domingo, 5 de outubro de 2025

O acaso a meu favor - Página 60

Por Clara...

Não acredito que me distraí com meus pensamentos malucos e quase fui pega justamente pela causadora do meu embaraço. Ela ali, toda séria e concentrada, explicando nossas funções… e eu? Me perdi na beleza daquela mulher. Admito: quando fizeram essa criatura, quebraram a forma. É tanta beleza que Deus proibiu ter cópia. Não é justo com o resto da humanidade!

— Meu Deus, o que está havendo comigo?

Saí do meu mini vexame tentando parecer a pessoa mais normal do planeta. Peguei um copo de café, respirei fundo e fui direto para o que me designaram. Logo entendi por que me colocaram para ajudar na reposição dos frios e das bandejinhas de carne: até que o tal açougueiro tem mãos habilidosas… e um cuidado quase artístico com cada corte.

— É, bem que você disse que sabia cortar um bife bonito. — falei num tom de falsa provocação, só para quebrar o silêncio.

— Te disse… — ele respondeu com aquele ar superior de quem tem certeza absoluta de que nasceu para aquilo.

Revirei os olhos, mas logo desabei numa risadinha. Entre bandejas de mussarela, presunto, almôndegas bem organizadas e carnes embaladas a vácuo, a manhã foi passando num misto de trabalho e brincadeiras. A cada nova bandeja encaixada, parecia que estávamos montando uma vitrine de supermercado versão comédia romântica.

Eu tinha a nítida sensação de que os olhos de Verônica estavam sobre mim o tempo todo. Talvez fosse só coisa da minha cabeça… ou talvez ela estivesse mesmo conferindo se eu conseguia empilhar mussarela sem transformar tudo em um desastre.

Mas sério, ninguém precisa olhar tanto assim pra quem está só tentando não derrubar presunto, né?

E lá estava ela, toda concentrada e elegante, explicando detalhes que eu nunca teria imaginado sobre carnes e embutidos. Eu tentava me focar no trabalho, mas era impossível não notar: o jeito sério dela, o cuidado com cada bandeja… até parecia que o mundo parava um instante enquanto ela ajeitava uma almôndega.

Ótimo, Clara, agora além de atrapalhada, você também está suspirando mentalmente por alguém que provavelmente nem percebe que você existe.

Em alguns momentos, quando eu retribuía as brincadeiras do Bruno, sentia os olhos de Verônica me fuzilando de um jeito quase imperceptível. Quase.

Eu conhecia aquele olhar… ou pelo menos achava que conhecia. Aquele tipo de olhar que dizia: “Essa proximidade com ele, não está me agradando nem um pouco”. E, confesso, não era exatamente o tipo de reprovação que me deixava nervosa — era mais um friozinho estranho no estômago, misto de diversão e… algo que fazia meu coração bater mais rápido do que deveria.

Percebi que, de vez em quando, Verônica vinha até mim, me ajudando a organizar melhor as bandejas. Mas era sempre para cortar ou interromper as brincadeiras do Bruno comigo. Confesso que, no fundo, comecei a acreditar que ela estava com ciúmes da nossa aproximação repentina.

E que ciúmes adoráveis, pensei, tentando disfarçar o rubor subindo.

Sou muito fácil de fazer amizade. Converso com qualquer pessoa, mesmo que a conheça há poucas horas, como se a conhecesse há anos. Nem todo mundo entende isso, e muitas vezes acaba julgando mal — tanto quem está de fora quanto a pessoa com quem estou falando.

— Assim está bom? — perguntei a ela, com um fio de receio na voz, tentando não parecer desesperada por aprovação.

— Está muito bom. Está fazendo um bom trabalho. — Ela respondeu de maneira simples, quase sem empolgação, mas, juro, havia algo no jeito que disse isso que fez meu coração pular uma batida.

Ok, Clara, para de fantasiar… mas, sério, esse “muito bom” tem cheiro de ciúmes, não tem?

Espantei meus pensamentos e desci as escadas, encerrando de vez meu trabalho. Ao pisar no último degrau, um burburinho animado ecoou da entrada do mercado.

Não dei tanta atenção de início — afinal, por aqui sempre circulam pessoas de todos os tipos: das mais alegres às mais estressadas. Ainda assim, havia algo diferente naquela agitação, como se o ar carregasse uma expectativa incomum.


Verônica estava orientando Augusto em alguma ordem; ele já segurava o capacete e a chave da moto com firmeza. Aqui, na cidade de Caldas, é comum ver as pessoas circulando de moto em vez de carro. O ronco dos motores quase faz parte da paisagem, como se fosse a trilha sonora diária da cidade.

Observo enquanto ela entrega alguns papéis a ele e, em seguida, se afasta. Eu já me preparava para mergulhar de novo no silêncio do mercado, quando, de repente, meu nome ecoa pelo ar — tão carregado de saudade e entusiasmo que sinto um arrepio percorrer minha pele.


— E então, dona Clara... — viro-me, quase sem fôlego, em direção àquela voz que reconheceria em qualquer lugar. Meu coração dispara, como se cada batida fosse uma lembrança se impondo contra o presente. — Vou poder te levar embora para Brasília?


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