Mostrando postagens com marcador capítulo 2. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador capítulo 2. Mostrar todas as postagens

domingo, 29 de junho de 2025

O acaso a meu favor - Página 27

 Por Clara...

Ao ver que era a Verônica e não o Augusto sentado na cadeira do escritório, minhas pernas viraram gelatina. Instantaneamente senti minhas orelhas esquentarem, aquele calor súbito que denuncia quando algo me pega desprevenida — e, geralmente, é ela quem causa esse efeito.

Era para eu ter um certo ressentimento dela, pela primeira impressão dura que me deixou, pela forma como me olhou no meu primeiro dia aqui, quase como se eu fosse um erro administrativo. Mas com o tempo... com o tempo dela aqui, das conversas no horário do almoço, dos olhares menos frios e mais atentos, das brincadeiras discretas — senti que ela tentava, à sua maneira, corrigir o erro daquela primeira vez.

E eu, mesmo tentando resistir, acabei me deixando tocar por isso. Por ela.

— Bom dia, Clara — disse, com uma euforia no tom que não combinava com o jeito controlado que costumava usar.

Eu sorri de volta, pequena, sem mostrar os dentes. Meu corpo respondeu antes que minha mente pudesse intervir: um “bom dia” quase sussurrado saiu dos meus lábios, e senti as bochechas queimando. Tentei esconder o nervosismo ajeitando a alça da mochila e desviando o olhar, como se o chão fosse mais interessante do que a mulher sentada à minha frente. Mas não era.

Ultimamente venho percebendo, que nada era mais interessante que Verônica.

Meio que minha fala sai um pouco gaga, porém acho que ela entendeu, pois acabou dando uma risada — aquela risada dela, que é baixa, mas sincera o suficiente para me desmontar.

— Eu pensei que... que fosse o Augusto... — tentei explicar, ainda parada na porta, como se meus pés tivessem se enraizado ali mesmo.

Na verdade, eu ia completar dizendo que estava preocupada com ele, por conta de ontem, da agressão e tudo mais... mas ela foi mais rápida, e do jeito que só ela consegue ser, me pegou de surpresa com uma pergunta que mais parecia uma armadilha — daquelas que a gente cai até querendo.

— Ah, então você preferiria que fosse o Augusto aqui do que eu? — perguntou, arqueando uma das sobrancelhas com um falso tom de indignação que me arrancou um arrepio inesperado na nuca.

Eu travei. Meu cérebro tentou desesperadamente encontrar uma resposta inteligente, casual, engraçada… qualquer coisa que não denunciasse o nó que ela causava no meu estômago.

— N-não foi isso que eu quis dizer... — gaguejei de novo, e senti minha vergonha crescer exponencialmente. — É que... eu... achei que ele que... que ia estar aqui hoje... só isso...

Ela manteve aquele meio sorriso nos lábios, como se tivesse acabado de ganhar um ponto num jogo que só ela sabia que estava sendo jogado.

Sem nem perceber, soltei as palavras como quem pensa alto, mais para mim mesma do que para ela:

— Qualquer pessoa é melhor que o Augusto pela manhã nesse mercado. — falei olhando para um ponto fixo qualquer à minha frente, só percebendo o que disse de verdade quando ouvi a gargalhada dela.

Uma risada leve, espontânea, dessas que escapam antes de qualquer filtro — e aquilo me fez sorrir também, mesmo querendo me esconder de vergonha.

— Mas não conta isso a ele — disse, voltando a olhá-la com um sorriso quase cúmplice. — É capaz dele me demitir.

Ela me lançou um olhar divertido, um tanto provocador, como se guardasse o segredo com gosto.

— Seu segredo está seguro comigo — respondeu, como quem faz uma promessa selada no ar.

Ficamos em silêncio por um segundo que pareceu mais longo do que deveria. Um daqueles silêncios que não incomodam, mas também não explicam nada. Apenas ficam ali, pairando entre a gente, como uma pergunta que ninguém tem coragem de fazer.

Quando penso que não posso me surpreender mais com essa mulher, ela vai lá e me prova o contrário. E faz isso sem esforço, como quem nem percebe o efeito que tem sobre mim.

— Senta aqui. — ela diz, apontando para a cadeira vazia ao seu lado, com um gesto quase casual. — Ainda tem vinte minutos pro seu horário começar.

Olho para ela meio sem acreditar, meio tentando entender o que está por trás desse convite simples. O tom era leve, mas tinha algo ali... algo na forma como ela disse, na forma como seus olhos me olharam rápido demais e desviaram depois. Ou talvez seja só coisa da minha cabeça.

Me aproximo devagar, puxo a cadeira e me sento com cuidado, como se estivesse entrando em um território novo. Eu não deveria estar aqui, eu sei. Mas algo dentro de mim quer muito ficar.

Ela me olha de um jeito que... me conforta. É diferente de tudo que já senti vindo dela antes — não tem autoridade, nem aquele ar de controle. Só um silêncio calmo, como se dissesse que estava tudo bem ali, entre nós duas.

Enquanto digita algo no computador, vejo seus olhos atentos na tela, os dedos rápidos no teclado. Me pego observando-a mais do que deveria, até que sua voz suave quebra o silêncio:

— Pode ligar esse computador à sua frente pra mim? — pede sem sequer desviar os olhos da tela.

Apenas obedeço, meio sem pensar, apertando o botão e vendo a luz da logo acender. Tudo normal... até a próxima ordem.

— E coloca numa rádio qualquer aí... que toque música brasileira clássica.

Reviro os olhos internamente. Ah, não. De novo não. A última semana foi praticamente uma trilha sonora de Elis Regina, Cartola, e Vinícius, repetida em loop. Eu até gosto, mas já decorei as respirações da Gal Costa.

— Música brasileira clássica? — pergunto, quase numa provocação. — Não tem nada com um pouco mais de batida, não?

Ela dá um sorrisinho rápido, ainda olhando para o monitor.

— E você gosta de estilo musical, bonita? — ela pergunta com um sorriso leve, divertido, meio provocador. — Menos funk, por favor.

Me permito rir de forma solta, daquele jeito que vem fácil quando estou confortável. Ela me pega desprevenida com esse tom brincalhão que tem usado ultimamente.

— Não, não é funk. — respondo ainda risonha. — Poxa, um sertanejinho não faz mal a ninguém. Além do mais, aqui é praticamente o berço do estilo. Tem que valorizar, né?

Ela vira o rosto na minha direção, tirando os olhos do monitor, e eu dou de cara com aquele par de óculos que, sinceramente... deixam ela ainda mais interessante. Sexy. É isso mesmo que estou pensando? Clara, foco. Mas é difícil com aquele olhar avaliador por trás das lentes, e o sorrisinho no canto da boca.

— Desde quando pessoa da sua região curtem sertanejo? — diz, arqueando uma sobrancelha.

