domingo, 29 de junho de 2025

O acaso a meu favor - Página 26

 Continuação por Verônica...

Ao mandar as mensagens para Clara, decido deixar o celular de lado e refletir sobre como anda minha vida nesses últimos meses aqui em Caldas. Percebo que estamos progredindo de alguma maneira, mesmo com as demissões, com a falta de recurso e novidade no mercado. Tenho em mente que o básico bem feito, é melhor que uma... …inovação mal executada. E é nisso que venho me apoiando: em tentar fazer o simples com excelência. A cada dia que passa, entendo um pouco mais sobre as pessoas daqui, sobre o ritmo dessa cidade que parece parada no tempo, mas que aos poucos vai me permitindo espaço.

O mercado, mesmo pequeno, se tornou meu maior desafio — não apenas como administradora, mas como mulher tentando sobreviver em meio a tantas expectativas e desconfianças.

Não consigo evitar pensar em Clara nesse processo. O jeito espontâneo dela, a forma como me olha às vezes, como se pudesse me desarmar com aquele meio sorriso distraído. Tentei não me apegar, manter distância. Mas como manter distância de algo que, mesmo sem querer, se aproxima mais a cada dia?

Não me incomodo com a solitude que escolhi viver todos os dias. Gosto da minha própria companhia, do silêncio que me organiza por dentro. E, sinceramente, duvido que exista alguém que acompanhe o ritmo acelerado dos meus pensamentos, minhas exigências, minhas manias. Mas... e se? E se essa pessoa existisse? …E se essa pessoa já estivesse por perto, se esgueirando pelas frestas do meu cotidiano, sem que eu tivesse me dado conta?

Não quero idealizar, muito menos correr. Mas e se... a minha solitude estivesse só preparando espaço para algo novo, algo que, por mais assustador que pareça, também pode ser leve?

Começo a rir dos meus próprios pensamentos e penso - Às vezes penso que estou perdendo o juízo. Ficar com o coração acelerado só por ver uma funcionária agir com coragem demais, ou se preocupar com alguém a ponto de mandar mensagem à noite, não é exatamente algo que eu faria — ou que eu deveria fazer. Talvez seja só o estresse, ou quem sabe... carência. Carência física, emocional, ou os dois misturados em um coquetel hormonal que me faz enxergar coisa onde não tem.

Devo estar mesmo precisando de algo mais... íntimo. Um toque, uma distração, um corpo quente que não seja só o travesseiro. Só pode ser isso. Não tem lógica esse meu cérebro transformar um ato de coragem da Clara em cena de filme romântico. Mas então por que eu não consigo parar de lembrar o jeito que ela olhou pra mim antes de sair hoje? Será que tô mesmo ficando louca?

Nesse turbilhão de pensamentos, me vem à cabeça a Ana, que deixei em San Diego. Tivemos algo... casual. Talvez só algumas noites de distração. Não era ruim, pelo contrário — era prático, simples, direto. Aquele tipo de envolvimento que se encaixa bem quando tudo o que você quer é silenciar o corpo por umas horas. Nunca passou disso. Nunca quis que passasse, e acredito que ela também não. Só que agora, pensando com mais clareza, percebo que não sinto — ou nunca senti — nada além de atração física por ela. E isso, que antes era suficiente, hoje parece... vazio.

O que me incomoda é isso: o raso, o básico, o controlado… não está mais me preenchendo. Não sei se é o ambiente novo, a rotina intensa ou… Clara. Mas há algo nessa sensação que não consigo calar. E o pior? Nem sei se quero calar. Depois de fervilhar a cabeça com tantos pensamentos, decido dormir.

No dia seguinte, chego mais cedo que o habitual. Ainda com o corpo cansado da noite mal dormida e da cabeça cheia demais para suportar o silêncio de casa. Dispensei os serviços do Augusto — achei o mínimo que podia fazer depois da confusão de ontem. Pedi que se recuperasse, mesmo sabendo que ele preferiria estar aqui, fazendo questão de parecer indispensável. Mas hoje eu queria o mercado mais calmo. Mais... meu. E talvez, com sorte, um pouco dela também.

Organizo algumas planilhas no computador, mas meus olhos, de tempos em tempos, desviam para a câmera da entrada. Como se fosse um relógio bem programado, Clara aparece, alguns minutos antes do horário dela. Não era pontual por acaso. Quando vejo a cabeça dela surgindo pela porta, seus olhos procuram por alguém, e percebo a surpresa contida ao notar que sou eu quem está ali — e não o Augusto.

Viro a cadeira em sua direção devagar, sem pressa, quase como se esperasse esse momento. Sorrio, involuntariamente. Um sorriso mais leve do que estou acostumada a mostrar.

— Bom dia, Clara. — digo, com uma euforia quase desajeitada, que me escapa antes de eu conseguir controlá-la. Ela hesita um segundo, como se tentasse entender meu tom. E, por um instante, meu peito pesa — não sei se pela tensão de ontem ou por essa sensação estranha de estar começando o dia... bem.

Clara, sendo quem é, me devolve o cumprimento de maneira genuína, com aquele sorriso pequeno, quase envergonhado, que ela sempre tenta esconder, mas que insiste em aparecer. Vejo seu tom de pele mudar sutilmente — as bochechas ganham um leve avermelhado que, em outra pessoa, talvez passasse despercebido. Mas nela, não. Presumo que esteja com vergonha. E, bom... quem diria?

Ela ajeita a alça da mochila no ombro como se isso fosse esconder o desconforto que começa a tomar forma entre nós, mas eu finjo não notar. Ou melhor — noto cada detalhe, mas não demonstro. Aprendi a fazer isso muito bem. E ainda assim, Clara parece ser a única pessoa capaz de me fazer desejar, por alguns segundos, não esconder nada.

— Dormiu bem? — pergunto, como quem joga a isca na água calma.
Ela me encara por um segundo, talvez surpresa com o interesse, e então assente devagar, como se ainda estivesse tentando entender a que jogo estou jogando.

Não sei ao certo o que estou fazendo. Não sei quando isso tudo deixou de ser só profissional. Só sei que, mesmo que tenha começado como curiosidade, agora isso... me assusta um pouco.

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