto mais eu tentava deixar passar, mais parecia que minha garganta se fechava.
Na primeira pausa, não resisti. Saí do caixa, fui direto pro banheiro e me tranquei. Sentei na tampa do vaso, puxei o celular, olhei a tela por alguns segundos sem saber pra quem escrever... Verônica?
Respirei fundo. Talvez eu só precisasse calar por enquanto. Mas ali, dentro daquele cubículo com cheiro de água sanitária, percebi: essa aproximação com Verônica tava mexendo com muita coisa — inclusive com as pessoas ao redor.
—"Nunca me aproximei de ninguém esperando receber algo em troca. Essa ideia nem sequer cabe em mim. Trabalho duro, às vezes até onde meu corpo e mente pedem arrego — e mesmo assim, no dia seguinte, estou ali. Um caco, sim, mas firme, com uma base sustentada por honestidade e um sorriso sincero. Por isso, ouvir que há quem ache que estou tendo privilégios... ou pior, que estou me aproveitando de algo, me quebra por dentro. Me quebra o coração. Porque não importa o quanto eu tente fazer tudo certo, parece que sempre vai existir alguém disposto a diminuir isso, a transformar em malícia o que, pra mim, sempre foi só entrega." — Penso enquanto enterro os dedos em meus cabelos.
Saí do banheiro tentando engolir a dor que descia seco, presa na garganta. Passei em frente ao escritório da Verônica sem nem olhar para a porta. Meu rosto ainda denunciava algo — um dos meninos, dos que sempre me tratam com carinho, percebeu. Se aproximou em silêncio, e me deu um beijo no topo da cabeça. Esse gesto me desarmou um pouco. Somos assim: uma grande família, apesar de tudo.
Sigo em direção ao meu caixa, e então ouço a voz da Juliana, vinda de trás com aquele tom debochado que conheço bem:
— E aí, Clara... — ela começou.
Nem me virei. Continuei andando.
— Foi correr pra contar pra namoradinha sobre os comentários, foi? — ela lançou a frase como quem joga veneno no vento.
Não deixei nem ela terminar.
— Qual é a tua, Juliana? — virei de vez, encarando. Minha voz saiu cortante. Por um segundo, ela pareceu surpresa, mas rapidamente riu, como se fosse exatamente o que esperava.
— Olha só... Clarinha mostrando as garras — disse com sarcasmo, inflando ainda mais a raiva dentro de mim.
Foi aí que percebi o movimento ao redor. Seu Paulo vinha em direção ao caixa, e logo atrás dele, Verônica. Vi os olhos dela passarem de Juliana pra mim como se pesassem o momento.
— Só não quebro a tua cara aqui agora porque, diferente de você, que me chamou de interesseira, eu pago as minhas contas com o que ganho aqui e em outros lugares também. — Falei firme, com o peito arfando de raiva.
Juliana deu um passo à frente, pronta pra reagir. Mas Luiz, que sempre foi meu parceiro de guerra ali dentro, me segurou pela cintura, firme.
— Clara, calma... — sussurrou ele ao meu ouvido.
Seu Paulo entrou no meio sem pensar duas vezes, erguendo as mãos.
— O que tá acontecendo aqui?! — bradou, tentando dissipar a tensão.
Verônica parou ao lado dele. E mesmo sem dizer uma palavra de imediato, só o olhar dela já calou metade do ambiente.
— As duas, pra minha sala. Agora. — A voz dela saiu baixa, mas carregada de autoridade. Não era um pedido, era uma ordem.
Juliana ainda bufou, cruzando os braços, mas foi. Eu, apesar da vontade de recusar, fui também. Não queria parecer que estava fugindo. Luiz me soltou devagar, ainda com a mão no meu ombro em sinal de apoio. Seu Paulo ficou parado, observando, balançando a cabeça em desaprovação.
Entramos. Verônica fechou a porta com mais força do que o habitual, se posicionou atrás da mesa e cruzou os braços, olhando de uma para outra.
— Isso aqui não é escola, muito menos pátio de recreio. Vocês estão aqui pra trabalhar. E se tiverem algum problema pessoal uma com a outra, resolvam fora do horário e fora do meu mercado. — O tom era firme, controlado, mas cada palavra era um soco seco no ar.
Juliana tentou retrucar:
— Eu só...
— Cala a boca, Juliana. — interrompeu Verônica, sem alterar o tom. — Sem saber de fato oque aconteceu, a cortou.
Juliana se calou, pela primeira vez visivelmente desconfortável.
Verônica então se virou pra mim, e o olhar endureceu um pouco mais.
— E você, Clara... Não me interessa o que aconteceu — disse me olhando de maneira decepcionada — levantar a voz e ameaçar uma colega de trabalho também não é aceitável. Você tinha que ter me procurado.
Engoli em seco, sem conseguir falar nada. Verônica suspirou fundo e recuou um passo, apoiando as mãos na mesa.
— Isso vai acabar aqui. Hoje. Não quero mais ouvir burburinho ou barraco nesse chão. Porque da próxima, quem vai sair não é só com advertência, é com as contas na mão. Entendido?
As duas assentimos, em silêncio.
Verônica então se voltou para mim com um olhar menos duro:
— Pode voltar pro seu posto, Clara.
Depois olhou para Juliana:
— E você, passa o resto do dia no estoque. Vai ajudar o Luiz. Agora, fora as duas.
Saí da sala com o coração batendo forte...
E lá dentro, pela primeira vez também... vi Verônica perder a compostura por trás da frieza de chefe. Só por um segundo.
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