Continuação por Clara...
Terminei meu expediente sem nem ao menos me despedir de ninguém. O que foi aquilo? Nunca dei motivos à Juliana para me acusar daquela maneira. Até ontem, acreditava fielmente que ela era minha amiga aqui dentro. Será que fiz alguma coisa? Será que minha aproximação com a Verônica a prejudicou em algo? Mas o que seria exatamente? – penso comigo mesma, enquanto caminho rumo à minha casa, o uniforme ainda grudado na pele e a cabeça latejando.
Será que ela ficou com ciúmes de mim, ou da Verôn... – nem termino de pensar, e acredito que já tenha minha resposta.
O ciúmes. Não sei se dela ou por ela. Mas é isso. Juliana nunca foi de esconder quando se sentia ameaçada, só nunca pensei que eu seria essa ameaça. Nunca me vi nesse lugar, nunca me achei digna de ocupar a atenção de alguém como a Verônica, muito menos de despertar qualquer tipo de disputa.
Mas ali estava eu, envolta num turbilhão de olhares, julgamentos e sentimentos confusos. E o pior, era saber que talvez, no fundo, o que mais me doía não era a acusação... mas a ideia de que, talvez, Juliana estivesse certa em parte. Não sobre interesses ou regalias, mas sobre a presença da Verônica me afetar mais do que deveria.
Talvez porque no fundo, mesmo sem admitir... eu quisesse sim ser vista por ela.
Ao ir dobrando a esquina de casa vejo alguém conhecido. Conhecido até demais.
Meu corpo congela, mas congela de um jeito que até minha respiração falha por alguns segundos.
E não se engane... não é da maneira como a Verônica me deixa quando fala algo inesperado, ou simplesmente me encara demais com aquele olhar que parece atravessar qualquer escudo que eu tento usar.
É diferente.
É um congelamento que vem do medo. Da memória.
Dos fantasmas que a gente acha que deixou pra trás.
E lá estava ela.
Camila.
Com seu estilo vintage impecável, quase como saída de um editorial dos anos oitenta. Calça de cintura alta, blusa estampada justa ao corpo, e até os sapatos — um salto baixo retrô que ela sempre disse combinar com tudo. Por um segundo, admito: se fosse dois anos atrás, meu coração teria disparado e eu estaria ali, derretida, enfeitiçada, me perguntando como tive tanta sorte.
Mas hoje...
Hoje ao vê-la, só sinto dor.
Aquela dor seca, que não faz escândalo, mas rói por dentro. Uma dor que mistura lembranças, decepções e aquele “por que eu não fui suficiente?”.
Ela está ali, escorada na parede como se o tempo não tivesse passado, como se a nossa história não tivesse sido tão mal resolvida. E o pior: parada bem na entrada do prédio onde moro. Ou seja, não tem desvio, não tem fuga.
Respiro fundo. Endireito os ombros, e continuo andando. Não vou voltar. Não vou correr.
Assim que me vê, ela ajeita a postura como quem veste uma armadura de charme e me presenteia com um sorriso breve, quase ensaiado. É linda, disso não há dúvida. Mas se a beleza dela refletisse sequer metade do que lhe falta em caráter, eu já teria me rendido há muito tempo.
— Oi, Clara... — ela diz, a voz trêmula, carregando um tom desajeitado que denuncia o nervosismo. Agora, de perto, o cheiro de cigarro impregnado em suas roupas se mistura ao álcool, formando uma névoa amarga entre nós.
— Oi, Camila. — respondo, seco. As palavras saem sem cor, sem peso, sem aquele brilho nos olhos que costumava incendiar cada sílaba quando falava com ela.
— Você não respondeu às minhas mensagens... — ela começa, hesitante. — Fiquei sabendo da tentativa de roubo.
Fico em silêncio. Apenas observo. Cada palavra dela parece tatear o ar, insegura, como se nem ela mesma soubesse se ainda tem o direito de me encarar. E eu... só analiso. O tom da voz, o tremor nas mãos, o descompasso entre o que diz e o que sente. Como se estivéssemos frente a frente pela primeira vez — ou talvez pela última.