A olho com um fingido olhar ofendido e, sem pensar muito, pego um papel em branco que estava por perto e dou uma batidinha leve em seu braço.

— Olha o preconceito! — exclamo, teatralmente indignada.

Ela ri — uma risada verdadeira, leve, sem pressa. Mas não me repreende. Pelo contrário, me olha de um jeito que quase me faz esquecer onde estou.

Pesquiso algumas músicas sertanejas antigas, já preparando a playlist para deixar no fundo enquanto o dia começa. Mas, antes que eu consiga dar play, ouço a voz dela se intrometer com aquele tom meio indignado, meio brincalhão que já estou começando a reconhecer.

— Ah, não... — começa, se virando na cadeira. — Aposto que você nem gosta das clássicas de verdade. Aqueles modões bons mesmo... Porque, claro, muito deles nem vivos são, né? — Ela revira os olhos com exagero, e continua antes que eu possa retrucar. — Mas eu tenho que escutar as músicas dos cantores que você gosta, que também já morreram! Isso é jogo sujo, Clara.

— Ah, não, Vê... só hoje vai?! — solto automaticamente, num tom meio manhoso, meio brincando.

Mas assim que percebo o que acabei de dizer — —, sinto o corpo inteiro congelar. Arregalo os olhos, como se a palavra pudesse voltar pra dentro de mim. Tento me justificar rápido, tropeçando nas palavras.

— Digo, Verônica... É que... foi no impulso, eu... desculpa.

Ela me encara por um segundo, e juro que vejo algo diferente em seu olhar. Não é julgamento. Nem deboche. É... surpresa, talvez. Curiosidade. E um brilho divertido, claro — como quem acabou de ganhar um presente inesperado.

Ela dá um sorrisinho de canto, daqueles que não mostram os dentes, mas dizem muita coisa.

— "Vê", é? — repete, com um ar leve, como se tivesse saboreando a palavra. 

Sinto minhas bochechas queimarem como se alguém tivesse acendido uma fogueira nelas.

— Eu juro que não foi de propósito. — digo nervosa, sem saber onde enfiar o rosto.

— Ainda bem. — ela responde, voltando os olhos pro computador. — Porque se fosse, ia ser ainda mais difícil eu fingir que não gostei. —  Essa parte eu não ouço ela dizer com clareza, mas ela sabe que eu ouvir.

E aí ficamos em silêncio. Um silêncio confortável, preenchido pelo som de alguma dupla antiga cantando sobre saudades e corações partidos. E, de repente, nenhuma música parece mais tão brega assim.

Próxima página - O acaso a meu favor  Página 28

quinta-feira, 26 de junho de 2025

O acaso a meu favor - Página 23

 Por Verônica...

Continuação da cena...

Quando menos espero, vejo o rapaz caminhar em direção à seção de bebidas. Seus gestos são sutis, treinados talvez — ou apenas frutos da audácia de quem acredita que ninguém está prestando atenção. Clara continua o seguindo discretamente, observando-o com cuidado. Admiro a postura dela, o modo como não entra em pânico, não se precipita. Inteligente… muito mais do que aparenta.

Ela leva a mão ao bolso e retira o celular. Pela câmera vejo os lábios dela se moverem rapidamente. Em segundos, outro monitor acende: Augusto atende a ligação com aquela cara de desdém automático que sempre faz quando não está no controle da situação. Claro, ela ligou para ele. Um pequeno sorriso se forma no canto da minha boca. Clara confia nela mesma, mas também sabe quando pedir reforço.

O rapaz, talvez percebendo que está sendo observado, hesita. Seus olhos vagam, rápidos demais, como quem procura uma rota de fuga. Ainda assim, tenta manter a postura — finge estar apenas decidindo qual bebida levar. Mas, sem notar onde exatamente estava, comete um erro primário: pega outro produto qualquer, provavelmente algo menor, e tenta enfiá-lo por baixo da camiseta. A movimentação é tão desajeitada que chego a franzir a testa.

E o destino — ou talvez apenas a ironia do acaso — decide que, justo naquele instante, ele comete o furto a menos de dois metros de onde Augusto está, repondo caixas no freezer de congelados.

Vejo Augusto se erguer devagar, parecendo processar a cena diante de si. Pela expressão em seu rosto, ele ainda não decidiu se está irritado ou feliz por ter flagrado algo que lhe dará autoridade momentânea.

Quase posso ouvir o barulho da tampa do freezer batendo, mesmo da minha sala. Pego meu rádio. Meu corpo já se move antes que a mente processe. Saio de frente as câmeras, pego meu celular e caminho para fora da sala com passos firmes. Não que eles precisem de mim para conter a situação. Mas algo dentro de mim não permitiria que Clara passasse por qualquer tipo de risco. Nem hoje. Nem nunca.

E talvez eu finalmente esteja pronta para admitir isso.


Ei, rapaz! – ouço a voz de Augusto ecoar alto pelo mercado, áspera, sem o menor traço de tato.
O alerta dispara dentro de mim como um estopim. Meu corpo já havia passado da porta do escritório, e agora minhas pernas correm antes mesmo de qualquer ordem racional.

O garoto se assusta. Seus olhos arregalam, e ele, num reflexo desordenado, tenta fugir por um dos corredores ao lado da padaria.
Vejo tudo em fragmentos: Augusto largando a caixa que segurava, correndo em disparada; o rapaz tropeçando nos próprios passos, tentando despistar; Clara, a poucos metros, se movendo rápido, talvez com a intenção de impedir a saída, talvez apenas pelo impulso de proteger.

E então tudo acontece de uma vez.

Augusto o alcança primeiro, bloqueia o caminho, e sem aviso, o garoto desfere um soco seco, direto no rosto de Augusto.
Ouço o som abafado do impacto mesmo à distância. Meu corpo congela por um segundo.

Clara... – sussurro quase sem ar.

Meu coração martela, descompassado. Meus olhos buscam ela em meio à correria do único funcionário presente ainda golpeado e dos poucos clientes que ainda estavam por ali com medo da situação. Ela aparece no canto do corredor, arregalando os olhos diante da cena. Dá um passo à frente, hesitante, como se não soubesse se avança ou se recua. Meu maior medo naquele instante era vê-la em perigo.

Augusto, ainda tonto pelo golpe, cambaleia um pouco, mas reage com fúria.

Não consigo ver a hora exata nas imagens do aplicativo que tenho pelo celular, os minutos parecem borrar entre si diante da tensão, mas algo salta aos meus olhos. Clara… ela estava em um dos corredores, com aquela mini escada que sempre usamos para alcançar produtos no alto. O rosto sério, mas o corpo em alerta, como se antecipasse o pior.

O garoto – ainda tentando fugir – corre em disparada na direção do corredor onde ela está. Talvez achando que era uma rota de escape. Mas ele não contava com Clara.

E então, sem pensar duas vezes, ela ergue a escada e a projeta com força contra ele, atingindo-o em cheio no rosto.
O som do impacto é alto. O corpo do rapaz cede no mesmo instante, caindo de costas no chão, desorientado.

