segunda-feira, 24 de novembro de 2025

O acaso a meu favor - Página 71

Por Clara…

Ao ouvir o que ela pediu — pedido não, sentença — um sorriso nasce no canto da minha boca. Discreto. Pequeno. Invisível para ela, claro. Verônica nunca pode saber o quanto me afeta.

Enquanto seguimos em direção ao que eu acreditava ser minha casa, fico pensando em como minha vida virou completamente — da água para um bom vinho.
Até pouco tempo atrás, eu me arrastava por dias cinzentos, presa a um relacionamento com a Camila, convencida de que nunca superaria o fim. Que nunca mais confiaria em alguém.
E então… aparece Verônica.
Fria, metódica, incapaz de pedir por favor.
E, ainda assim, me obrigando — sim, obrigando — a confiar de novo.

Esse pensamento me faz sorrir mais.
Quase rio.

Me vejo sempre presa a situações que fogem do meu controle, mas desta vez… pela primeira vez… eu me sinto bem.
De um jeito que não sei explicar.
Mas sei que vem dela.

— Do que você está rindo?

A voz dela corta o ar, seca, desconfiada.
E naquele instante tudo o que levei semanas para reorganizar dentro de mim desmorona, porque… claro.
Uma mandona surge na minha vida e resolve bagunçar tudo outra vez.

Balanço a cabeça, negando.
“Nada importante." Ela não parece convencida. Apenas continua dirigindo, ainda emburrada, com aquela expressão dura que não admite contestação.

A vejo parar em frente a uma lanchonete bem conhecida no centro da cidade. Ainda com a cara emburrada, ela apenas murmura um “Me espere, já volto”. Eu, ainda me divertindo com a situação, apenas assinto com a cabeça e observo ao redor a pequena praça Mestre Orlando.

Não demorou muito. Ela, agora com a expressão menos fechada, abre a porta do carro e, de maneira ainda contida, diz:

— Comprei algo pra gente comer.

Vejo-a colocar as sacolas no banco de trás e seguir em direção ao que eu achava ser minha casa.

Depois de alguns minutos pela cidade, reconheço a avenida que leva até minha casa — mas vejo Verônica virar para o lado oposto.
Meu estômago aperta.

— Verônica, você passou da minha rua. — aviso, tentando não demonstrar o desconforto.

Ela mantém aquele olhar meio psicopata que faz quando está irritada: sobrancelhas tensas, maxilar travado, olhos fixos na estrada.
Mas sei que ela me ouviu.

Entramos em uma estrada mais afastada, a cidade ficando para trás.
Então ela finalmente vira o rosto para mim.
Os olhos encontram os meus, firmes, provocadores.

— O quê? Não me diga que está com medo de mim.

Engulo em seco.
Não por medo dela.
Mas porque não faço ideia de onde ela pretende me levar…

O carro segue pela estrada vazia, e a cidade já ficou pequena no retrovisor. A cada quilômetro, sinto meu coração bater mais forte, como se quisesse adiantar uma resposta que eu ainda não tenho.

Verônica não diz nada.
E isso, nela, é mais perigoso do que qualquer palavra.

O silêncio dela sempre parece cheio — como se estivesse calculando o mundo inteiro atrás daqueles olhos duros. Mas, agora, não é só isso.
Ela está… inquieta.
Tensa.
Quase vulnerável, embora jamais admitisse.

— Eu não estou com medo de você. — digo, mais para quebrar o ar pesado do que por coragem.

Verônica desvia o olhar da estrada por um segundo. Apenas um.

Mas é suficiente para me atravessar.

Há algo nos olhos dela… algo que queima e arrepia ao mesmo tempo.

Um desejo contido, uma preocupação que ela tenta mascarar, e esse jeito de me olhar como se quisesse me decifrar — ou me guardar.

Ela respira fundo, e a mão que antes estava rígida no volante relaxa, deslizando um pouco.
E então acontece — rápido, quase imperceptível.

Os dedos dela tocam os meus.

Não por acidente.
Não dessa vez.

Um toque suave, leve, mas firme o suficiente para que eu sinta cada nervo do meu braço desperto.
Meu corpo inteiro reage antes da minha cabeça entender.

Eu a encaro.

Ela finge que não percebe, mas o maxilar dela aperta; a respiração prende; o olhar dá aquela vacilada que já aprendi a reconhecer.

