quarta-feira, 20 de agosto de 2025

O acaso a meu favor - Página 55

Continuação por Verônica....

Depois de passar um pouco de raiva com os repositores — porque, convenhamos, homem quando resolve ser desajeitado consegue ultrapassar todos os limites da paciência —, finalmente conseguimos colocar tudo em ordem.
Ligamos os freezers, e lá ficaram, ronronando como motores satisfeitos, adquirindo a temperatura ideal para receber as carnes que ainda repousavam na câmera fria.

Respirei fundo, sentindo aquele peso nos ombros se dissolver pouco a pouco. O mercado estava, de fato, começando a ganhar um novo fôlego.

Olhei em volta, vi a equipe cansada, e fiz o que achava justo:
Os que saíram mais cedo do intervalo por ordem minha, descansem por trinta minutos agora. Os demais, que ainda não pararam, façam isso também.

Todos assentiram, sem contestar. E o silêncio que ficou foi quase reconfortante.

Peguei o celular para ver as horas e me assustei: 15h47.
A correria tinha engolido meu dia, e percebi que não havia colocado nada no estômago desde cedo.
A fome, que antes havia desaparecido na empolgação da chegada dos freezers, voltou com força na calmaria que se seguiu.
Era como se meu corpo, agora que já não estava em alerta, cobrasse a conta da adrenalina.

Olhei em volta: papéis pela mesa, planilhas abertas no computador, meu celular cheio de mensagens não lidas. Parte de mim queria continuar ali, resolvendo cada detalhe do dia, mas a outra gritava por um simples prato de comida.

Suspirei, ajeitando os óculos no rosto, e pensei: Não adianta nada segurar o peso de uma empresa inteira se eu não consigo cuidar nem de mim mesma.

Abri o aplicativo de delivery e comecei a rolar as opções. Nada parecia apetitoso. Tudo me parecia ou muito pesado ou muito demorado. Fechei de novo. Peguei a bolsa.
— Vou sair só um instante. — anunciei, quase para mim mesma, mas alto o suficiente para Augusto, que passava pelo corredor, escutar.

Ele me lançou aquele olhar de quem quer perguntar “Quer que eu vá junto?”, mas se conteve. E ainda bem, porque eu precisava de alguns minutos sozinha.

No carro, o silêncio me fez bem. Liguei o rádio baixo, apenas para não ouvir o som do meu próprio estômago roncando, e segui em direção a uma lanchonete simples que ficava a duas quadras dali. Não era nada sofisticado, mas serviam um prato feito honesto, quente, e era isso que eu precisava.

Enquanto esperava o pedido, abri novamente as fotos dos freezers no celular. Sorri sozinha.
Cansada, esfomeada, estressada — mas feliz.
Afinal, cada conquista tem gosto melhor quando a gente paga o preço para alcançá-la.

Não demorou nem quinze minutos e meu pedido chegou, e meu estômago agradeceu como se tivesse recebido o presente mais valioso do mundo. A cada garfada eu sentia minhas forças voltarem, como se um fio invisível estivesse religando minha energia. Mas, se eu pudesse escolher, naquele exato momento trocaria qualquer freezer novo por um travesseiro e aquele cochilo sagrado depois do almoço.

Sorri sozinha diante do pensamento. Mas como nasci bonita e ainda tento não falir a própria empresa da minha família, levantei da cadeira com uma falsa elegância, paguei a comanda e segui de volta ao supermercado.

No carro, o calor da tarde batia no vidro, e por um instante quase me convenci a dar mais cinco minutinhos estacionada ali, com os olhos fechados. Mas não. O mercado precisava de mim, e a sensação de responsabilidade sempre gritou mais alto do que meu cansaço.

Quando voltei, encontrei alguns dos meninos rindo baixinho perto da entrada. Ao me ver, todos se recompuseram rápido — era engraçado e ao mesmo tempo satisfatório ver como minha presença ainda impunha ordem. Passei por eles sem dizer nada, mas por dentro estava com vontade de rir.

Seguir direto para o escritório, mas antes de sentar, fui até os freezers. Ali estavam, alinhados, imponentes, como soldados prontos para a batalha. Toquei a lateral de um deles, fria, firme. Senti aquele orgulho crescer de novo no peito.

— Augusto, amanhã pela manhã quero todas as carnes embaladas a vácuo nesses freezers. — ordenei, firme, cruzando os braços enquanto olhava para o brilho novo dos equipamentos.

Ele ergueu as sobrancelhas, respirou fundo, como quem já estava se preparando para a correria que viria, mas apenas assentiu com a cabeça.
— Pode deixar, Verônica. — respondeu sem titubear, ainda que eu tenha percebido o peso da responsabilidade na sua voz.

Caminhei lentamente em volta dos freezers, como se estivesse inspecionando uma obra de arte recém-inaugurada. Não eram apenas caixas de aço refrigerado. Para mim, representavam muito mais: investimento, risco, futuro.
E não deixei de pensar no tanto que sangrei o caixa para vê-los ali, alinhados.

Me virei para os meninos que estavam próximos.
— E quero todo mundo ajudando. Isso aqui não é trabalho de um só, é da equipe inteira. — falei em tom que não deixava espaço para dúvidas.

Eles se entreolharam, sérios. Era isso que eu queria ver: respeito, disciplina. Porque freezer cheio de carne, organizado, bonito, não era apenas estética — era lucro, era sobrevivência da empresa.

