quarta-feira, 20 de agosto de 2025

O acaso a meu favor - Página 55

Continuação por Verônica....

Depois de passar um pouco de raiva com os repositores — porque, convenhamos, homem quando resolve ser desajeitado consegue ultrapassar todos os limites da paciência —, finalmente conseguimos colocar tudo em ordem.
Ligamos os freezers, e lá ficaram, ronronando como motores satisfeitos, adquirindo a temperatura ideal para receber as carnes que ainda repousavam na câmera fria.

Respirei fundo, sentindo aquele peso nos ombros se dissolver pouco a pouco. O mercado estava, de fato, começando a ganhar um novo fôlego.

Olhei em volta, vi a equipe cansada, e fiz o que achava justo:
Os que saíram mais cedo do intervalo por ordem minha, descansem por trinta minutos agora. Os demais, que ainda não pararam, façam isso também.

Todos assentiram, sem contestar. E o silêncio que ficou foi quase reconfortante.

Peguei o celular para ver as horas e me assustei: 15h47.
A correria tinha engolido meu dia, e percebi que não havia colocado nada no estômago desde cedo.
A fome, que antes havia desaparecido na empolgação da chegada dos freezers, voltou com força na calmaria que se seguiu.
Era como se meu corpo, agora que já não estava em alerta, cobrasse a conta da adrenalina.

Olhei em volta: papéis pela mesa, planilhas abertas no computador, meu celular cheio de mensagens não lidas. Parte de mim queria continuar ali, resolvendo cada detalhe do dia, mas a outra gritava por um simples prato de comida.

Suspirei, ajeitando os óculos no rosto, e pensei: Não adianta nada segurar o peso de uma empresa inteira se eu não consigo cuidar nem de mim mesma.

Abri o aplicativo de delivery e comecei a rolar as opções. Nada parecia apetitoso. Tudo me parecia ou muito pesado ou muito demorado. Fechei de novo. Peguei a bolsa.
— Vou sair só um instante. — anunciei, quase para mim mesma, mas alto o suficiente para Augusto, que passava pelo corredor, escutar.

Ele me lançou aquele olhar de quem quer perguntar “Quer que eu vá junto?”, mas se conteve. E ainda bem, porque eu precisava de alguns minutos sozinha.

No carro, o silêncio me fez bem. Liguei o rádio baixo, apenas para não ouvir o som do meu próprio estômago roncando, e segui em direção a uma lanchonete simples que ficava a duas quadras dali. Não era nada sofisticado, mas serviam um prato feito honesto, quente, e era isso que eu precisava.

Enquanto esperava o pedido, abri novamente as fotos dos freezers no celular. Sorri sozinha.
Cansada, esfomeada, estressada — mas feliz.
Afinal, cada conquista tem gosto melhor quando a gente paga o preço para alcançá-la.

Não demorou nem quinze minutos e meu pedido chegou, e meu estômago agradeceu como se tivesse recebido o presente mais valioso do mundo. A cada garfada eu sentia minhas forças voltarem, como se um fio invisível estivesse religando minha energia. Mas, se eu pudesse escolher, naquele exato momento trocaria qualquer freezer novo por um travesseiro e aquele cochilo sagrado depois do almoço.

Sorri sozinha diante do pensamento. Mas como nasci bonita e ainda tento não falir a própria empresa da minha família, levantei da cadeira com uma falsa elegância, paguei a comanda e segui de volta ao supermercado.

No carro, o calor da tarde batia no vidro, e por um instante quase me convenci a dar mais cinco minutinhos estacionada ali, com os olhos fechados. Mas não. O mercado precisava de mim, e a sensação de responsabilidade sempre gritou mais alto do que meu cansaço.

Quando voltei, encontrei alguns dos meninos rindo baixinho perto da entrada. Ao me ver, todos se recompuseram rápido — era engraçado e ao mesmo tempo satisfatório ver como minha presença ainda impunha ordem. Passei por eles sem dizer nada, mas por dentro estava com vontade de rir.

Seguir direto para o escritório, mas antes de sentar, fui até os freezers. Ali estavam, alinhados, imponentes, como soldados prontos para a batalha. Toquei a lateral de um deles, fria, firme. Senti aquele orgulho crescer de novo no peito.

— Augusto, amanhã pela manhã quero todas as carnes embaladas a vácuo nesses freezers. — ordenei, firme, cruzando os braços enquanto olhava para o brilho novo dos equipamentos.

