segunda-feira, 13 de outubro de 2025

O acaso a meu favor - Página 68

Por Verônica…

As palavras de Clara ainda ecoavam na minha cabeça.

“O que realmente dá valor a um sentimento, é o acaso.”

Ela disse isso rindo, mas havia algo por trás do riso — uma melancolia calma, madura, quase poética. E aquilo me atravessou de um jeito que não sei explicar.

Fiquei em silêncio, observando-a, e tive vontade de dizer alguma coisa… qualquer coisa que preenchesse o espaço entre nós.
Mas não consegui.

Era raro ver alguém falar de dor com tanta serenidade.
Clara não se vitimizava, não fazia drama — ela apenas deixava a ferida respirar.

E eu, que sempre me orgulhei de ser controlada, fria, prática… percebi que estava completamente desarmada diante daquela mulher.

Os olhos dela, ainda úmidos de lembrança, tinham uma luz que não combinava com a tristeza das palavras.

Era uma luz viva. Quente.

A mesma que me desconcertava todos os dias, mesmo quando ela só passava por mim com aquele sorriso rápido, quase distraído.

— Você fala do acaso como se ele fosse um presente. — murmurei, mais pra mim do que pra ela.

Clara me olhou, e por um instante, esqueci como se respirava.

— E não é? — respondeu com um meio sorriso. 

— Às vezes, o que mais muda a gente é justamente o que não estava nos planos.

Fiquei olhando pra ela, sem conseguir disfarçar o que estava sentindo.
E ali, naquele instante simples, percebi que algo em mim havia cedido.

O acaso.
Era disso que ela falava.
E talvez… o acaso tivesse nome e estivesse sentada bem à minha frente.

Desviei o olhar por um segundo, tentando reencontrar a compostura.
Mas ela me observava com tanta calma que parecia ler os pensamentos que eu lutava pra esconder.
Meus dedos começaram a tamborilar na mesa, inquietos, denunciando o nervosismo que eu fingia não sentir.

— Sabe o que é engraçado? — disse, tentando soar leve, mas falhando miseravelmente. 

— Eu passei a vida acreditando que sentimentos eram distrações perigosas. Que quanto mais você se envolve, mais vulnerável fica.

Ela sorriu de canto. — E ainda acredita nisso?

Sorri de volta, sem graça.
— Estou… reconsiderando.

Clara inclinou a cabeça, curiosa, e o silêncio que se instalou logo depois parecia pulsar.
Entre nós, havia uma energia estranha — uma tensão doce, feita de respeito, curiosidade e algo que eu não ousava nomear.

Quis dizer mais, mas a garganta travou.
Apenas deixei o olhar pousar sobre ela, e foi suficiente para sentir o perigo.
Os traços suaves do rosto, a forma como o cabelo caía sobre o ombro, o leve movimento dos lábios…
Deus, ela não fazia ideia do que provocava em mim.

— O acaso, às vezes, é cruel — sussurrei, quase sem querer. — Ele coloca pessoas certas em horas erradas.

Clara baixou o olhar, e percebi o rubor subindo-lhe ao rosto.
Não era preciso dizer mais nada.

Por um breve instante, senti vontade de atravessar aquele espaço minúsculo entre nós.
De tocar o que eu sabia que não deveria.
Mas me contive — não por falta de vontade, e sim por medo do que viria depois.

Levantei devagar, tentando recuperar o controle que ela, sem perceber, havia tomado de mim.

— Acho que precisamos voltar ao trabalho — falei, num tom neutro demais pra esconder a turbulência.

Ela assentiu, e mesmo assim, o ar parecia ainda mais denso. Ao passar por mim, seu perfume misturou-se ao meu, e por um segundo, senti a pele arrepiar.

Percebi ela olhar discretamente para trás antes de sair da sala.

E eu, continuei ainda ali, a observando, com um sorriso pequeno, perdido. — desses que dizem tudo sem precisar de som.

Fechou a porta atrás de si, levando comigo um pensamento que não consegui calar:

Se o acaso é o que dá valor a um sentimento… então eu já estou perdida.

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O acaso a meu favor - Página 67

Continuação por Clara...

— Mas não… — respondo por fim, tentando manter a voz firme. — Mas a promessa que fizemos foi: se o acaso nos desse outra chance, se nossas vidas estivessem mais calmas do que da última vez… não nos privaríamos.