Minha boca se entreabre num gesto de surpresa e incredulidade. Meus olhos permanecem fixos nela pela tela. Clara…


O que foi isso?
Um gesto de coragem?
De proteção?
Ou só instinto puro?

Corro até o local e quando viro no corredor, ela já está ajoelhada, ofegante, ao lado do rapaz desacordado por alguns segundos. As mãos ainda trêmulas segurando a lateral da escada.

Você tá bem? – pergunto, mais preocupada com ela do que com qualquer protocolo.

Ela apenas assente, respirando rápido, tentando se recompor. Seus olhos me encontram e por um segundo, há algo ali que me desmonta.
Não era medo. Era mais... fúria contida, adrenalina, e uma espécie de... orgulho?

– Eu vi ele correr... não pensei muito. – ela diz baixo, quase num sussurro, como se estivesse se desculpando por algo que, na verdade, me fez querer abraçá-la.

Mas eu não posso. Eu não devo.

Augusto se aproxima do lado, com a cara ainda marcada pela dor e pelo ego ferido.
Mas nesse instante, ele não tem o controle. Clara teve.

Nessa hora percebo o rapaz tentar se levantar, meio desorientado da pancada.

Augusto, ainda tonto pelo golpe, cambaleia um pouco, mas reage agarrando o garoto pelo braço e o imobiliza com força desnecessária. Um dos clientes ali presente já corre para ajudar, e eu também acelero os passos, tomando as rédeas da situação.

Já chega! – digo firme, minha voz saindo mais fria do que imaginei. – Augusto, solta ele, agora!

Ele me encara, respirando pesado, a mandíbula marcada pelo vermelho da pancada. Sua expressão é de quem quer retrucar, mas se contém. Solta o rapaz com brusquidão.

Leva para os fundos! –  digo a Augusto, já tirando o celular do bolso para ligar para a polícia.

Olho para Clara. Ela está com as mãos trêmulas, respirando ainda rápido, os olhos fixos em mim como se buscasse algum tipo de certeza.

E naquele instante, passos apressados e respirações ofegantes, percebo...
Não é o medo de uma ocorrência no mercado que me domina. É o medo de algo acontecer com os funcionários e eu não tiver como contornar, medo de acontecer algo com ela.

Próxima página - O acaso a meu favor

Página 24

O acaso a meu favor - Página 22

 Por Verônica...

"Nem sei exatamente o que me deu naquele momento. Estava olhando as câmeras, e vi a Clara... ali, demorando mais do que devia. E pelo jeito, gostando da conversa com aquela mulher. Algo meio impulsivo tomou conta de mim, como se eu precisasse acabar com aquilo.

Não havia urgência. Nenhum problema real. Os cafés que ela organizava estavam em ordem, os preços, checados. Mas mesmo assim... senti uma vontade súbita de tirá-la dali. Um impulso que eu mesma não consegui entender.

Talvez tenha sido só zelo, talvez tenha sido só minha maneira de querer manter o controle de tudo. Mas, no fundo, não foi isso. E eu sei.

Não havia necessidade de ela buscar os preços comigo naquele momento — eu poderia muito bem ter delegado. Mas ainda assim, chamei. Quis que ela viesse até mim.
Talvez só quisesse afastá-la daquela mulher. Talvez eu só quisesse tê-la por perto.

É difícil admitir, mas aquele impulso foi meu. E eu ainda estou tentando entender por quê.


Ao ver que a minha resposta a calou, me bateu aquele leve arrependimento. Mas também, conhecendo a Clara como venho conhecendo, imaginei que ela reagiria com alguma brincadeira, talvez um comentário atravessado com aquele humor debochado dela. E, se eu for honesta comigo mesma… era isso que eu queria. Uma provocação, uma gracinha qualquer. Desde que fosse só pra mim.

Seguimos até o escritório em silêncio. Ela caminhava atrás de mim, e eu tentava manter a postura, o rosto sério — sério demais, talvez. Mas por dentro, eu estava num embaraço infantil. Me sentia ridícula e orgulhosa ao mesmo tempo. Que contradição insuportável essa menina me faz sentir.

Sentei à mesa, evitando encará-la de imediato. Quando finalmente levantei os olhos, lá estava ela: encostada na parede, braços cruzados, o corpo relaxado, mas os olhos… ah, os olhos dela estavam me analisando. Com aquele brilho divertido, quase maldoso, que me tira do sério e, de alguma forma inexplicável, me alegra também.

Ela não disse nada. E o silêncio dela me dizia mais do que qualquer resposta. Não era um silêncio bravo, magoado… Era um silêncio curioso, do tipo “tô tentando entender o que foi isso agora”.

E eu queria explicar. Queria dizer “desculpa, foi só um impulso idiota”, ou então admitir que me incomodou ver ela tão entretida com outra mulher. Mas nada saía. Em vez disso, fiquei ali, com cara de poucos amigos e coração desorganizado.

Foi então que ela deu um passo à frente, arqueando uma sobrancelha com aquele ar sapeca:

— Só pra entender… foi o café mesmo que te incomodou, ou foi o papo bom demais?

Quase revirei os olhos. Mas segurei. Dei um suspiro exagerado, e respondi da forma mais seca que consegui — pra me proteger, claro:

— Não vejo problema em você fazer seu trabalho. Desde que lembre onde ele começa... e termina.

Ela riu. Baixo, de canto. Um riso provocador e suave, do tipo que me desmonta.

— Entendi. Limite geográfico e afetivo, anotado.

Virei a cadeira levemente, para esconder o sorriso que escapava no canto da boca. Essa garota me tira do eixo.

E mesmo com vontade de colocar ela pra fora da sala, também me peguei desejando que ficasse mais um pouquinho.


Ao vê-la sair do escritório, meus olhos automaticamente buscaram pelas câmeras, como quem tenta continuar perto mesmo de longe. Eu me odiava um pouco por isso. Cada canto que ela passava, cada gesto simples como arrumar o uniforme ou prender o cabelo, me prendia a atenção de uma forma que… sinceramente, começava a me assustar.

Talvez eu esteja mesmo levando pra um lado pessoal demais. Nossas conversas na hora do almoço, os sorrisos sutis. Eu sei que não tem nada ali, ou pelo menos, não deveria ter. Ela é apenas uma funcionária. E eu sou a chefe. Deveria bastar essa linha pra colocar freio no que ando sentindo.

Talvez eu precise mesmo começar a me afastar. Diminuir os encontros. Esfriar qualquer sinal de aproximação. Mas o problema é: como faço isso, se justamente esses pequenos momentos com ela são os que me aquecem no meio dessa rotina fria e solitária?

Com os outros funcionários, meu contato é direto, objetivo, quase sempre técnico. E sim — muitos têm medo de mim. A forma como me olham, como evitam conversas além do necessário, como se estivessem sempre esperando uma bronca. No começo me incomodava. Agora, confesso que prefiro assim. É mais fácil manter o controle quando ninguém se aproxima demais.

