Continuação Por Clara....
Ao abrir automaticamente as portas sanfonadas de alumínio daquele lugar, todos nós entramos. Eu, já acostumado com a rotina, vou direto ao caixa e começo a ligar os computadores e ventiladores do local.
Vejo Augusto e Verônica trocando algumas palavras com o rapaz que estivera comigo lá fora há pouco — talvez estejam apenas se conhecendo. Um sentimento estranho me invade, como se alguém me observasse. Olho para os lados, depois para trás, e percebo Verônica desviando o rosto enquanto pergunta algo ao rapaz. Um leve sorriso de canto surge em meus lábios.
Quando menos espero, a turma dos dois turnos de repositores chega ao mercado. Assim que me notam, cumprimentam primeiro Verônica e Augusto, que estão lá na frente, e logo vêm em minha direção com a algazarra de sempre.
Seguimos juntos até o espaço destinado ao açougue, e então levo um baita susto: os freezers já estavam impecavelmente instalados e brilhando no centro do mercado. Minha reação não foi diferente da minha animação. Os meninos abriram uma das portas e viram que a temperatura estava perfeita para receber as carnes. Para não perder a piada, soltei:
— Ainda bem, as carnes da minha casa já até acabaram mesmo.
Ao ouvirem meu comentário, os meninos caíram na risada, e alguns até concordaram comigo.
Quando menos esperamos, Juliana se aproxima de nós e se junta à pequena roda diante dos freezers. Seus olhos percorrem o brilho metálico das portas como quem não vê ali nada além de um detalhe banal. Então, com a voz carregada de ironia, solta:
— Até que enfim, algo diferente neste mercado.
O tom é o mesmo que ela passou a cultivar de um dia para o outro, quase como um adereço que veste para provocar. Desde a vez em que insinuou que eu estava recebendo favores de Verônica, por conta de nossa aproximação, nunca mais a vi com o mesmo olhar. Mal sabe ela que entre nós não há nada além do profissional — talvez, no máximo, uma amizade leve, quase rasa, que nasceu sem intenção.
Deixamos o salão principal e seguimos para o galpão, nos fundos do supermercado, onde batemos nosso ponto. Aquele espaço sempre me pareceu um improviso: uma mesa simples, o cheiro de café passado às pressas, alguns pacotes de biscoito esquecidos. Também é lá que fica o bebedouro, testemunha silenciosa de nossas pausas rápidas. Verônica já comentou que em breve isso mudará. E, de fato, espaço não falta para transformar aquele canto esquecido em algo mais digno, mais organizado, à altura dos que trabalham ali.
Ainda faltavam alguns minutos para a abertura do mercado quando Verônica, acompanhada do irmão, apareceu no galpão chamando nossa atenção. Eu, por azar ou sorte, tinha acabado de colocar o mergulhão na água para ferver. Então fiquei naquela situação ingrata: prestar atenção no que eles diziam e, ao mesmo tempo, vigiar a panela como se fosse um tesouro prestes a explodir. No fim, parecia personagem de ditado popular, com um olho no padre e outro na missa.
Enquanto eles falavam sobre as tarefas do dia, eu, ao invés de me concentrar no assunto, estava ocupado demais encarando a boca da Verônica — e esquecendo da água fervendo. Sorte minha estar no fundo do galpão, onde ninguém poderia notar a cena patética do meu hiperfoco.
De repente, sinto os olhos dela sobre mim. E, pior, ela percebe exatamente para onde eu estava olhando. O que ela me devolve não é um sorriso aberto, mas aquele meio-riso nos olhos, que denuncia tudo sem dizer nada. Eu, por dentro, só pensava: pronto, agora acabou pra mim. Se um buraco tivesse se aberto no chão naquela hora, eu teria mergulhado de cabeça sem pensar duas vezes.
Próxima página - O acaso a meu favor ... Página 58
Nenhum comentário:
Postar um comentário