Ele ergueu as sobrancelhas, respirou fundo, como quem já estava se preparando para a correria que viria, mas apenas assentiu com a cabeça.
— Pode deixar, Verônica. — respondeu sem titubear, ainda que eu tenha percebido o peso da responsabilidade na sua voz.

Caminhei lentamente em volta dos freezers, como se estivesse inspecionando uma obra de arte recém-inaugurada. Não eram apenas caixas de aço refrigerado. Para mim, representavam muito mais: investimento, risco, futuro.
E não deixei de pensar no tanto que sangrei o caixa para vê-los ali, alinhados.

Me virei para os meninos que estavam próximos.
— E quero todo mundo ajudando. Isso aqui não é trabalho de um só, é da equipe inteira. — falei em tom que não deixava espaço para dúvidas.

Eles se entreolharam, sérios. Era isso que eu queria ver: respeito, disciplina. Porque freezer cheio de carne, organizado, bonito, não era apenas estética — era lucro, era sobrevivência da empresa.

Quando terminei, senti aquele peso bom de dever cumprido pelo menos por hoje. Só que ao mesmo tempo, dentro de mim, uma voz insistia: Verônica, amanhã começa a parte difícil de verdade.

Se depender de mim, essa empresa vai florescer. Nem que eu tenha que engolir o mundo a cada garfada, entre um cochilo negado e outro.

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O acaso a meu favor - Página 54

 Por Verônica....

Ao ver os primeiros funcionários chegando, ajustando seus uniformes e trocando cumprimentos sonolentos, volto minha atenção para a folha de pagamento aberta sobre a mesa. Uma a uma, reviso as anotações, calculando o que cada um retirou pelo nosso convênio interno — aquele sistema simples, mas que já ajuda tanto: o colaborador pega o que precisa no mercado e, no final do mês, descontamos direto do salário.

Mas, enquanto preencho valores, minha cabeça está em outro ponto.
Quero algo mais. Algo que realmente faça diferença no dia a dia deles.

Abro uma nova planilha e começo a rabiscar números. Minha ideia é acrescentar um cartão alimentação para cada colaborador, com no mínimo trezentos reais de saldo mensal. É um valor modesto, mas suficiente para aliviar o bolso e dar mais autonomia.

Sei que, olhando friamente para a situação da empresa hoje, o lógico seria cortar benefícios, não acrescentar. O caixa anda frágil, e o investimento no açougue já deixou nossas reservas no vermelho. Mas não consigo pensar só no curto prazo. Uma empresa boa não se constrói apenas com lucro; se constrói com gente motivada, com equipe que veste a camisa porque se sente cuidada.

A caneta pausa sobre o papel.
O pensamento é arriscado, sim.
Mas acredito que, quando você entrega algo melhor para quem está ao seu lado todos os dias, a resposta vem em forma de produtividade, comprometimento... e resultados.

Respiro fundo.
Anoto no topo da planilha: Projeto Cartão Alimentação — Implementar em 60 dias.

Eu sei que vai apertar, mas é assim que se cresce: investindo nas pessoas certas.

Não serei boa. Esse projeto do cartão alimentação só vai sair do papel depois que cada funcionário em aviso prévio deixar, de vez, os pés fora da nossa empresa.
Não é ajuda para todos — nunca foi. É recompensa. Reconhecimento para quem segue as regras, veste a camisa e entende que disciplina é tão importante quanto habilidade.

Volto a rabiscar na planilha, marcando mentalmente os nomes que já sei que não verão esse benefício.
Sei que parece frio, mas é assim que se mantém uma equipe de verdade: filtrando.

E, no meio disso, o pensamento do galpão volta a martelar. É quase um desejo proibido, como um doce caro que você sabe que não pode comprar… mas que fica olhando pela vitrine.
Um galpão enorme, numa das avenidas mais movimentadas de Caldas. Aquelas fotos ainda estão vivas na minha cabeça — consigo até imaginar a fachada com a nossa marca, a entrada ampla, os corredores cheios de movimento.
Só de pensar, meu peito aperta de empolgação… e preocupação.

Hoje, pelo menos, tenho algo concreto para comemorar: depois de dias de atraso, chegam os tão sonhados freezers. E não são só bons — são lindos!
Prateados, imponentes, com aquela tampa de vidro que deixa tudo visível. É o tipo de equipamento que transforma a aparência do mercado, que faz cliente confiar só de olhar.

Respiro fundo.
Por um momento, deixo o galpão para depois e me concentro nesse passo.
Um freezer novo não muda o mundo, mas pode ser o primeiro tijolo de algo muito maior.