Mas a Clara... ela atravessou essa barreira sem nem perceber que ela existia. E eu permiti. Talvez até desejei.

Agora, sozinha na sala, me vejo encarando meu reflexo na tela preta do monitor desligado. O rosto sério, os olhos cansados, e o pensamento... totalmente voltado para ela.

Suspirei fundo, passando a mão no cabelo e me forçando a voltar ao trabalho. O problema de lidar com o inesperado, é que às vezes ele tem um sorriso bonito e um jeito de rir que te desmonta inteira.


Não sei ao certo por que agora estou deixando esses pensamentos fluírem… Talvez seja o silêncio do escritório, ou o fato de me permitir pequenas distrações quando penso nela. Respiro fundo, endireito a postura na cadeira, jogo os cabelos para trás como um ato quase automático de retomada de controle, e me concentro no que deveria estar fazendo: revisar os pedidos do mês.

Foco em manter as compras dentro do necessário, nada além do básico. O mês ainda está no começo, e depois das últimas movimentações e desligamentos, prefiro conter gastos. Hoje estamos com a equipe reduzida — um repositor de folga, o caixa também. Restamos apenas eu, Augusto, e… Clara.

É quando vejo um rapaz entrando no mercado. Casaco maior do que o necessário para um clima como o de hoje. Largo a caneta com suavidade sobre a mesa. Meus olhos se estreitam, não por paranoia, mas por precaução. O instinto que me acompanha desde que assumi essa função nunca falha. Mas meu reflexo imediato é outro: Clara.

Procuro por ela nas câmeras. Lá está, concentrada como sempre, arrumando a seção de grãos. Mas logo percebo algo em seu olhar — ela também reparou. Clara não é boba. Ela se ergue com calma, como quem apenas está cumprindo seu trabalho, mas seu corpo diz outra coisa: alerta.

Finge estar analisando um produto, mas seus olhos estão nele. Assim como os meus.

Desvio os olhos da tela e pressiono os lábios. Augusto está no fundo, repondo os freezers. Ele não percebeu nada. Claro que não. Não presta atenção em nada além de si mesmo.

Eu continuo observando, mas sem intervir ainda. Quero ver até onde isso vai. E, talvez, de forma ainda mais forte do que a preocupação com o rapaz, vem o incômodo latente de ver Clara se expor, ainda que com elegância, a algo que eu preferia evitar pra ela.

Sou invadida por aquele sentimento estranho novamente — o de querer protegê-la. Mesmo que isso me atrapalhe. Mesmo que eu não entenda ainda o porquê.

 Próxima página - O acaso a meu favor

quarta-feira, 25 de junho de 2025

O acaso a meu favor - Página 21

O acaso a meu favor - Página 21

 

Por Clara...

 Ao chegar no mercado naquela manhã, fui surpreendida pela notícia das demissões da Ju, do seu Paulo e do Luís. Me deu um aperto no peito, confesso. Fiquei em silêncio por alguns minutos, digerindo a informação com um nó na garganta. Foram colegas que, de certa forma, fizeram meus dias mais leves por aqui. Sempre tão presentes, tão humanos. É impossível não sentir falta. Mas, mesmo com a tristeza, não consegui sentir raiva ou julgamento pelas escolhas da Verônica. Pelo contrário, sei que ela está tentando reestruturar tudo e fazer o mercado caminhar de um jeito mais justo e profissional. Entendo que, por mais que doa, algumas mudanças são necessárias. Ainda assim… vai ser estranho depois que passar a rescisão não ver os rostos deles por aqui. 

E seu Paulo sendo quem é, justo no dia em que ia cobrir a folga de outro colega, resolve faltar. Eu já imaginava que isso poderia acontecer, não vou mentir. Conhecendo o jeitão dele, dava pra ver que essa saída já estava sendo pensada fazia tempo. O mais curioso foi ver o Augusto praticamente surtar — começou a ligar pra ele desesperadamente, como se fosse uma emergência de vida ou morte. Era nítido o pânico estampado no rosto dele, tentando de todas as formas contornar a situação sem quebrar a nova regra da Verônica. — Caso contrário, o gerente presente será o responsável por cobrir a ausência de qualquer funcionário, seja no caixa, seja como repositor. — Quase me escapou uma risada ao ver ele se equilibrando entre o orgulho e o medo de tomar uma chamada. A verdade é que, até pouco tempo atrás, ele mandava e desmandava por aqui… agora tá engolindo seco, tentando seguir as novas ordens.  

Vejo o carro da Verônica passar em frente ao mercado, e, como de costume, imagino que vá estacionar na vaga preferencial dela. Augusto, completamente alheio à movimentação, continua grudado no celular, tentando — sem sucesso — falar com seu Paulo. Quando ela entra pela porta, uma discreta euforia me percorre. É estranho, não sei bem explicar, mas algo nela sempre me tira do eixo.

Retira os óculos escuros que nunca faltam nas manhãs e, ao cruzar o olhar comigo, me lança um sorriso — mais largo que o de costume, mas ainda assim contido.

— Bom dia, Clara. — Sua voz firme e tranquila me alcança, e seus olhos permanecem fixos em mim por poucos segundos, que mais parecem minutos.

Assinto, meio sem jeito, temendo que qualquer palavra soasse fora de lugar. Ela, percebendo meu embaraço, apenas mantém o sorriso e segue com passos seguros em direção ao que suponho ser o escritório. E eu fico ali, com um leve calor nas bochechas, como se tivesse sido pega no flagra de um pensamento bobo.

 

Ao ver o fraco movimento, adentrei mercado adentro entrando no galpão pegar algumas mercadorias para repor a frente de caixa, estava com alguns buracos, então decidir matar o tempo trabalhando.

 

Ao notar o fraco movimento, resolvi entrar no galpão para buscar algumas mercadorias e repor os espaços vazios na frente de caixa. Havia várias prateleiras com buracos, então achei que seria uma boa forma de matar o tempo e me manter ocupada.

Vejo o Augusto indo na mesma direção que eu, e percebo que junto comigo ele começa a pegar algumas mercadorias. 

Então pergunto a ele: - Essas caixas é para repor a sessão de café? - Ele com cara de poucos amigos apenas afirma com a cabeça. Então continuo - Se quiser reponho pra você, já que a sessão fica de frente para o meu caixa.

Ele me analisa e então em um tom duvidoso me pergunta - Oque você quer garota?

Te ajudar, ingrato. - Penso comigo - Já que seu Paulo não veio, como sei que hoje é Quinta-feira, alguém precisa repor a sessão de legumes.

 

Vejo Augusto indo na mesma direção que eu e, claro, começa a pegar mercadorias também. Coincidência ou não, parecia até que estávamos em sintonia — só que não.

 

— Essas caixas aí são pra repor a sessão de café? — pergunto, mesmo sabendo a resposta.