As palavras saem com uma sinceridade que nem eu esperava.

Vejo Verônica me encarar em silêncio — um olhar que mistura irritação, incerteza e algo que, por um instante, me faz querer recuar.

Mesmo achando graça da situação, sinto o coração apertar.
Medo.
Medo de perdê-la — mesmo sem nunca tê-la, de fato.

— Quando a conheci… — começo, e vejo o modo como ela imediatamente se endireita na cadeira, a atenção toda voltada para mim.

Engulo em seco antes de continuar.

— Tinha acabado de descobrir uma traição no meu último relacionamento… — falo baixo, como se as palavras ainda cortassem por dentro.

Verônica se vira completamente para mim, apoiando os cotovelos na mesa. Os olhos dela — antes tensos, agora mais suaves — me observam com uma curiosidade silenciosa, quase protetora.

Por um segundo, sinto que o ar entre nós muda.
Não há julgamento em seu olhar.
Só presença.
E isso, vindo dela, é quase perigoso.

Fico ali, tentando sorrir, mas algo em mim treme — porque sei que, naquele exato instante, Verônica não vê só a funcionária que trabalha no mercado.
Ela vê a mulher por trás das defesas, e isso me deixa nua de um jeito que não tem nada a ver com o corpo.

— E bom… — voltei a dizer, respirando fundo. 

— Estávamos na nossa melhor fase. Em todas as áreas. Com promessas de casamento em cartório e tudo mais.

Falo sem raiva — não mais. Mas ainda há um sabor amargo, uma sombra antiga que insiste em ficar.

— Parecia loucura, pela pouca idade — continuo, mexendo distraidamente nas mãos. — Mas já estávamos juntas há dois anos. Achávamos que o tempo era suficiente para provar que o amor bastava.

Minha voz soa leve, quase distante, como se contasse a história de outra pessoa. Mas não era outra. Era a minha.
E, por algum motivo, ver o olhar de Verônica se tornando mais suave, mais acolhedor, me deu coragem.

Quanto mais eu falava, mais ela parecia me ouvir com o corpo inteiro — sem interrupções, sem pressa, como quem entende o que não se diz.
E isso… me fez querer tirar o peso do peito, mesmo que custasse um pouco da minha dignidade.

Olhei para o chão, sentindo o nó apertar.

— Na minha cabeça, nós estávamos bem resolvidas. Mesmo com os traumas, as discussões, as cicatrizes… eu ainda acreditava que o amor era suficiente.

Um sorriso sem humor me escapou.

— Mas descobri, da pior maneira, que não é assim que funciona. — murmurei, com um misto de tristeza e constrangimento pela própria ingenuidade.

Por um instante, o silêncio tomou conta da sala.
E foi ali, entre a lembrança e o alívio, que senti — com uma clareza quase cruel — que o olhar de Verônica sobre mim já não era o mesmo.

Ela me olhava diferente.
Com algo entre ternura e desejo.
E pela primeira vez, eu quis que ela não desviasse.

— E minha vida construída em dois anos, com tantas falsas expectativas, foi por água abaixo… — soltei um riso sem humor. — Como um castelo de areia sendo levado pela maré.

O som da minha própria risada ecoou fraco, quase como um alívio cansado.

— Às vezes fazem a gente acreditar que, quanto mais cedo encontramos o amor, mais valioso ele se torna — continuei, olhando para um ponto qualquer na sala, sem realmente vê-lo.

Fiquei um instante em silêncio, sentindo o ar pesado das lembranças.

— Mas eu… — suspirei, virando o rosto para ela. — Eu acredito que o que realmente dá valor a um sentimento, é o acaso.

Ri de leve, não por achar graça, mas pela ironia da própria frase.
Verônica me observava sem piscar, e havia algo no olhar dela que me fez continuar, quase num sussurro:

— Aquele que ninguém prevê… aquele que ninguém espera.

Nossos olhos se encontraram.
E, por um segundo, o mundo pareceu se calar.

O tempo suspenso entre nós tinha o gosto de algo perigoso — como se minhas palavras tivessem aberto um espaço onde o destino pudesse entrar e fazer o que quisesse.

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O acaso a meu favor - Página 66

Por Clara…

Depois do almoço, regado a conversas paralelas e muitas risadas, acabei optando por passar o intervalo no escritório dela. 

Por pura curiosidade — e talvez por querer estender um pouco mais aquele momento — pedi que me explicasse o que significavam aqueles gráficos coloridos na tela do computador.

