Por Clara...
Ao ver que era a Verônica e não o Augusto sentado na cadeira do escritório, minhas pernas viraram gelatina. Instantaneamente senti minhas orelhas esquentarem, aquele calor súbito que denuncia quando algo me pega desprevenida — e, geralmente, é ela quem causa esse efeito.
Era para eu ter um certo ressentimento dela, pela primeira impressão dura que me deixou, pela forma como me olhou no meu primeiro dia aqui, quase como se eu fosse um erro administrativo. Mas com o tempo... com o tempo dela aqui, das conversas no horário do almoço, dos olhares menos frios e mais atentos, das brincadeiras discretas — senti que ela tentava, à sua maneira, corrigir o erro daquela primeira vez.
E eu, mesmo tentando resistir, acabei me deixando tocar por isso. Por ela.
— Bom dia, Clara — disse, com uma euforia no tom que não combinava com o jeito controlado que costumava usar.
Eu sorri de volta, pequena, sem mostrar os dentes. Meu corpo respondeu antes que minha mente pudesse intervir: um “bom dia” quase sussurrado saiu dos meus lábios, e senti as bochechas queimando. Tentei esconder o nervosismo ajeitando a alça da mochila e desviando o olhar, como se o chão fosse mais interessante do que a mulher sentada à minha frente. Mas não era.
Ultimamente venho percebendo, que nada era mais interessante que Verônica.
Meio que minha fala sai um pouco gaga, porém acho que ela entendeu, pois acabou dando uma risada — aquela risada dela, que é baixa, mas sincera o suficiente para me desmontar.
— Eu pensei que... que fosse o Augusto... — tentei explicar, ainda parada na porta, como se meus pés tivessem se enraizado ali mesmo.
Na verdade, eu ia completar dizendo que estava preocupada com ele, por conta de ontem, da agressão e tudo mais... mas ela foi mais rápida, e do jeito que só ela consegue ser, me pegou de surpresa com uma pergunta que mais parecia uma armadilha — daquelas que a gente cai até querendo.
— Ah, então você preferiria que fosse o Augusto aqui do que eu? — perguntou, arqueando uma das sobrancelhas com um falso tom de indignação que me arrancou um arrepio inesperado na nuca.
Eu travei. Meu cérebro tentou desesperadamente encontrar uma resposta inteligente, casual, engraçada… qualquer coisa que não denunciasse o nó que ela causava no meu estômago.
— N-não foi isso que eu quis dizer... — gaguejei de novo, e senti minha vergonha crescer exponencialmente. — É que... eu... achei que ele que... que ia estar aqui hoje... só isso...
Ela manteve aquele meio sorriso nos lábios, como se tivesse acabado de ganhar um ponto num jogo que só ela sabia que estava sendo jogado.
Sem nem perceber, soltei as palavras como quem pensa alto, mais para mim mesma do que para ela:
— Qualquer pessoa é melhor que o Augusto pela manhã nesse mercado. — falei olhando para um ponto fixo qualquer à minha frente, só percebendo o que disse de verdade quando ouvi a gargalhada dela.
Uma risada leve, espontânea, dessas que escapam antes de qualquer filtro — e aquilo me fez sorrir também, mesmo querendo me esconder de vergonha.
— Mas não conta isso a ele — disse, voltando a olhá-la com um sorriso quase cúmplice. — É capaz dele me demitir.
Ela me lançou um olhar divertido, um tanto provocador, como se guardasse o segredo com gosto.
— Seu segredo está seguro comigo — respondeu, como quem faz uma promessa selada no ar.
Ficamos em silêncio por um segundo que pareceu mais longo do que deveria. Um daqueles silêncios que não incomodam, mas também não explicam nada. Apenas ficam ali, pairando entre a gente, como uma pergunta que ninguém tem coragem de fazer.
Quando penso que não posso me surpreender mais com essa mulher, ela vai lá e me prova o contrário. E faz isso sem esforço, como quem nem percebe o efeito que tem sobre mim.
— Senta aqui. — ela diz, apontando para a cadeira vazia ao seu lado, com um gesto quase casual. — Ainda tem vinte minutos pro seu horário começar.
Olho para ela meio sem acreditar, meio tentando entender o que está por trás desse convite simples. O tom era leve, mas tinha algo ali... algo na forma como ela disse, na forma como seus olhos me olharam rápido demais e desviaram depois. Ou talvez seja só coisa da minha cabeça.
Me aproximo devagar, puxo a cadeira e me sento com cuidado, como se estivesse entrando em um território novo. Eu não deveria estar aqui, eu sei. Mas algo dentro de mim quer muito ficar.