 

Ele só confirma com a cabeça, daquele jeito simpático de sempre, como se sorrir custasse caro.

 

— Se quiser, eu reponho pra você. A sessão é de frente pro meu caixa mesmo, não vai matar ninguém.

 

Ele me encara como se eu tivesse oferecido veneno, não ajuda.

 

— O que você quer, garota? — solta, desconfiado.

 

Te ajudar, ingrato, penso, rolando os olhos por dentro.

Mas tudo bem. Já que seu Paulo resolveu desaparecer justo numa quinta-feira — porque claro, quinta é dia de legumes:

  — alguém precisa fazer o trabalho pesado. E, adivinha? Sobrou pra você.

 

Ele me olha como se não esperasse a resposta. Meio surpreso, meio irritado — o que, no caso dele, é praticamente a mesma expressão. Aí, do jeito dele, solta:

 

— Só vou aceitar porque teu amiguinho hoje resolveu, por vingança, faltar… depois da demissão que levou.

 

Dou uma risada nasal, curta, quase irônica. Não porque achei engraçado — longe disso —, mas porque era mais fácil rir do que entrar nessa conversa.

 

Sem dizer mais nada, pego um carrinho, encaixo as caixas dentro dele com calma e começo a caminhar em direção à sessão, onde, como sempre, ninguém repõe nada.

 

Passei a manhã inteira repondo e limpando as prateleiras. Sem pressa, confesso. O movimento estava fraco e, pelo mês em que estamos, já era esperado — Caldas Novas praticamente esvazia fora de temporada.

 

“Caldas Novas…” — penso comigo — “Cheguei aqui e essa cidade me abraçou de um jeito estranho. Intenso. Não foi de uma vez, claro. Tiveram dias ruins, empresas péssimas, gente pior ainda… Mas a cidade em si? Um lugar cheio de oportunidades. Aqui, trabalho não falta. E tem mais — a cultura, as músicas de rua, os festivais espalhados pela cidade, e claro, as famosas águas termais.”

 

Na época, quando ouvi que era a única cidade do Brasil com águas quentes naturais, não dei muita bola. Achei que era só mais uma daquelas frases de panfleto turístico. Mas depois, com o tempo, entendi: essa cidade vive em cima dessas águas. Respira turismo, gira em torno disso. E mesmo eu, que nunca fui de mergulhar em nada, acabei ficando.

Sentada num banquinho meio torto, quase encaixada entre a gôndola e a prateleira de baixo, eu ia colocando os pacotes de café no lugar, quando escuto uma voz feminina me chamar logo atrás:

— Moça, você trabalha aqui?

Já vinha aquele impulso automático de revirar os olhos com esse tipo de pergunta — afinal, uniforme, crachá e tudo mais… Mas antes de qualquer reação, virei o rosto e... uau.

Uma mulher linda. Daquelas que fazem a gente até esquecer o que ia dizer. Cabelos castanhos claros, lisos e brilhosos, caindo com naturalidade até abaixo dos ombros. Trajava um vestido simples, mas elegante, e tinha um daqueles sorrisos que desarmam qualquer um.

Me levantei quase tropeçando no próprio pé, ajeitei a camiseta e respondi com um sorriso meio sem graça:

— Sim, sim, trabalho aqui. Você precisa de ajuda?

Naquele momento, não sabia se era o perfume dela ou o efeito colateral da cafeína dos pacotes que eu estava repondo… mas meu coração bateu meio torto.

— Na verdade, sim. — ela sorriu com doçura. — Estou procurando um café mais suave. Meu estômago não aguenta esses muito fortes. Você teria alguma sugestão?

Tentei disfarçar o nervosismo e a vontade de perguntar se ela queria o café ou meu número.

— Ah, claro, tem esse aqui — apontei para uma embalagem azul clara — ele é mais fraco, com torra média e sabor bem suave. A maioria dos clientes que gostam de algo mais leve costuma preferir ele.

Ela pegou o pacote, leu com atenção e comentou:

— Obrigada! Você tem um jeitinho calmo, é bom ser atendida assim. A maioria das pessoas só quer se livrar logo da gente.

Sorri meio boba. Até cogitei responder alguma gracinha, mas antes que minha coragem chegasse, ouvi o salto conhecido ecoando no piso encerado do mercado. Não demorou muito para Verônica surgir no corredor, como quem não queria nada — só que queria tudo.

— Clara — chamou meu nome com uma pontada de doçura forçada — você pode me ajudar com uma conferência de preços? Preciso disso pra agora.

Virei meio sem jeito, tentando disfarçar a decepção pelo corte abrupto na conversa. A moça bonita deu um sorrisinho educado para a Verônica, mas foi correspondida com um aceno quase imperceptível e nada simpático.

— Ah... claro, só um minuto. — respondi para a Verônica, e me virei para a cliente. — Qualquer coisa, pode me procurar, viu? Fico feliz em ajudar.

Ela agradeceu com o mesmo sorriso bonito e foi embora, enquanto eu seguia Verônica, que agora andava à frente com um silêncio ensaiado, quase barulhento.

— Algum problema com café? — perguntei, tentando quebrar o gelo.

— Nenhum — ela respondeu seca. — Só achei que você já tinha terminado essa reposição há tempos.

Era mentira. Ela sabia que ainda estava na metade. Mas a verdade é que ela não veio pelo café, e sim por algo que nem eu acreditava que nem ela ainda sabia explicar.

Segui Verônica pelos corredores em direção ao fundo, ainda sentindo o leve calor no rosto pela interrupção repentina. O salto dela ecoava com firmeza, e eu tentava acompanhar seu ritmo, mesmo sentindo o ar meio pesado entre nós.

Antes de chegarmos à porta do estoque, resolvi quebrar o silêncio.

— Só uma coisa... o caixa ficou sozinho, como a Ju hoje tá de folga... Talvez seja bom dar uma olhada nas câmeras, só por precaução. — falei com a voz controlada, tentando parecer neutra, embora soubesse exatamente o que eu estava tentando evitar.

Ela parou de andar, virando o rosto levemente para mim, o suficiente para lançar aquele olhar que dizia mais do que qualquer frase.

— A sua preocupação é com o caixa... — ela começou com calma, mas com um tom que já entregava o veneno vindo. — ...ou está mais preocupada em voltar correndo pra dar atenção à moça do café?

Travei. Por um instante fiquei sem saber se ria, se respondia, ou se fingia que não entendi a provocação. Mas ela entendeu meu silêncio antes mesmo de eu abrir a boca.

— Relaxa, Clara. Eu olho as câmeras. Vai que ela resolve procurar outra sugestão de café e se perde nos corredores — disse com um sorrisinho enviesado nos lábios, já virando de novo para seguir caminho.

Fiquei parada por um segundo, absorvendo a indireta mais direta que já tinha recebido dela. Suspirei e a segui em silêncio.