Ela riu, daquele jeito divertido e um tanto incrédulo, como quem não esperava tal pergunta. Mas, ainda rindo, colocou os óculos de grau, e ali… minha respiração vacilou.

Era algo simples, quase banal, mas ver Verônica ajeitando os óculos e inclinando-se sobre a tela, com aquele ar de concentração e a voz firme, foi o suficiente para bagunçar meus pensamentos.

Tentei me concentrar no que ela dizia — afinal, fui eu quem pediu a explicação —, mas era difícil. Cada gesto dela, cada pausa breve entre as palavras, parecia um convite para me perder um pouco mais.

No pouco tempo que tínhamos, e dentro do que ela podia me ensinar, explicou tudo de forma tão paciente que até os números fizeram sentido.

Por isso você vê o Augusto o tempo todo ranzinza. — disse, finalizando a explicação com um sorrisinho de canto.

A forma como ela falou me arrancou uma risada, e por um instante, nossas vozes se misturaram no ar — leves, cúmplices, perigosamente próximas.

Depois da risada, um silêncio confortável se instalou — desses que não pesam, mas que fazem o ar parecer mais denso.

Verônica ainda olhava para a tela, mas seus dedos batiam distraídos sobre a mesa, como se o pensamento dela já tivesse ido para longe… ou, quem sabe, para perto demais de mim.

Eu observava o reflexo dela no vidro da tela — o contorno do rosto, a curva discreta dos lábios. Tudo nela exalava uma elegância que me deixava sem saber se devia admirar ou fugir.

— Conseguiu entender agora? — perguntou de repente, virando-se para mim.

O olhar dela me pegou de surpresa. Por um instante, esqueci completamente o que estávamos fazendo ali.
Meu coração pareceu bater mais alto que o som do ventilador da sala.

— Acho que sim… — respondi, um pouco sem voz.

Ela inclinou o corpo para frente, apoiando o cotovelo na mesa e o queixo sobre a mão, me analisando com aquele olhar que parecia ler o que eu não dizia.
Senti o rubor subir pelas bochechas, e Verônica, ao perceber, arqueou levemente a sobrancelha, um meio sorriso brincando nos lábios.

— Você fica vermelha quando mente, sabia? — disse em um tom provocante, quase sussurrado.

Sorri, sem coragem de negar.
E, por alguns segundos, ficamos ali — uma frente à outra — com o som do ar condicionado e o barulho distante da pessoas no mercado sendo a única testemunha daquele quase-acontecimento.

Entre risos e pequenas provocações, o tempo passou sem que eu percebesse. Verônica, que até então parecia relaxada, começou a me lançar perguntas curiosas — dessas que misturam curiosidade e algo mais profundo.

Eu, claro, me divertia com isso. Respondia algumas, deixava outras no ar, só pra ver o modo como ela franzia o cenho quando não obtinha o que queria.
Ver Verônica perder um pouco do controle, mesmo que por segundos, era… uma das minhas cenas favoritas.

— Mas então… — ela começou, entortando ligeiramente a boca, tentando disfarçar o incômodo sob um tom quase casual.

— Aquela mulher que veio aqui mais cedo… — pausou, e pude jurar que escolhia as palavras com cuidado, como quem anda por terreno perigoso. — Vocês se conhecem há muito tempo?

Dei de ombros, fingindo indiferença.

— Já teve, ou tem alguma coisa… ainda? — completou, tentando soar natural, mas a tensão em sua voz entregava tudo.

Por dentro, eu queria rir. Por fora, tentei manter o ar mais neutro possível — mas é difícil conter o riso quando se vê Verônica, a mulher mais fria e contida que conheço, tropeçando nas próprias palavras por… ciúmes?

A olhei de relance, e por um instante ela desviou o olhar, como se tivesse dito algo que não deveria.
Seu rosto estava sério, mas os dedos tamborilando levemente sobre a mesa a traíam.

— “Ainda?” — repeti, fingindo surpresa, arqueando uma sobrancelha. — Está me fazendo um interrogatório, dona Verônica?

Ela soltou o ar lentamente, entre um riso nervoso e um suspiro irritado.

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O acaso a meu favor - Página 74

  Continuação — O beijo… por Verônica O “quase” entre nossas bocas dura longos segundos — segundos que esticam o mundo, que dilatam o ar ao...