As horas se arrastaram e, quando percebo, já passam das quatorze horas… e eu não coloquei um único grão de comida na boca.
Abro o aplicativo no celular para pedir algo rápido, mas antes mesmo de finalizar o pedido, ouço três leves batidas na porta.
Era o Augusto, meio inclinado para dentro, como se soubesse que vinha com notícia boa.

— Os freezers já chegaram! — anunciou, com aquele ar de quem traz um troféu.

Na hora, minha fome desapareceu como se nunca tivesse existido.
Levantei rápido, ajustando os óculos no rosto — um gesto quase automático quando estou prestes a tomar as rédeas da situação.

— Chame todos os repositores. Inclusive os que ainda estão no intervalo. — falei, sem margem para questionamentos.

Augusto acenou e, como se já tivesse previsto minha ordem, em poucos minutos estava de volta, ladeado pelos rapazes. Todos atentos, como soldados esperando o próximo comando.

A excitação estava ali, disfarçada sob meu tom firme. Freezers novos significavam mais do que espaço para mercadoria. Significavam avanço, imagem, impacto no cliente.
E eu faria questão de supervisionar cada centímetro de onde eles seriam colocados.

Depois de todo o trabalho pesado para apenas retirar os freezers do caminhão e colocá-los no chão do mercado, finalmente consigo respirar um pouco mais aliviada.
Ver aqueles equipamentos sendo levados e posicionados, um a um, no lugar certo, me trouxe uma sensação de conquista que não sei explicar. Era como se cada freezer fosse mais do que metal e vidro — eram peças de um futuro que eu tanto desejo construir.

Peguei o celular, não resisti.
Comecei a filmar, registrando cada detalhe com brilho nos olhos.
Em seguida, enviei os vídeos para o Igor.
Ele não demorou nem um minuto para visualizar e responder:

“Vamos arrebentar!!!”

Soltei uma risada sozinha, imaginando a empolgação dele do outro lado da tela. Típico de meu irmão caçula — intenso, exagerado, mas sempre acreditando em nós.
E essa fé dele, de alguma forma, me dá forças.

Mas, como nada sai perfeito, no meio do movimento percebo um dos funcionários começando a instalar os freezers de forma completamente errada.
De imediato, minha expressão mudou.
Caminhei até ele e, com voz firme, quase cortante, falei:

Assim não!!!

Ele parou, assustado, enquanto os outros se entreolharam em silêncio.
Controle é essencial.
E aqui, no meu mercado, cada detalhe tem que ser do jeito certo — ou não será feito.

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segunda-feira, 18 de agosto de 2025

O acaso a meu favor - Página 53

 Continuação por Clara...

Como hoje a Verônica mesma mandou mensagem retribuindo o favor de ontem com uma folga, decidi que vou aproveitar o dia para colocar a casa em ordem e levar o Bentinho no veterinário. Preciso aproveitar esse raro momento de calma — se fosse pelo Augusto, ele com certeza arranjaria uma desculpa qualquer para me puxar pro turno da tarde. Só de pirraça. Mesmo sem necessidade. Só pelo prazer de mandar.

Mas hoje não. Hoje é meu. E do Bento.

Ele está ali agora, se espreguiçando todo, com a língua pra fora e aquele ar de quem acha que é dono do mundo. Eu não discuto. Ele manda mesmo.

A cada três meses, como orientação da Dra. Laís, o levo para os exames de controle. Desde aquela crise... eu nunca mais fui a mesma.

A obstrução urinária foi um susto que não desejo pra ninguém. Um ano atrás, eu nem percebi. Estava tão atolada no trabalho, tão imersa em sobreviver e dar conta de tudo, que simplesmente... não vi.
Não vi que ele bebia menos água.
Não vi que evitava a caixinha de areia.
Não vi o sangue.
Não vi o olhar apagado dele.

Fui perceber quando já era tarde demais.

Me lembro perfeitamente daquela madrugada. Bento gemia de dor e eu, em pânico, ligava pra todos os números de emergência possíveis. Quando a Dra. Laís atendeu, parecia que uma parte do desespero tinha se dissolvido só de ouvir a voz calma dela do outro lado da linha.

Ela me recebeu de moletom e cabelo preso, olhos inchados de sono, mas coração enorme.
Não me julgou. Não reclamou.
Simplesmente cuidou.