Ela está tentando ser fria.
Tentando manter o controle.
Mas o toque continua — e isso, vindo da Verônica, vale mais do que qualquer confissão.

— Clara… — ela diz meu nome de um jeito que nunca ouvi antes, grave, rouco, quase… íntimo.

Sinto meu estômago virar.

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quinta-feira, 20 de novembro de 2025

O acaso a meu favor - Página 70

Continuação Verônica…

Não demorei. Só quis tirá-la dali.
Daquela confusão. Daquele amontoado de vozes e risadas falsas que me davam náusea.

Dirigi sem pressa, mas também sem rumo. A estrada parecia se estender só para conter o silêncio entre nós. No primeiro sinal vermelho, o celular dela vibrou — insistente, desde o momento em que deixamos aquela rua.

Virei o rosto. Ela fez o mesmo.
Não sei o que me atravessou naquele instante, só sei que cada toque recusado era uma faísca em mim. Ciúmes.

Sim — ciúmes.

Chega de fingir que não é isso. Nem para mim mesma.

— Clara… — o nome escapa num sussurro áspero. Encosto a testa no volante, respiro fundo. — Como você se envolve com gente assim? Como confia tão fácil?

Ela se vira, e o olhar que antes era doce agora é uma lâmina.

— Você acha que eu tenho bola de cristal pra saber como as pessoas ficam depois de bêbadas?

A voz dela me corta. E ainda assim, é o som mais vivo que já ouvi.

— Deveria saber! — respondo, a garganta trêmula de raiva e medo. — É a sua segurança que está em jogo, não o seu achismo!

As palavras saem mais duras do que eu queria. Mas é isso que me destrói: o simples pensamento de vê-la em perigo, de perdê-la para algo — ou alguém — que eu não posso controlar.
E por um segundo, no reflexo do vidro, vejo meu próprio rosto — tenso, vulnerável — e entendo: não é raiva.
É sentimento disfarçado de comando.


Ao me ouvir tão abruptamente, ela, emburrada, cruzou os braços e voltou o rosto para a janela. Se não fosse pela situação, eu até acharia graça da birra; mas a realidade não era tão engraçada assim.

E, mais uma vez, no meio daquele silêncio, o celular dela tocou — e eu não consegui conter o tom:

— Pelo amor de Deus, Clara! — disse eu, exasperada, e a vi levar um susto.

— Você está esperando o quê? — perguntei, jogando o cabelo para trás com uma das mãos. — Para bloquear, apagar, sumir... com o número dessa mulher no seu celular?

Ela me encarou com um sorriso risonho e um pouco confuso; e só por isso, naquele instante, se eu tivesse coragem de estrangular aquela menina, eu teria.

Mas logo o meio sorriso dela se desfez. Vi Clara abrir as mensagens diante de mim, os olhos percorrendo-as com rapidez, e então dizer, com a voz baixa e serena:

— Obrigada por ter me tirado daquela confusão.

Aquilo me desarmou por completo. Não esperava que ela cedesse tão fácil. Minha respiração se descompassou de um jeito ridículo, e só então percebi que o carro ainda estava parado no meio da rua. Por sorte, era tarde, e o trânsito já havia desaparecido.

Ela mantinha o olhar baixo, envergonhada, e, por um instante, aquilo fez algo dentro de mim afrouxar. Aquele ar doce e arrependido que ela fazia sem perceber… Deus, como é que alguém consegue me tirar o chão só por baixar a cabeça?

— E desculpa ter te envolvido nisso... — ela completou, sincera, e o som da voz dela me atingiu como um pedido de paz que eu não sabia se queria aceitar.

Senti minha respiração voltar ao ritmo normal, e, antes que perdesse o controle de novo, peguei a mochila do colo dela. Clara me olhou, sem entender, e apenas levantou os braços num gesto automático. Coloquei a mochila no banco de trás, depois alcancei o celular que estava no painel.

Sem dizer nada, entreguei o aparelho a ela, batendo-o levemente contra o peito dela — não com força, mas com firmeza.

— Resolve esse seu problema primeiro… — falei, num tom baixo e cortante. — E depois você se resolve comigo.

Ficamos ali, em silêncio. Só o som do motor e o eco da minha própria voz no ar. Ela me olhava com uma mistura de confusão e curiosidade, e eu… eu tentava não ceder à vontade absurda de puxá-la pela gola e acabar de vez com aquela distância.