Ela me olha de um jeito que... me conforta. É diferente de tudo que já senti vindo dela antes — não tem autoridade, nem aquele ar de controle. Só um silêncio calmo, como se dissesse que estava tudo bem ali, entre nós duas.
Enquanto digita algo no computador, vejo seus olhos atentos na tela, os dedos rápidos no teclado. Me pego observando-a mais do que deveria, até que sua voz suave quebra o silêncio:
— Pode ligar esse computador à sua frente pra mim? — pede sem sequer desviar os olhos da tela.
Apenas obedeço, meio sem pensar, apertando o botão e vendo a luz da logo acender. Tudo normal... até a próxima ordem.
— E coloca numa rádio qualquer aí... que toque música brasileira clássica.
Reviro os olhos internamente. Ah, não. De novo não. A última semana foi praticamente uma trilha sonora de Elis Regina, Cartola, e Vinícius, repetida em loop. Eu até gosto, mas já decorei as respirações da Gal Costa.
— Música brasileira clássica? — pergunto, quase numa provocação. — Não tem nada com um pouco mais de batida, não?
Ela dá um sorrisinho rápido, ainda olhando para o monitor.
— E você gosta de estilo musical, bonita? — ela pergunta com um sorriso leve, divertido, meio provocador. — Menos funk, por favor.
Me permito rir de forma solta, daquele jeito que vem fácil quando estou confortável. Ela me pega desprevenida com esse tom brincalhão que tem usado ultimamente.
— Não, não é funk. — respondo ainda risonha. — Poxa, um sertanejinho não faz mal a ninguém. Além do mais, aqui é praticamente o berço do estilo. Tem que valorizar, né?
Ela vira o rosto na minha direção, tirando os olhos do monitor, e eu dou de cara com aquele par de óculos que, sinceramente... deixam ela ainda mais interessante. Sexy. É isso mesmo que estou pensando? Clara, foco. Mas é difícil com aquele olhar avaliador por trás das lentes, e o sorrisinho no canto da boca.
— Desde quando pessoa da sua região curtem sertanejo? — diz, arqueando uma sobrancelha.
A olho com um fingido olhar ofendido e, sem pensar muito, pego um papel em branco que estava por perto e dou uma batidinha leve em seu braço.
— Olha o preconceito! — exclamo, teatralmente indignada.
Ela ri — uma risada verdadeira, leve, sem pressa. Mas não me repreende. Pelo contrário, me olha de um jeito que quase me faz esquecer onde estou.
Pesquiso algumas músicas sertanejas antigas, já preparando a playlist para deixar no fundo enquanto o dia começa. Mas, antes que eu consiga dar play, ouço a voz dela se intrometer com aquele tom meio indignado, meio brincalhão que já estou começando a reconhecer.
— Ah, não... — começa, se virando na cadeira. — Aposto que você nem gosta das clássicas de verdade. Aqueles modões bons mesmo... Porque, claro, muito deles nem vivos são, né? — Ela revira os olhos com exagero, e continua antes que eu possa retrucar. — Mas eu tenho que escutar as músicas dos cantores que você gosta, que também já morreram! Isso é jogo sujo, Clara.
— Ah, não, Vê... só hoje vai?! — solto automaticamente, num tom meio manhoso, meio brincando.
Mas assim que percebo o que acabei de dizer — Vê —, sinto o corpo inteiro congelar. Arregalo os olhos, como se a palavra pudesse voltar pra dentro de mim. Tento me justificar rápido, tropeçando nas palavras.
— Digo, Verônica... É que... foi no impulso, eu... desculpa.
Ela me encara por um segundo, e juro que vejo algo diferente em seu olhar. Não é julgamento. Nem deboche. É... surpresa, talvez. Curiosidade. E um brilho divertido, claro — como quem acabou de ganhar um presente inesperado.
Ela dá um sorrisinho de canto, daqueles que não mostram os dentes, mas dizem muita coisa.
— "Vê", é? — repete, com um ar leve, como se tivesse saboreando a palavra.
Sinto minhas bochechas queimarem como se alguém tivesse acendido uma fogueira nelas.
— Eu juro que não foi de propósito. — digo nervosa, sem saber onde enfiar o rosto.
— Ainda bem. — ela responde, voltando os olhos pro computador. — Porque se fosse, ia ser ainda mais difícil eu fingir que não gostei. — Essa parte eu não ouço ela dizer com clareza, mas ela sabe que eu ouvir.
E aí ficamos em silêncio. Um silêncio confortável, preenchido pelo som de alguma dupla antiga cantando sobre saudades e corações partidos. E, de repente, nenhuma música parece mais tão brega assim.
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