quarta-feira, 25 de junho de 2025

O acaso a meu favor - Página 09

 Pagina 09 – Capitulo 01

 

Agora, deitada no meu colchão surrado, encaro o teto como se alguma resposta fosse brotar dali. A verdade é que estou esgotada. Fisicamente. Mentalmente. Emocionalmente. Não foi só sobre o salário ou as funções acumuladas — foi sobre ser invisível. Sobre ninguém perceber o quanto tenho segurado as pontas ali dentro.

Fui grossa, sei disso. Mas a gente também cansa de engolir seco. Só que o medo agora está aqui, quieto, sentado do meu lado como um velho conhecido: “E se eu for mandada embora?”... “E se ninguém mais quiser me contratar depois disso?”... “Será que me excedi?”

Suspiro. Me viro para o lado, puxo o travesseiro e abraço como se pudesse me esconder dentro dele. Não quero chorar. Não hoje. Já chorei demais em silêncio dentro daquele banheiro dos fundos, entre uma pausa e outra. Mas dói. Dói porque eu gosto de lá. Gosto da ideia de fazer parte de algo. Só queria que, por um momento, alguém olhasse e dissesse: “Clara, eu vejo o que você faz.”

Acabo caindo no sono sem perceber, ainda com o uniforme amassado no corpo e a mente cheia de ruídos. Quando abro os olhos, já é noite — ou quase isso. A luz entra pela janela e bate direto no meu rosto, e por um instante esqueço do que aconteceu pela manhã.

Até o celular vibrar.

Pego o aparelho no criado-mudo e me deparo com uma enxurrada de notificações. No meio delas, uma me chama atenção: alguém havia criado um grupo novo. O nome aparece destacado: "Nova fase — Empório da Economia ".

Demoro alguns segundos para entender do que se trata. Abro com o coração batendo um pouco mais forte. Para minha surpresa, estão todos lá. Até eu. E, o mais inesperado: o grupo foi criado pela Verônica.

Engulo seco. Passo os olhos pelas mensagens — algumas desconfiadas, outras animadas. Uma em especial me paralisa por alguns segundos. É da própria Verônica:

“A partir de agora, nenhuma voz será ignorada. Vamos recomeçar. Juntos.”

Fico olhando para aquela frase como se ela fosse um enigma. Não sei se é o cansaço ou a esperança me pregando uma peça... mas sinto um nó se desfazendo dentro de mim. Ainda não sei o que isso significa exatamente, mas talvez... só talvez... algo esteja mudando.

E, pela primeira vez em muito tempo, deixo um sorriso escapar sem culpa.

Ao me levantar, me organizo para preparar algo para comer. Percebo que estava tão esgotada que dormi o dia todo sem nem notar. Aproveito o tempo para confirmar alguns bicos pelos próximos dias, já que o mercado estará passando por uma "reforma de gestão" — se é que posso chamar assim.

Hoje, pela primeira vez em muito tempo, sinto que posso dormir tranquila. Não porque tudo se resolveu, mas porque, enfim, parece que as coisas começaram a se mover.

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Já são quase dezoito horas. Me visto com o uniforme que o restaurante me forneceu para os dias em que consigo fazer uns bicos por lá. Dona Vanda, a proprietária, é o tipo de mulher que entra em um ambiente e todo mundo percebe — fria, objetiva, e com um olhar que pesa mais que qualquer palavra. Nunca a vi desperdiçar tempo com gentilezas desnecessárias, mas também nunca deixou passar talento despercebido.

Outro dia, depois do expediente, lançou uma frase seca enquanto anotava algo no caderno de pedidos:

— Você tem mãos rápidas. Isso é raro.

Foi o mais próximo de um elogio que já ouvi dela. E vindo de Dona Vanda, é quase uma carta de recomendação assinada em ouro. Também disse, em tom quase imperceptível, que clientes pedem para serem atendidos por mim de novo. Disfarçou o elogio com um resmungo, mas eu entendi.

Acho que é meu carma trabalhar para mulheres de personalidade tão forte assim. Chegando no horário combinado, não me faço de rogada — vou direto ao ponto. Começo a organizar as mesas, alinhando os talheres com agilidade sobre as reservas já programadas para aquela noite.

Dona Vanda passou por mim com o mesmo ar firme de sempre, olhos atentos a cada detalhe. Parou por um instante e disse, sem rodeios:


— Clara, capriche nas mesas do fundo. Temos uma reserva para uma família importante hoje, e quero tudo impecável.


Assenti com a cabeça, sem perguntar nada. Já havia aprendido que, com ela, menos perguntas e mais ação era o melhor caminho. Só não imaginava que essa “família importante” era justamente a da Verônica.

A noite seguia tranquila, com os pedidos fluindo em um ritmo confortável. Eu me movia com leveza entre as mesas, servindo com sua típica eficiência silenciosa, os clientes sorrindo com o bom atendimento. Tudo estava sob controle — até que, por fim, a mesa mais aguardada da noite chegou. O som das cadeiras sendo puxadas, os passos firmes e vozes conhecidas me fizeram parar por um segundo. Meu coração bateu mais rápido ao reconhecer Verônica entre os convidados.

Dona Vanda foi à frente, como sempre fazia com mesas importantes, e eu a acompanho de perto, tentando manter o passo firme. Quando a família de Verônica entrou no restaurante, o ambiente pareceu desacelerar ao redor. Eu sentir um frio percorrer a espinha, o coração acelerado denunciando o meu nervosismo. Eu tentei forçar e me esconder atrás de um sorriso contido e uma postura profissional. Dona Vanda, impassível como sempre, fez um leve aceno com a cabeça ao cumprimentar os convidados, e lançou a mim um olhar rápido — não de crítica, mas de expectativa. Eu engoli a seco, ajeitei meu avental discretamente e, com voz firme, anuncio:


— Sejam muito bem-vindos. A partir de agora ficarei responsável pelo atendimento a mesa de vocês.

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