Talvez o mercado tivesse câmeras em todos os cantos, mas era impossível não notar quando alguém estava vigiando a gente bem de perto. E no caso da Verônica... a lente era mais pessoal do que profissional.

 Próxima página - O acaso a meu favor

Página 22

O acaso a meu favor - Página 20

 O acaso a meu favor - Página 20


Por Verônica...

Os convites para almoçar, partindo de mim, tornaram-se frequentes. Não por hábito social — disso eu sempre mantive distância —, mas porque, curiosamente, havia algo de confortável naquele intervalo ao lado de Clara. Entre um comentário espirituoso e outro, ela conseguia, nos dias em que não estava tão elétrica, arrancar de mim pequenas risadas, ou pelo menos um certo alívio. Por instantes, me distraía do desgaste constante que é tentar reerguer um mercado que todos já davam por morto. Era como se, naquele espaço de tempo medido, o peso das responsabilidades deslizasse para fora dos ombros, ainda que por pouco.

 

Hoje, Clara está de folga. E, embora eu raramente me permita admitir esse tipo de coisa, o mercado parece mais silencioso — não no sentido físico, mas como se faltasse uma frequência habitual no ar. Uma ausência quase irritante.

 

Cheguei cedo, mas já com a paciência por um fio. Há dias em que minha tolerância se esgota antes mesmo do café esfriar. Chamei os três colaboradores que, desde o início, demonstram maior resistência à nova gestão. Não houve discursos. Quando se sentaram diante de mim, fui clara, objetiva — como deve ser: informei o desligamento imediato. Sem rodeios, sem explicações longas. Quem não acompanha o ritmo, atrasa a marcha. E eu não vim até aqui para tolerar freios.

 

Hoje, além dos dois repositores, uma operadora de caixa também foi dispensada. Não por impulso — nunca é. Mas por acúmulo.

 

Desde o início, ela demonstrava pouco apreço pelo ofício. Os deslizes se repetiam: desatenção constante, o celular como extensão das mãos, até mesmo durante o atendimento. Quando o movimento do mercado caía — e, inevitavelmente, isso acontece — eu a observava permanecer imóvel, como se uma vassoura não fosse parte do seu posto, como se manter o espaço limpo fosse uma gentileza opcional.

 

Sua aparência, quase sempre desleixada, transmitia mais desleixo do que cansaço. E havia algo de provocativo no hábito de lixar as unhas atrás do caixa, como se estivesse no sofá de casa, e não em horário comercial sob minha supervisão.

 

Dei uma advertência verbal. Chamei para uma segunda conversa, tentando, ainda, buscar algum traço de compromisso. Na terceira ocorrência, não tolerei mais. Quem não soma, não multiplica — e este mercado não é abrigo para hábitos que atrasam o todo.

 

Além disso, sei que muitos — moças e rapazes — dariam tudo por uma vaga estável nesta cidade. Lamentavelmente, alguns confundem estabilidade com impunidade. E esse tipo de erro custa caro.

 

Ainda assim... apesar das decisões corretas, há algo estranho neste dia. Um incômodo sutil.

 Talvez seja só o eco da ausência de Clara — ou o silêncio que ela costumava, inadvertidamente, preencher.

 

Voltando a atenção aos ex funcionários a minha frente, vejo a expressão de surpresa e indignação tomar conta do rosto de um deles, que agora vem me confrontar por causa da minha decisão.

— Servi esse mercado por anos… — ele esbraveja. — Na época do seu pai, ajudei quando isso aqui não passava de um mercadinho de esquina barato. E é assim que você me agradece?

 

Meu olhar, já frio, se tornou ainda mais gélido. Tenho gratidão pelo tempo em que serviu ao meu pai com profissionalismo, sim. Mas não perdoo o modo como, mais tarde, aproveitou-se da gestão frouxa do meu irmão para disfarçar caprichos e deslizes como se fossem meros contratempos.

 

— Não acredito que está fazendo isso comigo, Verônica.

Inclinei levemente a cabeça, analisando cada palavra com a calma de quem não se deixa arrastar por sentimentalismos. Ele engoliu seco, mas continuou.

— Seu pai ele me considerava parte desse  mercado.  — Continua  — Fiz o que foi preciso, sacrifiquei fins de semana, abri mão de férias.

 

E de maneira cortante disse calculadamente.

 

— E em troca você se sentiu autorizado a contornar regras, manipular inventários e justificar gastos que não eram da empresa — rebati, cortante. — Isso não é lealdade. É conveniência.

Houve um momento em que ele pareceu diminuir de tamanho diante de mim. A arrogância se dissipava como o resto de dignidade no fundo de um copo quebrado. Meu silêncio final pesava mais do que qualquer grito.

 

— Cheguei aqui com o intuito de corrigir cada erro cometido pela minha família — disse, sem levantar a voz, olhando ainda pela janela.

 

Houve um instante de silêncio. Eu sabia que ele me ouvia, mesmo sem resposta.

 

— Mas você, junto de alguns colegas, se opôs a cada mudança que visava restaurar a integridade dessa empresa. Preferiram manter os erros como meio — continuou —, de disfarçadamente porem a culpa na desculpa de estarem apenas "fazendo o que sempre funcionou".

 

Virei-me lentamente, encontrando seu olhar.

 

— A verdade é que vocês estavam confortáveis demais com a desordem.

 

Ele não respondeu. Apenas baixou os olhos, como se, pela primeira vez, sentisse o peso da própria consciência. Mas arrependimento tardio não pesava na minha balança.

 

— Não vim aqui para agradar. Vim para corrigir.

Não dei margem para que a situação se prolongasse. Os dispensei com a mesma frieza com que uma lâmina corta um laço já desgastado — informei que havia trabalho a ser feito. E havia mesmo.

 

Retornei à minha mesa, organizei os papéis, respirei fundo. Era hora de fazer os anúncios das vagas que agora estavam abertas. Este mercado precisava de sangue novo — uma geração disposta a transformar o "novo" em oportunidade, em crescimento real. Pessoas que não vissem o cargo como um favor, mas como um campo fértil para despertar talentos adormecidos, para se aprimorarem através do desafio, e não da zona de conforto.

 

O passado, por mais que doa ou incomode, já tinha sido arquivado. Agora, eu construía o futuro — com alicerces firmes e gente capaz de sustentá-lo.

 

Pretendo oferecer bons benefícios àqueles que permanecerem e abraçarem as novas diretrizes, assim como aos novos integrantes que farão parte desta equipe a partir de agora. Quero deixar para trás o passado de uma empresa limitada, estagnada, e transformá-la em uma organização inovadora — onde o talento se destaca, independentemente do cargo.

 

Mesmo sendo apenas um mercado, meu objetivo é claro: expandir a rede o mais rápido possível. E para isso, precisarei de pessoas comprometidas, de futuros gerentes, de líderes em potencial. Quem estiver disposto a crescer junto, terá espaço e reconhecimento.

