Continuação por Clara...
Como hoje a Verônica mesma mandou mensagem retribuindo o favor de ontem com uma folga, decidi que vou aproveitar o dia para colocar a casa em ordem e levar o Bentinho no veterinário. Preciso aproveitar esse raro momento de calma — se fosse pelo Augusto, ele com certeza arranjaria uma desculpa qualquer para me puxar pro turno da tarde. Só de pirraça. Mesmo sem necessidade. Só pelo prazer de mandar.
Mas hoje não. Hoje é meu. E do Bento.
Ele está ali agora, se espreguiçando todo, com a língua pra fora e aquele ar de quem acha que é dono do mundo. Eu não discuto. Ele manda mesmo.
A cada três meses, como orientação da Dra. Laís, o levo para os exames de controle. Desde aquela crise... eu nunca mais fui a mesma.
A obstrução urinária foi um susto que não desejo pra ninguém. Um ano atrás, eu nem percebi. Estava tão atolada no trabalho, tão imersa em sobreviver e dar conta de tudo, que simplesmente... não vi.
Não vi que ele bebia menos água.
Não vi que evitava a caixinha de areia.
Não vi o sangue.
Não vi o olhar apagado dele.
Fui perceber quando já era tarde demais.
Me lembro perfeitamente daquela madrugada. Bento gemia de dor e eu, em pânico, ligava pra todos os números de emergência possíveis. Quando a Dra. Laís atendeu, parecia que uma parte do desespero tinha se dissolvido só de ouvir a voz calma dela do outro lado da linha.
Ela me recebeu de moletom e cabelo preso, olhos inchados de sono, mas coração enorme.
Não me julgou. Não reclamou.
Simplesmente cuidou.
Fiquei sentada naquela cadeira desconfortável da recepção, com a alma em pedaços, achando que ia perder meu melhor amigo.
Meu companheiro de todas as horas.
O meu pequeno herói matador de baratas que me acompanha até no banheiro em sinônimo de segurança — Começo a rir com a lembrança da cena, pois mesmo ele se esfarelando de sono, se eu levanto na madrugada nem que seja para tomar uma água, lá está ele atrás de mim como uma sombra.
O mesmo gato que se aninha em mim nos dias tristes e que nunca pediu nada além de carinho e atenção — e que eu falhei em dar.
Me culpei tanto...
Me senti um monstro.
Mas Bento sobreviveu. Com força, teimosia e um miado rouco de quem ainda tinha muito o que viver.
Desde então, não descuido mais.
Hoje ele vai ao veterinário, vai receber carinho da Dra. Laís e, quem sabe, até ganhar um petisco — ou dois, se fizer aquele olhar pidão.
E eu... vou respirar. Vou cuidar dele. E cuidar de mim também.
Porque cuidar do Bento, de alguma forma, me lembra que eu também mereço ser cuidada. Mesmo que eu demore a aceitar isso.
Organizei a casa por cima, só o suficiente pra não sentir culpa na volta. Coloquei água fresca na planta da cozinha, troquei os panos, abri as janelas. O Bentinho me seguiu em silêncio por alguns cômodos, como quem supervisiona, mas sempre de um jeito charmoso e desatento, pulando nos móveis como se estivesse me ajudando.
Peguei a caixa de transporte no armário alto, e só o barulho dela sendo colocada no chão já fez ele se encolher todo.
— Ei, mocinho, nada de drama hoje — falei com a voz mansa, enquanto colocava uma mantinha limpa no fundo.
Com um pouco de conversa e dois sachês de chantagem, ele entrou sem brigar.
Chamei o nosso transporte pelo aplicativo e seguimos viagem caminho até a clínica. O rádio do carro tocava uma música leve, e o tempo nublado deixava a cidade com uma cara meio nostálgica, meio bonita. Em cada farol, eu olhava para o lado e falava alguma coisa com ele.
— Dessa vez é só exame, viu? Sem cateter, sem hospitalização. Palavra de honra. — Dizia olhando para ele na caixinha de transporte.
Chegando na clínica, a recepcionista sorriu assim que me viu.
— Oi, Clara! Trouxe o reizinho hoje?
— Ele mesmo — respondi, sorrindo ao levantar a caixa de transporte. — Veio só dar o ar da graça.
Enquanto esperava, reparei como a recepção da Dra. Laís sempre tinha cheiro de lavanda e café. Um espaço pequeno, mas aconchegante. Um daqueles lugares onde até a espera parece gentil.
Quando a porta da sala de atendimento se abriu, o rosto da Dra. Laís surgiu com aquele mesmo sorriso afetuoso de sempre.
— E aí, Bento! Já fez drama ou deixou pra cá?
— Hoje foi bonzinho... mais ou menos — disse, colocando a caixa na mesa de exame. — Mas ele sabe que aqui tem petisco escondido, então não reclama muito.
Ela o examinou com cuidado, como se estivesse manuseando porcelana rara. Conversava com ele em voz baixa, como se fossem velhos amigos. E, em algum ponto, ela parou de falar com o gato e se virou pra mim:
— Sabe, Clara... ele tá bem. Muito bem, aliás. Os exames vieram ótimos. Você tem feito tudo certo.
Sorri. Mas não conseguir disfarçar minha insegurança.
— Obrigada... — respondi num sussurro. — Eu sempre acho que posso estar esquecendo alguma coisa, sabe?
Ela assentiu.
— Nós que temos muito amor por um serzinho com o olhar tão maroto assim...— Disse de uma maneira que me fez rir. — sempre achamos isso.
E foi ali que percebi: há pessoas que cuidam de bichos, e há outras que cuidam da gente também, mesmo sem dizer diretamente. A Dra. Laís era uma dessas.
Pagamos, pegamos os exames impressos e, antes de sair, ela ainda me chamou:
— Ah, Clara... diga pro Bentinho que ele é um dos meus pacientes preferidos.
— Pode deixar. Mas acredito que ele já sabe. — Digo levantando a gaiola e o encarando através da grade.
No caminho de volta, Bentinho dormia no banco do passageiro, ronronando baixinho.
E eu... me sentia em paz.
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