Mas não. Ainda não. Primeiro, ela precisava entender com quem estava lidando.


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domingo, 9 de novembro de 2025

O acaso a meu favor - Página 69

Por Verônica…

A tarde e a noite se arrastaram entre planilhas, atendimentos e reuniões que eu mal consegui registrar.
O relógio parecia zombar de mim, girando em círculos lentos, enquanto minha cabeça teimava em voltar sempre para o mesmo ponto: Clara.

A conversa que tivemos — o jeito como ela falou de amor, de perda, de acaso — ficou reverberando dentro de mim como uma música que não se cala.

E o pior: me peguei sorrindo sozinha mais de uma vez, lembrando das caretas que ela fazia tentando entender os gráficos.
Que droga. Eu, sorrindo feito uma idiota por causa de alguém que trabalha pra mim.

Respiro fundo, tentando me concentrar no relatório à frente.
Olho pela grande janela de vidro fumê que dá visão total ao mercado, e observo o movimento apressado dos funcionários, todos tentando encerrar o dia o mais rápido possível.

Já estávamos na reta final do expediente, todos exaustos, mas ainda empenhados em dar o melhor de si para o dia seguinte começar sem tantos ajustes.

Vejo Clara, juntamente com os rapazes, carregando caixas e sacos de lixo para o descarte. E, mais uma vez, deixo escapar uma risada nasal — essa menina parece ter uma energia que desafia o próprio cansaço.

Passo pelo açougue para conferir o fechamento.

— Bruno, tudo bem por aqui? — pergunto, mais por hábito do que por desconfiança.

— Tudo sob controle, dona Verônica. — responde ele, confiante.

Aceno, satisfeita, e continuo o trajeto, passando por cada corredor, checando prateleiras, iluminação e limpeza. Parte da rotina, mas também uma forma de organizar meus pensamentos — ou tentar.

Por ser o primeiro dia do açougue aberto, redobro o cuidado. Amanhã, Bruno já começa o turno no horário fixo, e espero que se mantenha nesse ritmo.

Enquanto caminho pelos corredores, avisto o motivo dos meus conflitos.
Clara.

Ela estava no caixa, concentrada, ajudando as meninas com o fechamento do sistema. A expressão séria, a postura focada — e mesmo assim, aquele sorriso leve de quem gosta do que faz.

Chego perto, e nenhuma das duas nota minha presença de imediato.

— Tudo certo aí, meninas? — pergunto num tom leve.

Clara levanta o rosto e sorri. — Tudo sim, Verônica.

— Ótimo. Assim conseguimos ir pra casa o mais rápido possível, não é? — brinco, e ambas riem, cansadas, mas contentes.

Os rapazes começam a apagar as luzes, e logo só resta o brilho dos caixas. Clara termina de conferir tudo e me entrega os dois envelopes com os fechamentos do dia — organizados, como sempre.

As meninas se despedem e vão embora.
Só nós duas ficamos.

Clara tem o hábito de me esperar do lado de fora, até eu trancar o portão e entrar no carro. Sempre ofereço carona, e quase sempre ela recusa, dizendo que gosta de andar um pouco. “Pra pensar na vida”, ela costuma dizer.

Guardo os envelopes, desligo computadores, ar-condicionado e luzes. Estou prestes a sair quando ouço vozes altas vindo da rua — um grupo de jovens, rindo alto, claramente embriagados.

Mas o que me fez congelar não foi o barulho.
Foi ouvir a voz dela.

Clara.
E entre as risadas, uma outra voz, feminina, firme, carregada de familiaridade.

Essa tal, Elise.

Meu corpo inteiro reagiu antes que minha mente entendesse.
Um calor subiu até o rosto, e o ar pareceu rarear.

Deixo a bolsa sobre o balcão e caminho até a porta, os passos acelerados, o coração descompassado.
E, lá fora, a cena que se desenhava já era o suficiente para me fazer perder a razão.

Clara estava do lado de fora, parada na calçada com o uniforme ainda amassado do expediente.
A rua estava parcialmente iluminada pelos postes, e o grupo que a cercava parecia ter acabado de sair de algum bar próximo. Risadas, vozes arrastadas, gestos amplos.
Mas o meu olhar encontrou só uma pessoa.

Casaco de couro, sorriso atrevido, o tipo de presença que enche o espaço como um perfume forte.
E ali, ela falava com Clara de um jeito que me fez querer atravessar o vidro e colocá-la dentro do carro à força.

