Continuação por Clara...
Assim que começou a dar o horário da Juliana entrar, comecei a agilizar meu caixa. Já sei que ela não é muito de chegar antes, então preferi ir organizando tudo para não deixar acúmulo. O mercado estava mais leve naquele momento — talvez por causa do silêncio temporário do Augusto, que tinha saído para o intervalo. Sempre tive esse tipo de percepção… ou análise, como gosto de chamar. E ali, sozinha com meus pensamentos, ela voltou com força.
Percebi, não de hoje, que por mais que a Juliana já tenha pisado na bola várias vezes por aqui, nunca vi o Augusto repreendê-la do jeito que costuma fazer comigo. Nunca uma voz mais alta, uma cobrança incisiva, muito menos uma advertência por escrito — mesmo depois de faltar por dias seguidos. E não é ciúme, nem vitimismo. É observação. Porque quando é comigo, basta um erro pequeno para ele jogar o peso do mundo sobre minhas costas, como se eu tivesse uma dívida constante a pagar.
Não entendo. Ou talvez entenda sim. Mas não gosto nem de pensar. Há algo ali, nas entrelinhas do tratamento, que incomoda — um tipo de diferença que ninguém diz em voz alta, mas que machuca por dentro. E nesse momento, entre um caixa fechado e outro abrindo, o que mais me bate é a sensação de injustiça silenciosa. Daquelas que não aparecem nos relatórios nem nos murais da empresa. Mas que se acumulam, dia após dia, dentro da gente. E com esse pensamentos, vejo Verônica saindo de algum lugar dos corredores e só depois, percebo que ela estava me observando.
Verônica apareceu na porta do estoque com a prancheta na mão e aquele olhar de quem enxerga tudo sem dizer de imediato. Encostei no balcão do caixa, fingindo que conferia os valores no visor, mas a verdade é que minha cabeça já não estava mais ali. Quando ela se aproximou, percebi que meus ombros estavam tensos demais. E foi aí que ela falou, baixo, como quem não queria invadir:
— Tá tudo certo com você?
Pensei em dizer que sim. Que era só mais um dia corrido. Mas meu silêncio durou mais do que devia, e Verônica, com aquela sensibilidade escondida por trás da firmeza, só me olhou. Me vi abrindo a guarda sem perceber.
— É que às vezes parece que o peso aqui dentro não é dividido igual, sabe?
Ela franziu o cenho, mas não respondeu de imediato. Esperei uns segundos, e continuei:
— A Juliana some dois, três dias, e nada. Nenhuma cobrança, nenhum olhar atravessado. Já eu… se deixo passar uma vírgula, o Augusto já vem com sermão, tom, e aquela pose de quem tá sempre certo. Eu só não entendo. Ou talvez entenda, mas... enfim.
Verônica apoiou a prancheta no balcão, ficou em silêncio por alguns segundos e disse, com uma calma que me desarmou:
— Eu já percebi também. E não pense que está passando despercebido. Só tenho sido estratégica sobre quando e como agir. Porque, às vezes, corrigir algo na frente de todo mundo só muda a aparência. Eu quero que mude a estrutura.
Aquilo me pegou desprevenida. A firmeza dela em silêncio, a forma como vinha observando tudo sem interferir com pressa. Me senti, pela primeira vez em muito tempo, validada. Como se alguém visse, de verdade, aquilo que vinha me corroendo por dentro.
— Obrigada por me dizer isso — falei, quase num sussurro.
Ela apenas assentiu, com aquele olhar sério que guarda tanta coisa, e antes de voltar ao estoque, ainda completou:
— Você não está sozinha aqui, Clara. E ninguém vai te fazer acreditar no contrário.
Ao ouvir aquilo de Verônica — aquela frase direta, firme e cheia de algo que me abraçou por dentro — não sei se me conforta ou me assusta.
Porque sim, é um alívio imenso saber que ela enxerga, que ela está atenta às falhas que se escondem por trás das hierarquias e da rotina. É bom sentir que não estou sozinha nessa sensação de injustiça que engulo há tanto tempo. Mas, ao mesmo tempo… há um medo que se pendura em mim. Um medo sutil, mas presente.
Tenho receio de como os outros enxergam nossa proximidade. Já ouvi os cochichos, os olhares de canto, os risos abafados quando ela me chama para conversar na sala dela ou quando nossas trocas de palavras vêm com uma naturalidade que não exige esforço. A maioria não entende. Ou não quer entender. E aí surge a ideia venenosa: de que estou me beneficiando. Que estou "tirando casquinha". Que me aproximei dela por interesse.
Mas o que mais me assusta… é a possibilidade de um dia ela mesma pensar isso. De que, por mais que hoje nossos silêncios se entendam, por mais que haja uma conexão que nenhum papel explica, algum detalhe, alguma interpretação errada a faça olhar para mim de um jeito diferente. Que ela duvide da minha intenção. Do meu sentir.
E isso me apavora mais do que qualquer bronca do Augusto. Porque, se tem algo que estou tentando fazer com cuidado, é não sujar o que sinto com urgência ou expectativa. Tentar seguir, dia após dia, nesse equilíbrio frágil entre admiração, desejo e medo. Porque se ela duvidar de mim… tudo desaba.
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