Pagina 09 – Capitulo 01
Agora, deitada no meu colchão surrado, encaro o teto como se alguma
resposta fosse brotar dali. A verdade é que estou esgotada. Fisicamente.
Mentalmente. Emocionalmente. Não foi só sobre o salário ou as funções
acumuladas — foi sobre ser invisível. Sobre ninguém perceber o quanto tenho
segurado as pontas ali dentro.
Fui grossa, sei disso. Mas a gente também cansa de engolir seco. Só que
o medo agora está aqui, quieto, sentado do meu lado como um velho
conhecido: “E se eu for mandada embora?”... “E se ninguém
mais quiser me contratar depois disso?”... “Será que me excedi?”
Suspiro. Me viro para o lado, puxo o travesseiro e abraço como se
pudesse me esconder dentro dele. Não quero chorar. Não hoje. Já chorei demais
em silêncio dentro daquele banheiro dos fundos, entre uma pausa e outra. Mas
dói. Dói porque eu gosto de lá. Gosto da ideia de fazer parte de algo. Só
queria que, por um momento, alguém olhasse e dissesse: “Clara, eu vejo o
que você faz.”
Acabo caindo no sono sem perceber, ainda com o uniforme amassado no
corpo e a mente cheia de ruídos. Quando abro os olhos, já é noite — ou quase
isso. A luz entra pela janela e bate direto no meu rosto, e por um instante
esqueço do que aconteceu pela manhã.
Até o celular vibrar.
Pego o aparelho no criado-mudo e me deparo com uma enxurrada de
notificações. No meio delas, uma me chama atenção: alguém havia criado um grupo
novo. O nome aparece destacado: "Nova fase — Empório da Economia
".
Demoro alguns segundos para entender do que se trata. Abro com o coração
batendo um pouco mais forte. Para minha surpresa, estão todos lá. Até eu. E, o
mais inesperado: o grupo foi criado pela Verônica.
Engulo seco. Passo os olhos pelas mensagens — algumas desconfiadas,
outras animadas. Uma em especial me paralisa por alguns segundos. É da própria
Verônica:
“A partir de agora, nenhuma voz será ignorada. Vamos recomeçar. Juntos.”
Fico olhando para aquela frase como se ela fosse um enigma. Não sei se é
o cansaço ou a esperança me pregando uma peça... mas sinto um nó se desfazendo
dentro de mim. Ainda não sei o que isso significa exatamente, mas talvez... só
talvez... algo esteja mudando.
E, pela primeira vez em muito tempo, deixo um sorriso escapar sem culpa.
Ao me levantar, me organizo para preparar algo para comer. Percebo que
estava tão esgotada que dormi o dia todo sem nem notar. Aproveito o tempo para
confirmar alguns bicos pelos próximos dias, já que o mercado estará passando
por uma "reforma de gestão" — se é que posso chamar assim.
Hoje, pela primeira vez em muito tempo, sinto que posso dormir
tranquila. Não porque tudo se resolveu, mas porque, enfim, parece que as coisas
começaram a se mover.
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Já são quase dezoito horas. Me visto com o uniforme que o restaurante me
forneceu para os dias em que consigo fazer uns bicos por lá. Dona Vanda, a
proprietária, é o tipo de mulher que entra em um ambiente e todo mundo percebe
— fria, objetiva, e com um olhar que pesa mais que qualquer palavra. Nunca a vi
desperdiçar tempo com gentilezas desnecessárias, mas também nunca deixou passar
talento despercebido.
Outro dia, depois do expediente, lançou uma frase seca enquanto anotava
algo no caderno de pedidos:
— Você tem mãos rápidas. Isso é raro.
Foi o mais próximo de um elogio que já ouvi dela. E vindo de Dona Vanda,
é quase uma carta de recomendação assinada em ouro. Também disse, em tom quase
imperceptível, que clientes pedem para serem atendidos por mim de novo.
Disfarçou o elogio com um resmungo, mas eu entendi.
Acho que é meu carma trabalhar para mulheres de personalidade tão forte
assim. Chegando no horário combinado, não me faço de rogada — vou direto ao
ponto. Começo a organizar as mesas, alinhando os talheres com agilidade sobre
as reservas já programadas para aquela noite.
Dona Vanda passou por mim com o mesmo ar firme de sempre, olhos atentos
a cada detalhe. Parou por um instante e disse, sem rodeios:
— Clara, capriche nas mesas do fundo. Temos uma reserva para uma família
importante hoje, e quero tudo impecável.
Assenti com a cabeça, sem perguntar nada. Já havia aprendido que, com ela,
menos perguntas e mais ação era o melhor caminho. Só não imaginava que essa
“família importante” era justamente a da Verônica.
A noite seguia tranquila, com os pedidos fluindo em um ritmo
confortável. Eu me movia com leveza entre as mesas, servindo com sua típica
eficiência silenciosa, os clientes sorrindo com o bom atendimento. Tudo estava
sob controle — até que, por fim, a mesa mais aguardada da noite chegou. O som
das cadeiras sendo puxadas, os passos firmes e vozes conhecidas me fizeram
parar por um segundo. Meu coração bateu mais rápido ao reconhecer Verônica
entre os convidados.
Dona Vanda foi à frente, como sempre fazia com mesas importantes, e eu a
acompanho de perto, tentando manter o passo firme. Quando a família de Verônica
entrou no restaurante, o ambiente pareceu desacelerar ao redor. Eu sentir um
frio percorrer a espinha, o coração acelerado denunciando o meu nervosismo. Eu
tentei forçar e me esconder atrás de um sorriso contido e uma postura
profissional. Dona Vanda, impassível como sempre, fez um leve aceno com a
cabeça ao cumprimentar os convidados, e lançou a mim um olhar rápido — não de
crítica, mas de expectativa. Eu engoli a seco, ajeitei meu avental
discretamente e, com voz firme, anuncio:
— Sejam muito bem-vindos. A partir de agora ficarei responsável pelo
atendimento a mesa de vocês.
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