— Mas está tarde… — ouvi Clara dizer, num tom leve, quase risonho.

E então Elise respondeu, com aquela insolência natural que só quem conhece os limites gosta de testá-los:

— Eu te levo em casa. Toma um banho, se arruma, e a gente se diverte um pouco…

Foi o suficiente.
O sangue ferveu.
Nem pensei. Só fui.

Empurrei a porta e atravessei o pequeno espaço entre o mercado e a calçada com passos firmes demais para quem fingia calma.
O ar noturno bateu no meu rosto, mas não serviu pra esfriar nada.

Clara me olhou surpresa, o grupo se calou por um instante — aquele tipo de silêncio que antecede um desconforto.

— Clara — disse, seca. — Está pronta? Te deixo em casa.
Não foi um convite. Foi uma sentença.

Ela piscou algumas vezes, confusa, e depois assentiu devagar, num gesto quase tímido.

Ao ouvir a confirmação que eu precisava, abri a porta. Mas parece que a tal Elise não gostou do meu tom. Ao olhar para Clara, e já à ver indo em direção ao meu carro, ela solta: 

— Você só vai se quiser, Clara! — disse, a voz alterada, e a mão dela, firme demais, segurava o pulso de Clara como se a possuísse.

Foi automático. Senti o sangue ferver. Em um segundo, já estava diante das duas, tirando Clara daquele toque que me incomodava como fogo na pele.

— Como é que é? — soltei, num tom baixo, mas cortante, me colocando entre elas.

Não era ciúme. Pelo menos, não queria que fosse. Era instinto. Proteção. Aquela mulher estava alterada, bêbada, talvez drogada, e o grupo ao redor — uns quatro rapazes — riam, debochados, todos visivelmente embriagados.
Eu jamais deixaria Clara ficar ali. Nem por vontade dela.

— Você acha mesmo que está em condições de colocá-la em perigo, do jeito que está? — disparei, já tão próxima que podia sentir o álcool evaporando da respiração dela.

— Quem vai dizer isso não é você! — respondeu, arrogante, tentando me medir com o olhar.

Aquilo me tirou do eixo. Me aproximei mais um passo, tão perto que bastava um movimento em falso para aquilo virar outra coisa. Mas antes que eu dissesse algo, Clara entrou no meio.

— Vê, por favor… — pediu ela, com a mão no meu abdômen, me afastando suavemente. — Vamos sair daqui. Depois eu resolvo com ela.

Tentei respirar, mas o toque dela — quente, firme — não ajudava.
Depois ela resolve com ela?

Essas palavras me atravessaram. O “depois” me corroeu mais do que a cena toda.

Olhei pra Clara como se ela tivesse acabado de me trair só por dizer aquilo.
Ela percebeu. E talvez tenha entendido. Porque o que fez em seguida me desmontou: segurou minha cintura, forte, e me empurrou dali, como quem quer conter uma fera antes que ela faça besteira.

O toque dela. O cheiro. O calor.
Tudo em mim se bagunçou.
Saí em direção ao carro, mas nem percebi o quanto estava tensa até ouvir a voz da outra me chamar de volta.

— Espera! — gritou Elise, com o dedo apontado em nossa direção. — Vocês… estão juntas?

Clara travou. Eu vi.
E por um instante, ela não soube o que responder.
Talvez nem houvesse resposta possível.
Mas eu, cansada daquele jogo, cansada de ver os outros ditando o que eu devia sentir, respondi antes dela:

— Exatamente. — disse, firme, abrindo a porta do carro.

— Vamos, Clara. — repeti, sem paciência.
Ela hesitou, e eu só precisei de um olhar para fazê-la entrar.

Bati a porta com força, o som seco ecoou na tua quase vazia.

Do lado de fora, risadas; do lado de dentro, o silêncio pesado de tudo o que não dissemos.

Apertei o volante, tentando disfarçar a respiração acelerada.

E no reflexo do vidro, vi Clara olhando pra mim — o susto e o desespero misturados no mesmo olhar.
Por um segundo, pensei em falar algo. Mas não.
Porque se eu falasse… eu não conseguiria parar.

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O acaso a meu favor - Página 74

  Continuação — O beijo… por Verônica O “quase” entre nossas bocas dura longos segundos — segundos que esticam o mundo, que dilatam o ar ao...