Pagina 08 – Capitulo 01.
Por Verônica...
Depois de dispensar os funcionários por três dias — até conseguirmos resolver ao menos um por cento dessa bagunça —, restamos no mercado apenas eu, meu irmão e o gerente: Augusto.
Assim que os funcionários se despediram, memorizei onde a porta se fecha
e apertei o botão. Virei-me para os dois homens ali presentes e, soltando um
suspiro pesado, apenas disse:
— Agora, a reunião que precisa acontecer é entre nós.
Senti a tensão se instalar no ar, mas não me importei. Como diz o
ditado: já que estou no inferno, o que me resta agora é abraçar o capeta.
Ao seguirmos para o antigo escritório do meu pai, percebo que quase tudo
permanece no mesmo lugar — exceto por algumas reformas antigas, que hoje já
mostram claros sinais de desgaste. O tempo parece ter passado, mas sem de fato
transformar.
E então me dou conta: talvez a mudança que pretendo iniciar a partir de
hoje não seja apenas na estrutura física deste mercado... mas também na forma
como o enxergo. A menina que um dia via esse lugar com olhos de medo e admiração,
agora precisa encará-lo com coragem e responsabilidade.
É como se, ao tocar essa porta, eu também estivesse tocando em tudo que
meu pai tentou me ensinar — e que até hoje esteve adormecido dentro de mim.
— Antes de mais nada — comecei,
cruzando os braços e olhando diretamente para Augusto —, quero deixar claro que
o que aconteceu hoje aqui... foi inaceitável.
Ele tentou manter a postura, mas
desviou o olhar por um instante. Silêncio. Meu irmão, sentado ao lado, ainda
não havia dito uma palavra.
— Uma funcionária foi exposta,
sobrecarregada, humilhada — continuei, firme —, e ninguém aqui teve a decência
de me interromper para acabar com o abuso. Nem você, Augusto.
Meu irmão ergueu os olhos, um pouco
surpreso, talvez magoado, mas eu continuei:
— Lembra do papai, Igor? — perguntei,
com a voz mais baixa, porém carregada de peso. — Ele sempre dizia que
administrar um negócio era, acima de tudo, saber cuidar de pessoas. Que lucro
nenhum vale o desgaste da dignidade de quem te ajuda a manter as portas abertas.
Olhei para Augusto de novo:
— Eu não fazia ideia... — murmurei, como se estivesse admitindo algo a
mim mesma. — Pelas palavras dela, ficou claro. Clara estava cobrindo funções
que não eram dela, deixando de folgar, se desdobrando para manter esse lugar de
pé... como se fosse bem mais que uma funcionaria desse mercado. Mesmo recebendo
pouco. Mesmo sem receber nada em troca além de pressão, descaso e uma carga de
trabalho que deveria, no mínimo, ser dividida entre três. E a gente
simplesmente... deixou.
Augusto tentou se justificar:
— Verônica, com todo respeito, eu...
— Respeito? — cortei, erguendo uma
sobrancelha. — Você deixou que ela fosse tratada como uma máquina. E mais:
deixou isso virar um padrão. Eu estou assumindo essa empresa porque meu pai nos
ensinou que quem lidera precisa ser justo. Precisa ser firme, sim — mas nunca
cego.
Olhei para Igor, com os olhos ardendo,
não de raiva, mas de frustração.
— E você, meu irmão... Eu sei que está
cansado. Sei que está perdido. Mas o silêncio que você manteve hoje foi
ensurdecedor. Se você quer continuar nisso, vai ter que aprender a ser
responsável pelas pessoas também. Não só pelos números.
Augusto abaixou a cabeça. Igor
suspirou, passando a mão pelos cabelos.
— Então o que você quer fazer agora? —
ele perguntou.
— Quero uma reunião com todos os
funcionários assim que retornarem. E antes disso, Augusto, você vai me entregar
um relatório detalhado de funções, salários, horários e carga de trabalho de
cada um. Quero ver onde está o desvio. E Igor... — me aproximei —, você vai
comigo pedir desculpas à Clara. Não só a ela, mas a todos que fizeram de tripas
coração para entregar um excelente trabalho nesse mercado.
O silêncio durou mais alguns segundos.
Então, Igor assentiu, com um leve aceno de cabeça.
Augusto engoliu seco e respondeu:
— Entendido.
Eu recuei um passo, respirei fundo e
finalizei:
— Isso não é sobre assumir um mercado.
É sobre honrar o nome do nosso pai. E eu não vou fazer isso pisando em ninguém.
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Ao chegar em casa, fui direto para o meu quarto, sem sequer tirar os
sapatos. Precisei de um banho — não apenas para limpar o corpo, mas para tentar
organizar o turbilhão de pensamentos que absorvi naquele mercado hoje. A água
escorria, e junto dela, a culpa, a indignação e uma exaustão que parecia vir de
anos acumulados em silêncio.
Como estava na casa do meu falecido pai, sabia exatamente onde encontrar
a porta de seu antigo escritório — e que, como sempre, ela estaria entreaberta.
Ao empurrá-la com suavidade, fui invadida por uma sensação nostálgica, quase
sufocante. Não hesitei. Me dirigi direto à sua velha cadeira e me sentei com
cuidado, como quem busca abrigo em meio à tempestade. Naquele instante, mais do
que nunca, eu precisava sentir o abraço dele — mesmo que só em memória.
O silêncio da sala parecia pesar sobre meus ombros como chumbo. O ar
parado, a luz do fim de tarde atravessando as persianas, e a ficha... enfim
caindo. Eu tinha sido dura demais. Clara, com seus olhos cansados, sua postura
reta mesmo quando o mundo pesava, merecia mais que a minha frieza
administrativa.
Sentei na velha cadeira de couro no escritório que ainda guardava o
cheiro do meu pai. Era como se ele nunca tivesse saído dali. Fechei os olhos...
e como em um sussurro antigo, a memória veio.
— Nunca se esqueça disso, Verônica — dizia ele, com aquele tom calmo,
mas firme, enquanto ajeitava a manga da camisa —, números são importantes,
metas também. Mas quem move tudo isso... são pessoas.
Eu tinha uns vinte e poucos anos, recém-formada, cheia de ideias novas.
E cheia de pressa.
— Acha que pode controlar uma empresa com fórmulas e planilhas? Pode,
por um tempo. Mas chega uma hora que tudo racha. E quando rachar, quem vai te
segurar são as mãos que você respeitou — ele me olhou, sério. — Ou que você
ignorou.
Lembro de tê-lo desafiado com o olhar, ainda arrogante:
— E se essas pessoas falharem?
— Então você ensina. Ou escuta. Gente não é máquina, filha. Gente sente.
E gente que sente, trabalha por amor... ou por medo. Só uma dessas opções
constrói algo que vale a pena.
Abri os olhos de volta ao presente.
Clara não precisava do meu medo. Nem da minha autoridade. Ela precisava
do que meu pai chamava de "olhar de verdade". Aquele que enxerga o
esforço mesmo quando ele não está estampado em relatórios.
Respirei fundo. A dor de reconhecer o erro queimava, mas também limpava.
Era hora de agir.
Mesmo carregando a culpa nos ombros, não pude evitar o orgulho que
senti. Orgulho por, de certa forma, estar imitando cada gesto do velho Heitor.
Meu pai sempre quis que os filhos tivessem a mesma força de personalidade que
ele — uma força que ele nunca precisou gritar, mas que exalava em silêncio. E
acho que conseguiu. Pelo menos, em mim, essa força vive e pulsa. Sinto isso.
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