Por Clara....
Despertador tocando, Bento e eu nos espreguiçando juntos — ele com aquele ar de rei preguiçoso, eu tentando reunir forças para levantar. A realidade bate forte na nossa cara, mas graças a Deus tenho um emprego para ir. Pego o celular, olho a tela e não vejo só as horas, mas a data também: vinte e sete de junho. Logo logo, ao virarmos a página para julho, aquele mercado vai ferver. A famosa alta temporada de Caldas chegando, trazendo movimento, gente de todo canto, e junto, a correria dobrada. “Por quê?”, alguns sempre perguntam. A resposta é simples: por causa das águas termais da cidade. E detalhe — termais de verdade, quentinhas, uma riqueza daquelas que atrai milhares de pessoas de todos os lados do país.
Minha rotina de todos os dias é quase um ritual sagrado. Primeiro, a caixa de areia do Bento — prioridade absoluta. Depois, encho o potinho de ração, troco a água e ganho aquele olhar de aprovação felina, como se eu tivesse passado no teste diário de “boa tutora”. Antes de sair, claro, um beijo no meu peludo, porque ele merece mais do que eu. Só então sigo para o banho.
Hoje decidi deixar os cabelos soltos. O bom do meu charme enrolado é que, mesmo quando eu olho no espelho e acho que estão bagunçados, todo mundo insiste em dizer que parece que passei horas arrumando. Bobinhos. Se soubessem que é só deixar secar ao natural... mas confesso, eu adoro o mistério que isso cria.
Já aconteceu com vocês isso? Passar horas lavando, hidratando, cuidando com todo amor e paciência do mundo… e o cabelo simplesmente não colaborar, sair com aquele resultado mais ou menos, sem graça? Agora, basta eu deixar ele ali três dias, sem uma gota de creme ou hidratação, e quando finalmente resolvo dar um jeito meia boca… pronto! Ele resolve ficar perfeito, como se tivesse sido tratado em salão de luxo. Eu fico entre a gratidão e a indignação, confesso. Mas fazer o quê, né? É o que temos, senhores.
Saindo de casa e deixando tudo em ordem, sigo meu caminho de todos os dias rumo ao mercado. Por mais rotina que seja, nunca me canso de levantar os olhos e ver os casais de araras-azuis cobrindo o céu de Caldas. É quase uma pintura viva, uma cena que me arranca suspiros mesmo quando estou atrasada. É raro ver uma delas sozinha, estão sempre em dupla, como se uma completasse a outra. Só que, vou ser sincera, o barulho que fazem logo cedo não combina em nada com a beleza que carregam. Parece até briga de vizinhos de apartamento.
Chegando em frente ao mercado, percebo que ainda estou dez minutos adiantada. Aproveito para abrir a tela do celular e me atualizar da escala que a Verônica mandou na noite anterior. Estou tão concentrada nos nomes e horários que quase não percebo uma moto parar ali na lateral do supermercado.
Um rapaz alto, de pele parda e cabelos ondulados, desce ajustando o capacete no braço. O cabelo ondulado caindo um pouco sobre a testa dá a ele um ar despreocupado. Vem em minha direção e, com um sorriso meio educado, meio tímido, pergunta:
— Você trabalha aqui, moça?
Levanto os olhos, o analiso rápido — nada ameaçador, parecia mais curioso do que qualquer outra coisa — e, de forma empática, respondo:
— Sim, trabalho aqui. O mercado vai abrir daqui alguns minutos.
Ele assente, olhando em volta como quem mede o lugar pela primeira vez.
Quando menos percebo ele se acomoda a alguns centímetros de mim e isso já me deixa em alerta.Ele se aproxima, ajeitando o capacete no braço.
— Então, me diz uma coisa… aqui o movimento é forte mesmo na temporada?
Eu arqueando a sobrancelha o pergunto sem cerimonia: — É, mas por que a entrevista tá acontecendo comigo? Você é do RH disfarçado?
Ele ri, levantando as mãos como se se entregasse: — Calma, moça. Só tô curioso. É que… acho que vou trabalhar aqui também.
— Trabalhar? Aqui? — faço uma cara de espanto, mas meio desconfiada — Tá de brincadeira.
— Verdade. Sou o novo açougueiro.
Ao ouvir oque me disse cruzo os braços e fingi avaliá-lo de cima a baixo: — Hum… açougueiro? Você tem cara mais de quem estraga carne do que corta.
Ao ouvir oque saiu de mim, ele coloca a mão no peito fingindo estar ofendido: — Olha, isso dói, viu? Eu trato as peças de carne melhor do que muita gente trata as pessoas.
Eu já começando cair na brincadeira dou uma risada, balançando a cabeça: — Se for verdade, acho que vamos dar conta de trabalhar juntos. Mas vou ficar de olho.
Ele me olhando com uma falsa cara de poucos amigos me responde:
— Pode ficar. Mas cuidado, viu? Se você pisar na bola, corto seu monitoramento em bifes!
Ambos acabam rindo, quebrando a tensão do primeiro contato.
Quando menos percebemos, uma caminhonete muito conhecida estaciona ao lado do mercado. Era a caminhonete do Igor. Logo em seguida, eu e o... bem, não cheguei a perguntar o nome dele, nos ajeitamos. Pouco depois, chega também o Augusto.
Vejo o Igor e a Verônica descerem da caminhonete e, no instante em que meus olhos se cruzam com a beleza daquela mulher, sinto não apenas meu coração bater em falso, mas também as pernas fraquejarem. Ela, com aquele olhar sério e os cabelos impecavelmente ondulados caindo até os ombros... Não resisti e desviei o olhar, tentando evitar que a situação soasse ainda mais estranha do que já estava.
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