Próxima página - O acaso a meu favor

Página 21

O acaso a meu favor - Página 19

 O acaso a meu favor - Página 19

 

Por Clara...

 

Depois daquela cena em que peguei o Augusto esbravejando sobre a Verônica, fiquei com as antenas mais ligadas. Eu e ele nunca fomos exatamente próximos — respeitava por conveniência, pra ser sincera, ou talvez por medo mesmo. No dia seguinte, já entrou em vigor aquela nova regra do banco de horas. A Ju tinha feito umas horas extras no mercado e acabou ganhando três dias de folga. Sobrou pra mim cobrir, claro. Mas tudo bem, gosto de trabalhar sozinha. Antes eu cobria o turno completo.

 

 Agora, com a Verônica, tudo mudou: quem estiver cobrindo alguém de folga encerra o expediente três horas mais cedo. Fazendo assim o mercado fechar o mesmo horário que encerramos nossos expedientes. Confesso que não achei ruim, não. Nem a Ju.

 

A verdade é que, depois que ela chegou, o clima mudou. Não pra pior, nem pra melhor — só... diferente. Antes era tudo meio largado, cada um fazia do seu jeito e ninguém dizia muita coisa. Agora, ela aparece com uma pasta preta, uma caneta na mão e aquele olhar que atravessa a gente sem levantar a voz. Assusta? Um pouco. Mas funciona.

 

A gente começou a perceber que ela ouve mais do que fala, e quando fala, já vem com alguma coisa decidida. Sem rodeio. E não é que ela impõe as coisas no grito, tipo o Augusto. É no jeito. Dá uma sensação estranha, como se tudo tivesse que andar mais reto, mais limpo. 

 

Até o jeito da Ju mudou. No primeiro dia que voltou da folga, ficou mais quieta. E olha que fazer a Ju ficar quieta é feito raro. Só me disse um “a mulher é braba, mas justa”. Eu ri, claro. A Ju tem essas tiradas.

 

Já estava na hora de tirar meu intervalo. Duas horas inteiras, como a Verônica tinha determinado. Nem discuti. Augusto, com a cara amarrada de sempre, me lançou um “Vaza!” seco, daquele jeito que ele acha que impõe respeito. Só levantei as sobrancelhas e saí. Não pensei nem duas vezes.

 

Lá no fundo, me deu até vontade de responder algo do tipo “ordem da chefe, né?”, só pra cutucar. Mas deixei quieto. Tenho aprendido a escolher melhor onde gasto minha energia. E com o Augusto, a economia é certa.

 

 

Mal tinha virado o corredor em direção à salinha de descanso quando ouvi os passos ecoando atrás de mim. Precisos, firmes, daquele tipo que não corre, mas sempre chega. Nem precisei olhar: era a Verônica.

 

Tentei manter o ritmo normal, como se não tivesse notado. Mas, antes que alcançasse a porta, escutei:

 

— Clara.

 

Parei. Virei devagar, controlando a expressão. Ela estava a poucos passos, com as mãos juntas à frente, segurando a pasta preta que parecia extensão do corpo.

 

— Já almoçou? — perguntou. O tom era neutro, mas havia algo hesitante ali. Quase imperceptível.

 

— Ainda não. Acabei não trazendo comida hoje.

Disse de maneira envergonhada.

 

Ela fez um leve gesto com a cabeça, depois falou, sem mudar muito o rosto:

 

— Preparei algo em casa. Nada demais... Só que acabei fazendo demais, o suficiente para duas pessoas. Se quiser, pode comer comigo.

 

Demorei um segundo pra entender. a Verônica está me convidando para almoçar com ela?

 

— Está bem. — respondi, simples. Não era o tipo de convite que se recusa, mas também não era o tipo que se recebe todo dia. — Só vou deixar minhas coisas na salinha e já apareço lá.

 

— "Está bem." - Ela usou o mesmo tom que usei quando aceitei o convite, e saiu rindo.

 

Ela virou-se e foi andando no mesmo passo controlado de antes, como se não tivesse dito nada fora do comum. Mas disse.

 

Fiquei parada, olhando o corredor vazio. Respirei fundo, meio rindo por dentro. Que mulher difícil de decifrar. Mas confesso: fiquei curiosa.

 

Quando cheguei na sala do escritorio, ela já estava sentada na cadeira na pequena mesa do lugar, com os potes abertos e talheres no local. Nada chique: arroz branco, frango grelhado, legumes no vapor. Mas tudo arrumado com um cuidado que me chamou atenção. Ela parecia o tipo que não fazia nada pela metade — nem o almoço.

 

— Espero que goste de comida simples — disse, sem levantar o olhar. Estava mexendo num talher, como se aquilo fosse mais importante do que minha resposta.

 

— Já gostei de não precisar ficar sem almoçar — brinquei, puxando a cadeira ao lado.

 

Ela sorriu, quase imperceptível. Quase.

 

Sentamos em silêncio por alguns segundos. O som dos potes se abrindo, das colheres raspando o fundo, preenchia o ar. Era um silêncio confortável... ou pelo menos não incômodo.

 

O cheiro da comida ainda quente escapava das marmitas improvisadas sobre a mesa do escritório. Era um daqueles almoços silenciosos, meio apressados, meio resignados, que faziam parte da rotina do mercado. Eu me sentei diante de Verônica, sentindo a presença dela pesar no ar — não como algo opressor, mas como se cada gesto da mulher fosse sempre milimetricamente calculado, até no modo como mexia o garfo ou observava o ambiente ao redor.

 

Foi Verônica quem falou primeiro, sem levantar os olhos do prato.

 

— Você já pensou em como seria ter uma cozinha aqui dentro?

 

 Erguir os olhos, surpresa.

— Cozinha? Aqui no mercado?

 

Verônica assentiu, como se fosse algo óbvio.

— Sim. Nada muito elaborado. Só o suficiente pra garantir uma comida decente no meio do dia. Pra vocês. Pra mim também, se quiser saber. Essas marmitas são uma tortura.

 

Acabei soltando uma risada curta, mais de nervoso do que de graça. Demorou alguns segundos antes de responder.

 

— Eu... sinceramente achei que isso não fosse acontecer.

 

Verônica ergueu o olhar, curiosa, mas sem cobrança.

— O quê?

 

— As mudanças. Tudo isso. Quando você chegou... toda séria, falando difícil, reorganizando tudo como quem redesenha um campo de batalha... eu pensei: "ela vai passar o rolo por cima da gente e fingir que melhorou".  -  Acabei desabafando.

 

Verônica não pareceu ofendida. Apenas recostou levemente na cadeira e escutou.

 

— A gente já ouviu tanta promessa, sabe? — continuei, sentindo as palavras escaparem com uma franqueza que nem eu mesma esperava. — “Agora vai ser diferente”, “Estamos pensando nos funcionários”... Só discurso. No fim, continua tudo igual. Lanche frio, micro-ondas enguiçado e a gente comendo em pé entre uma entrega e outra.