— Estou bem. — respondo enfim, sem pressa, como quem escolhe cada palavra com cuidado para não abrir novas feridas. Ela tenta dizer algo, abre a boca algumas vezes, mas desiste. No fim, solta apenas uma pergunta:
— E o Bento?
Dou uma risada nasal, seca, sem humor. Da sacada, Bento me vê e, como sempre, anuncia sua presença com um miado alto, quase teatral, como se estivesse cobrando minha demora — ou avisando que sabe quem está comigo.
— Está ótimo. Saudável, gordinho, como sempre... — respondo num tom leve, que escapa sem querer e acaba arrancando uma risada dela. — E muito, mas muito mião.
Por um instante, o peso da conversa cede. O nome dele ainda é um ponto de contato entre nós, um respiro entre tantos silêncios.
Ela tem seus defeitos — todos temos. E mesmo que eu jamais saiba tudo o que ela enfrentou para se tornar quem é, nada justifica o que fez comigo. Traição, manipulação, mentiras pintadas com a desculpa dos traumas... isso é demais. Isso não se conserta com palavras.
— Se quiser vê-lo... — ofereço, já empurrando o portão com um gesto silencioso.
— Posso? — ela pergunta, com a voz baixa, quase um sussurro.
Apenas assinto. Ela me segue sem dizer mais nada, como se nossos pés soubessem o caminho que o coração tenta esquecer.
Ao cruzar a porta do apartamento, percebo nos olhos dela: tudo ali ainda carrega sua assinatura. Os quadros tortos que ela insistia em deixar assim, o tapete azul-claro que jurava ser cinza, até o cheiro — tudo permanece exatamente como ela deixou. Como se o tempo tivesse congelado à espera de seu retorno.
Talvez ela sinta isso também. Talvez perceba que aquele lugar ainda a reconhece. Mas eu... já não sei se posso dizer o mesmo. Não sei se meu coração ainda espera por ela — ou se quero que espere.
— Fica à vontade — digo num tom calmo, quase indiferente, e sigo direto para o banheiro. Preciso daquele banho mais do que nunca.
Deixo-a ali, no sofá, brincando com o Bento, que logo se joga no colo dela como se o tempo entre eles também nunca tivesse passado. A cena me atravessa. Um déjà-vu me alcança sem pedir licença — o riso dela misturado ao miado dele, o som exato de uma lembrança que dói.
Sinto os olhos arderem, a garganta apertar. Desvio o rosto, entro no banheiro e fecho a porta como quem tenta conter uma represa. A água quente vai ter que lavar mais do que o corpo hoje.
Nos conhecemos aqui mesmo, em Caldas. Ela com vinte e três, eu ainda com apenas vinte anos — cheio de sonhos e sem a menor ideia do que me aguardava. Foi numa tarde comum, na praça do centro, sob a sombra da famosa “Rueda Gigante”, que nossos olhos se cruzaram pela primeira vez.
A admiração foi instantânea, como se algo invisível tivesse nos puxado um para o outro. E acredito que, da parte dela, também houve esse mesmo choque silencioso. Ela havia acabado de chegar à cidade, carregando consigo aquele ar de quem quer recomeçar, conquistar seu lugar no mundo. Eu também buscava isso, mas com uma ingenuidade que hoje me soa quase infantil.
Ela chegou devagar, com um olhar vivo, curioso, e uma calma que desarmava qualquer um. Com tatuagens discretas espalhadas pelo corpo — pequenos traços minimalistas que não gritavam por atenção, mas a envolviam num charme impossível de ignorar.
E foi assim que começou. Simples, leve, como se tudo estivesse no lugar certo.
Pena que o destino tinha planos diferentes. Porque logo depois... o que era doce virou sombra. E o que parecia ser o começo de um lar, virou palco de um lento e silencioso terror.
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