quarta-feira, 25 de junho de 2025

O acaso a meu favor - Página 18

O acaso a meu favor - Página 18

Por Verônica... 

 

Ao sair daquele mercado, meus passos firmes ecoaram pela calçada — frios como meu pensamento constante. Fui direto para casa. Meu irmão e a noiva acharam prudente tirar alguns dias para descansar, e eu garanti, sem hesitação, que poderiam me deixar sozinha. Eu lidaria com tudo.

 

Mesmo distante, não me permito deixar a empresa em San Diego fora do meu controle. Ana, minha assistente de confiança, me atualiza diariamente. Crescimentos, quedas, projeções... tudo chega até mim com precisão cirúrgica. É assim que eu opero. Nada escapa ao meu domínio.

 

Ao chegar em casa, meu trabalho agora se concentra no antigo escritório do meu pai. Um cômodo pesado, impregnado de memórias que não me dizem respeito — o passado dele não interfere no que vim fazer aqui.

 

Analiso alguns relatórios sobre funcionários que, mesmo após todas as mudanças que implementei, continuam resistindo às novas diretrizes da gestão. Alguns, claramente, não têm capacidade de adaptação. Outros, talvez, apenas se sentem ameaçados por uma liderança que não lhes dá espaço para mediocridade.

 

É impressionante como o ser humano é difícil de agradar. Reduzi a carga horária, redistribuí funções com clareza, dei responsabilidades individuais justamente para evitar a sobrecarga coletiva — uma estrutura pensada para eficiência. Ainda assim, há quem prefira o caos à ordem, a confusão à disciplina. Estão agindo como peças soltas... e peças soltas ou se ajustam, ou são descartadas.

 

Faço anotações mentais enquanto leio os relatórios. Alguns nomes já me são recorrentes. Vejo padrões — atrasos disfarçados de imprevistos, falhas operacionais mascaradas por desculpas emocionais. O sentimentalismo é uma praga silenciosa nos negócios. Meu pai foi vítima disso por tempo demais. Foi assim que essa empresa quase afundou: confundindo gentileza com gestão.

 

Fecho a pasta com um estalo seco. Amanhã, três dessas pessoas serão chamadas para conversar. E se não apresentarem algo sólido, sairão pela mesma porta por onde entraram. Aqui não há espaço para quem sobrevive apenas por pena.

 

Levanto-me e caminho pelo escritório. A janela antiga ainda range ao abrir. Lá fora, a noite está densa, silenciosa, como se soubesse que algo está para mudar. E está. Eu não atravessei fronteiras, não abandonei minha vida confortável em San Diego para brincar de empresária de província. Vim para reconstruir — e, se necessário, demolir tudo antes.

 

Meu irmão não sabe o peso das decisões que estou tomando em nome da família. Ele confia em mim, cego pela familiaridade. Mas eu não me guio por sangue, me guio por resultado. E o que precisa ser feito… será feito. Com precisão. Sem remorso.

 

Por algum motivo estranho, penso em Clara. Sempre tão contida, tão correta... até aquele episódio patético — e, por alguma razão, quase cômico — na sessão de sucrilhos do mercado. Tudo aconteceu rápido demais: lembro de uma caixa fora do lugar, meu salto deslizando no papelão amassado, e o súbito desequilíbrio. Tentei me firmar, mas acabei puxando Clara junto, e as duas fomos ao chão, entre pacotes de cereais e aquele cheiro artificial de milho adocicado. A imagem ainda vem em flashes desorganizados — o estalo do salto, seu olhar surpreso, nossos corpos batendo no chão com um impacto seco, e o silêncio ridículo que pairou antes de uma gargalhada contida escapar dela... e, contra toda lógica, quase de mim também.

 

Foi vergonhoso, claro. Mas houve algo ali — talvez a quebra do meu controle habitual, talvez o toque involuntário de sua mão no meu braço — que não me incomoda lembrar. Pelo contrário. Há uma estranha leveza nesse momento, como se o mundo, por alguns segundos, tivesse saído do eixo de forma gentil. Ainda não entendo por que essa memória insiste em me visitar. Mas quando ela vem, não a expulso. Apenas deixo que fique… por um instante breve, antes de voltar ao que importa.

 

 

A pequena discussão com Augusto não passará em branco. Ele acredita que seu tom altivo e sua postura de “insubstituível” o blindam. Ledo engano. Estou observando sua forma de administrar há tempo suficiente para conhecer cada falha que ele tenta mascarar com segurança artificial. Seu jeito pretensioso de se portar — como se o setor dependesse exclusivamente de sua presença — me causa náuseas. Ele se esquece de que a lealdade que o sustentava vinha do meu pai, não de mim.

 

Infelizmente, ainda não posso demiti-lo. É o gerente, e por enquanto seria imprudente abrir uma brecha administrativa neste momento de transição. Mas sua permanência é temporária. Uma peça instável pode ser útil em certas jogadas, mas nunca se mantém no tabuleiro por muito tempo. Estou apenas aguardando o movimento certo — e quando vier, Augusto cairá com a mesma frieza que ele subestima em mim.

 

Ele acredita que tenho outras prioridades, que estou distraída com números e reformas. Ele não percebe que observo — em silêncio, sim, mas não com passividade. Há um tipo de controle mais poderoso do que o grito: aquele que se impõe sem precisar ser anunciado.

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