quarta-feira, 25 de junho de 2025

O acaso a meu favor - Página 10

 Pagina 10 – Capitulo 01

Por Verônica...

Conversando animadamente com minha cunhada, precisei olhar duas vezes para ter certeza de que meus olhos não estavam me pregando uma peça. Não. É ela mesmo.

Não acredito que arrumou outro emprego tão rápido assim… ou será que está se desdobrando em dois? Multitarefas, aparentemente. Impressionante.

E por que, exatamente, estou me fazendo perguntas sobre essa garota?

A mesma garota que — por culpa minha, admito em pensamentos — saiu da última vez que nos vimos num clima, digamos… tempestuoso.

Coincidência? Destino? Ou o universo apenas rindo da minha cara?

Franzi os lábios. Mantive a postura. Mas por dentro, meu cérebro estava em uma reunião urgente com minha dignidade.

Igor, meu irmão, a reconheceu imediatamente e, com um sorriso educado, a cumprimentou de maneira cordial.

— Boa noite, Clara — disse, com um misto de surpresa e alegria ao vê-la. — Não sabia que trabalhava aqui também.

 

O tom foi suave. Aquele tipo de suavidade que disfarça curiosidade. Claramente, ele estava sondando — tentando descobrir se ela realmente havia arranjado outro emprego depois do... incidente.

— Sempre que posso, trabalho algumas noites para Dona Vanda — respondeu ela, gentil, quase doce.

Quase.

Nem parece a mesma a garota que, até ontem, me atendeu com o maior sarcasmo do mundo — sarcasmo merecido, diga-se de passagem. Mas ainda assim, afiado como uma navalha.

Tudo estava fluindo bem naquela noite. Analisando cada movimento seu, percebo ela ir buscar algo, que acredito eu ser os cardápios.

Com três cardápios nas mãos, Clara os distribui pela mesa com a precisão de quem domina seu espaço. Primeiro para minha cunhada, depois para Igor... e, por fim, para mim.

 

Nada de contato físico. Nem mesmo o toque acidental dos dedos que poderia render mais do que deveria. Apenas um leve deslizar do cardápio na minha direção — como se eu fosse só mais uma cliente qualquer.

 

Rápidos olhares foram trocados. Dela, um quase imperceptível. Meu, calculado. Só o suficiente para avaliar se havia, sob aquela máscara profissional, algum traço de ironia, desconforto ou... qualquer coisa. Mas não. Nada. Frieza absoluta. E isso, por alguma razão que prefiro não explorar neste momento, me irrita mais do que qualquer provocação direta.

 

Ela nos deu dois minutos para folhear os cardápios e retornou, pontual como um relógio suíço.

 

— Vocês gostariam de iniciar pedindo alguma bebida específica? — perguntou, olhando primeiro para Igor, como manda o protocolo social — e talvez como um lembrete de que entre mim e ela há uma grande barreira iniciada,

 

— Eu vou de suco de abacaxi com hortelã, por favor — respondeu ele, sorrindo como sempre.

 

— Uma água com gás pra mim — disse minha cunhada, distraída com as fotos das sobremesas.

 

Clara anotou tudo com aquele mesmo ar tranquilo. Depois, olhou para mim.

 

Pausa de um segundo a mais do que o necessário.

 

— E para a senhora?

 

“Senhora.”

 

O veneno veio sem nem alterar o tom da voz. Clara, minha até então funcionária, me chamando de "senhora" como se estivéssemos em um tribunal. 

— Uma taça de vinho tinto — respondi, cruzando as pernas e devolvendo o olhar com a calma de quem já matou uma reunião com os olhos.

 

— Excelente escolha — ela disse, com um leve aceno, e então se afastou, deixando apenas o som dos talheres e do meu orgulho rangendo entre os dentes.

 

 Pedidos feitos, pratos servidos, e Clara seguia pelo salão como se fosse parte da arquitetura do lugar — discreta, mas absolutamente presente. Havia algo na maneira como ela se movia... um equilíbrio entre leveza e autoridade. O pequeno sorriso que carregava no rosto não parecia esforço; era quase natural. Irritantemente natural.

Percebo, com certo desconforto, que muitos dos clientes — alguns nomes conhecidos, inclusive — a cumprimentavam com familiaridade. Pequenas piadas, olhares cúmplices, comentários que só se trocam com quem já conquistou a confiança do lugar.

 

E ela, como sempre, atenta. Um olho no salão, outro no rádio discreto preso à orelha. Em determinado momento, murmurou algo no microfone com a agilidade de quem não apenas está acostumada, mas claramente é ouvida. O tipo de presença que comanda, mesmo sem levantar a voz.

 

Fascinante.

Irritante.

Confusa.

 

Enquanto isso, meu irmão — querido e, por vezes, dramaticamente sensível — já havia bebido consideravelmente da sua terceira taça de vinho, como quem precisava de coragem líquida.

 

Clara se aproximou da nossa mesa de maneira suave, discreta, sem jamais parecer invasiva. Sua presença, curiosamente, nos deixava à vontade. Com gentileza, perguntou se precisávamos de mais alguma coisa, e todos negamos com pequenos acenos de cabeça.

 

Querendo ou não, ressalvo. A maneira como ela nos fazia sentir visíveis e confortáveis — com atenção sutil, mas precisa — me faria vir jantar aqui todas as noites. Sem hesitação.


Pouco depois da sobremesa, ela retornou apenas para garantir que estávamos bem. Seu timing era perfeito: estávamos no meio de uma conversa que, graças ao meu irmão caçula, tomava rumos absurdamente cômicos. Clara entendeu o clima e simplesmente retirou todos os pratos da mesa sem interromper a troca de palavras, como quem entende o ritmo da música e sabe não desafinar.

 

Esse tipo de sensibilidade... não se aprende em curso nenhum.

 

Ela se afastou, nos deixando completamente à vontade, como se soubesse que, naquele momento, não precisávamos de serviço — apenas de espaço.

 

Meu irmão, por sua vez, já estava com a camisa social azul clara com as mangas dobradas até abaixo dos cotovelos, numa tentativa informal de parecer mais descontraído do que realmente é. As bochechas coradas denunciavam o vinho e o prazer genuíno que ele sentia da própria piada — uma piada que, honestamente, nem era tão boa assim.

Mas ele ria. Como quem vive leve. Como quem tem a sorte de não carregar fantasmas à mesa.

E eu? Eu apenas observava tudo, com um leve riso no rosto.

Próxima página - O acaso a meu favor

Nenhum comentário:

O acaso a meu favor - Página 74

  Continuação — O beijo… por Verônica O “quase” entre nossas bocas dura longos segundos — segundos que esticam o mundo, que dilatam o ar ao...