 

Verônica cruzou os braços, os olhos fixos em mim, sérios mas não duros.

— Eu não vim aqui pra fingir, Clara. Não atravessei fronteira, nem deixei a minha vida antiga pra fazer teatrinho de liderança. Se eu disser que vai ter cozinha, vai ter. E não é só por bondade. Gente alimentada trabalha melhor. Mas também... gente respeitada trabalha com mais verdade.

 

Senti um calor estranho no peito. Algo entre a surpresa e a sensação de que, pela primeira vez em muito tempo, alguém estava mesmo olhando para nós.

 

— Você é diferente — digo, quase num sussurro. — No começo eu achei que isso fosse ruim. Hoje... já não sei.

 

Verônica sorriu. Pouco, mas o suficiente pra quebrar o gelo.

— Talvez eu seja mesmo. E talvez você também.

 

 Franzo a testa, sem entender.

— Eu?

 

— Mesmo achando que nada ia mudar, você ficou. Tem gente que só continua quando ainda guarda uma pontinha de esperança. Mesmo que não admita.

 

A resposta ficou presa na minha garganta. Ao invés disso, voltei os olhos para o prato e continuei a comer, sentindo que algo — bem pequeno, mas firme — se movia dentro de mim. Talvez fosse só fome. Talvez fosse o começo de alguma coisa nova.

Próxima página - O acaso a meu favor

Página 20

O acaso a meu favor - Página 18

O acaso a meu favor - Página 18

Por Verônica... 

 

Ao sair daquele mercado, meus passos firmes ecoaram pela calçada — frios como meu pensamento constante. Fui direto para casa. Meu irmão e a noiva acharam prudente tirar alguns dias para descansar, e eu garanti, sem hesitação, que poderiam me deixar sozinha. Eu lidaria com tudo.

 

Mesmo distante, não me permito deixar a empresa em San Diego fora do meu controle. Ana, minha assistente de confiança, me atualiza diariamente. Crescimentos, quedas, projeções... tudo chega até mim com precisão cirúrgica. É assim que eu opero. Nada escapa ao meu domínio.

 

Ao chegar em casa, meu trabalho agora se concentra no antigo escritório do meu pai. Um cômodo pesado, impregnado de memórias que não me dizem respeito — o passado dele não interfere no que vim fazer aqui.

 

Analiso alguns relatórios sobre funcionários que, mesmo após todas as mudanças que implementei, continuam resistindo às novas diretrizes da gestão. Alguns, claramente, não têm capacidade de adaptação. Outros, talvez, apenas se sentem ameaçados por uma liderança que não lhes dá espaço para mediocridade.

 

É impressionante como o ser humano é difícil de agradar. Reduzi a carga horária, redistribuí funções com clareza, dei responsabilidades individuais justamente para evitar a sobrecarga coletiva — uma estrutura pensada para eficiência. Ainda assim, há quem prefira o caos à ordem, a confusão à disciplina. Estão agindo como peças soltas... e peças soltas ou se ajustam, ou são descartadas.

 

Faço anotações mentais enquanto leio os relatórios. Alguns nomes já me são recorrentes. Vejo padrões — atrasos disfarçados de imprevistos, falhas operacionais mascaradas por desculpas emocionais. O sentimentalismo é uma praga silenciosa nos negócios. Meu pai foi vítima disso por tempo demais. Foi assim que essa empresa quase afundou: confundindo gentileza com gestão.

 

Fecho a pasta com um estalo seco. Amanhã, três dessas pessoas serão chamadas para conversar. E se não apresentarem algo sólido, sairão pela mesma porta por onde entraram. Aqui não há espaço para quem sobrevive apenas por pena.

 

Levanto-me e caminho pelo escritório. A janela antiga ainda range ao abrir. Lá fora, a noite está densa, silenciosa, como se soubesse que algo está para mudar. E está. Eu não atravessei fronteiras, não abandonei minha vida confortável em San Diego para brincar de empresária de província. Vim para reconstruir — e, se necessário, demolir tudo antes.

 

Meu irmão não sabe o peso das decisões que estou tomando em nome da família. Ele confia em mim, cego pela familiaridade. Mas eu não me guio por sangue, me guio por resultado. E o que precisa ser feito… será feito. Com precisão. Sem remorso.

 

Por algum motivo estranho, penso em Clara. Sempre tão contida, tão correta... até aquele episódio patético — e, por alguma razão, quase cômico — na sessão de sucrilhos do mercado. Tudo aconteceu rápido demais: lembro de uma caixa fora do lugar, meu salto deslizando no papelão amassado, e o súbito desequilíbrio. Tentei me firmar, mas acabei puxando Clara junto, e as duas fomos ao chão, entre pacotes de cereais e aquele cheiro artificial de milho adocicado. A imagem ainda vem em flashes desorganizados — o estalo do salto, seu olhar surpreso, nossos corpos batendo no chão com um impacto seco, e o silêncio ridículo que pairou antes de uma gargalhada contida escapar dela... e, contra toda lógica, quase de mim também.

 

Foi vergonhoso, claro. Mas houve algo ali — talvez a quebra do meu controle habitual, talvez o toque involuntário de sua mão no meu braço — que não me incomoda lembrar. Pelo contrário. Há uma estranha leveza nesse momento, como se o mundo, por alguns segundos, tivesse saído do eixo de forma gentil. Ainda não entendo por que essa memória insiste em me visitar. Mas quando ela vem, não a expulso. Apenas deixo que fique… por um instante breve, antes de voltar ao que importa.

 

 

A pequena discussão com Augusto não passará em branco. Ele acredita que seu tom altivo e sua postura de “insubstituível” o blindam. Ledo engano. Estou observando sua forma de administrar há tempo suficiente para conhecer cada falha que ele tenta mascarar com segurança artificial. Seu jeito pretensioso de se portar — como se o setor dependesse exclusivamente de sua presença — me causa náuseas. Ele se esquece de que a lealdade que o sustentava vinha do meu pai, não de mim.

 

Infelizmente, ainda não posso demiti-lo. É o gerente, e por enquanto seria imprudente abrir uma brecha administrativa neste momento de transição. Mas sua permanência é temporária. Uma peça instável pode ser útil em certas jogadas, mas nunca se mantém no tabuleiro por muito tempo. Estou apenas aguardando o movimento certo — e quando vier, Augusto cairá com a mesma frieza que ele subestima em mim.

 

Ele acredita que tenho outras prioridades, que estou distraída com números e reformas. Ele não percebe que observo — em silêncio, sim, mas não com passividade. Há um tipo de controle mais poderoso do que o grito: aquele que se impõe sem precisar ser anunciado.

 Próxima página - O acaso a meu favor

Página 19

O acaso a meu favor - Página 74

  Continuação — O beijo… por Verônica O “quase” entre nossas bocas dura longos segundos — segundos que esticam o mundo, que dilatam o ar ao...