Fiquei sentada naquela cadeira desconfortável da recepção, com a alma em pedaços, achando que ia perder meu melhor amigo.
Meu companheiro de todas as horas.
O meu pequeno herói matador de baratas que me acompanha até no banheiro em sinônimo de segurança — Começo a rir com a lembrança da cena, pois mesmo ele se esfarelando de sono, se eu levanto na madrugada nem que seja para tomar uma água, lá está ele atrás de mim como uma sombra.

O mesmo gato que se aninha em mim nos dias tristes e que nunca pediu nada além de carinho e atenção — e que eu falhei em dar.

Me culpei tanto...
Me senti um monstro.
Mas Bento sobreviveu. Com força, teimosia e um miado rouco de quem ainda tinha muito o que viver.

Desde então, não descuido mais.

Hoje ele vai ao veterinário, vai receber carinho da Dra. Laís e, quem sabe, até ganhar um petisco — ou dois, se fizer aquele olhar pidão.
E eu... vou respirar. Vou cuidar dele. E cuidar de mim também.

Porque cuidar do Bento, de alguma forma, me lembra que eu também mereço ser cuidada. Mesmo que eu demore a aceitar isso.

Organizei a casa por cima, só o suficiente pra não sentir culpa na volta. Coloquei água fresca na planta da cozinha, troquei os panos, abri as janelas. O Bentinho me seguiu em silêncio por alguns cômodos, como quem supervisiona, mas sempre de um jeito charmoso e desatento, pulando nos móveis como se estivesse me ajudando.

Peguei a caixa de transporte no armário alto, e só o barulho dela sendo colocada no chão já fez ele se encolher todo.
— Ei, mocinho, nada de drama hoje — falei com a voz mansa, enquanto colocava uma mantinha limpa no fundo.

Com um pouco de conversa e dois sachês de chantagem, ele entrou sem brigar.

Chamei o nosso transporte pelo aplicativo e seguimos viagem caminho até a clínica. O rádio do carro tocava uma música leve, e o tempo nublado deixava a cidade com uma cara meio nostálgica, meio bonita. Em cada farol, eu olhava para o lado e falava alguma coisa com ele.

— Dessa vez é só exame, viu? Sem cateter, sem hospitalização. Palavra de honra. —  Dizia olhando para ele na caixinha de transporte.

Chegando na clínica, a recepcionista sorriu assim que me viu.
— Oi, Clara! Trouxe o reizinho hoje?

— Ele mesmo — respondi, sorrindo ao levantar a caixa de transporte. — Veio só dar o ar da graça.

Enquanto esperava, reparei como a recepção da Dra. Laís sempre tinha cheiro de lavanda e café. Um espaço pequeno, mas aconchegante. Um daqueles lugares onde até a espera parece gentil.

Quando a porta da sala de atendimento se abriu, o rosto da Dra. Laís surgiu com aquele mesmo sorriso afetuoso de sempre.

— E aí, Bento! Já fez drama ou deixou pra cá?

— Hoje foi bonzinho... mais ou menos — disse, colocando a caixa na mesa de exame. — Mas ele sabe que aqui tem petisco escondido, então não reclama muito.

Ela o examinou com cuidado, como se estivesse manuseando porcelana rara. Conversava com ele em voz baixa, como se fossem velhos amigos. E, em algum ponto, ela parou de falar com o gato e se virou pra mim:

— Sabe, Clara... ele tá bem. Muito bem, aliás. Os exames vieram ótimos. Você tem feito tudo certo.

Sorri. Mas não conseguir disfarçar minha insegurança.

— Obrigada... — respondi num sussurro. — Eu sempre acho que posso estar esquecendo alguma coisa, sabe?

Ela assentiu.
— Nós que temos muito amor por um serzinho com o olhar tão maroto assim...— Disse de uma maneira que me fez rir. —  sempre achamos isso.

E foi ali que percebi: há pessoas que cuidam de bichos, e há outras que cuidam da gente também, mesmo sem dizer diretamente. A Dra. Laís era uma dessas.

Pagamos, pegamos os exames impressos e, antes de sair, ela ainda me chamou:

— Ah, Clara... diga pro Bentinho que ele é um dos meus pacientes preferidos.

— Pode deixar. Mas acredito que ele já sabe. — Digo levantando a gaiola e o encarando através da grade. 

No caminho de volta, Bentinho dormia no banco do passageiro, ronronando baixinho.
E eu... me sentia em paz.

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O acaso a meu favor - Página 74

  Continuação — O beijo… por Verônica O “quase” entre nossas bocas dura longos segundos — segundos que esticam o mundo, que dilatam o ar ao...