Quando terminei, senti aquele peso bom de dever cumprido pelo menos por hoje. Só que ao mesmo tempo, dentro de mim, uma voz insistia: Verônica, amanhã começa a parte difícil de verdade.

Se depender de mim, essa empresa vai florescer. Nem que eu tenha que engolir o mundo a cada garfada, entre um cochilo negado e outro.

Próxima página - O acaso a meu favor ... Página 56

O acaso a meu favor - Página 54

 Por Verônica....

Ao ver os primeiros funcionários chegando, ajustando seus uniformes e trocando cumprimentos sonolentos, volto minha atenção para a folha de pagamento aberta sobre a mesa. Uma a uma, reviso as anotações, calculando o que cada um retirou pelo nosso convênio interno — aquele sistema simples, mas que já ajuda tanto: o colaborador pega o que precisa no mercado e, no final do mês, descontamos direto do salário.

Mas, enquanto preencho valores, minha cabeça está em outro ponto.
Quero algo mais. Algo que realmente faça diferença no dia a dia deles.

Abro uma nova planilha e começo a rabiscar números. Minha ideia é acrescentar um cartão alimentação para cada colaborador, com no mínimo trezentos reais de saldo mensal. É um valor modesto, mas suficiente para aliviar o bolso e dar mais autonomia.

Sei que, olhando friamente para a situação da empresa hoje, o lógico seria cortar benefícios, não acrescentar. O caixa anda frágil, e o investimento no açougue já deixou nossas reservas no vermelho. Mas não consigo pensar só no curto prazo. Uma empresa boa não se constrói apenas com lucro; se constrói com gente motivada, com equipe que veste a camisa porque se sente cuidada.

A caneta pausa sobre o papel.
O pensamento é arriscado, sim.
Mas acredito que, quando você entrega algo melhor para quem está ao seu lado todos os dias, a resposta vem em forma de produtividade, comprometimento... e resultados.

Respiro fundo.
Anoto no topo da planilha: Projeto Cartão Alimentação — Implementar em 60 dias.

Eu sei que vai apertar, mas é assim que se cresce: investindo nas pessoas certas.

Não serei boa. Esse projeto do cartão alimentação só vai sair do papel depois que cada funcionário em aviso prévio deixar, de vez, os pés fora da nossa empresa.
Não é ajuda para todos — nunca foi. É recompensa. Reconhecimento para quem segue as regras, veste a camisa e entende que disciplina é tão importante quanto habilidade.

Volto a rabiscar na planilha, marcando mentalmente os nomes que já sei que não verão esse benefício.
Sei que parece frio, mas é assim que se mantém uma equipe de verdade: filtrando.

E, no meio disso, o pensamento do galpão volta a martelar. É quase um desejo proibido, como um doce caro que você sabe que não pode comprar… mas que fica olhando pela vitrine.
Um galpão enorme, numa das avenidas mais movimentadas de Caldas. Aquelas fotos ainda estão vivas na minha cabeça — consigo até imaginar a fachada com a nossa marca, a entrada ampla, os corredores cheios de movimento.
Só de pensar, meu peito aperta de empolgação… e preocupação.

Hoje, pelo menos, tenho algo concreto para comemorar: depois de dias de atraso, chegam os tão sonhados freezers. E não são só bons — são lindos!
Prateados, imponentes, com aquela tampa de vidro que deixa tudo visível. É o tipo de equipamento que transforma a aparência do mercado, que faz cliente confiar só de olhar.

Respiro fundo.
Por um momento, deixo o galpão para depois e me concentro nesse passo.
Um freezer novo não muda o mundo, mas pode ser o primeiro tijolo de algo muito maior.

As horas se arrastaram e, quando percebo, já passam das quatorze horas… e eu não coloquei um único grão de comida na boca.
Abro o aplicativo no celular para pedir algo rápido, mas antes mesmo de finalizar o pedido, ouço três leves batidas na porta.
Era o Augusto, meio inclinado para dentro, como se soubesse que vinha com notícia boa.

— Os freezers já chegaram! — anunciou, com aquele ar de quem traz um troféu.

Na hora, minha fome desapareceu como se nunca tivesse existido.
Levantei rápido, ajustando os óculos no rosto — um gesto quase automático quando estou prestes a tomar as rédeas da situação.

— Chame todos os repositores. Inclusive os que ainda estão no intervalo. — falei, sem margem para questionamentos.

Augusto acenou e, como se já tivesse previsto minha ordem, em poucos minutos estava de volta, ladeado pelos rapazes. Todos atentos, como soldados esperando o próximo comando.

A excitação estava ali, disfarçada sob meu tom firme. Freezers novos significavam mais do que espaço para mercadoria. Significavam avanço, imagem, impacto no cliente.
E eu faria questão de supervisionar cada centímetro de onde eles seriam colocados.

Depois de todo o trabalho pesado para apenas retirar os freezers do caminhão e colocá-los no chão do mercado, finalmente consigo respirar um pouco mais aliviada.
Ver aqueles equipamentos sendo levados e posicionados, um a um, no lugar certo, me trouxe uma sensação de conquista que não sei explicar. Era como se cada freezer fosse mais do que metal e vidro — eram peças de um futuro que eu tanto desejo construir.

Peguei o celular, não resisti.
Comecei a filmar, registrando cada detalhe com brilho nos olhos.
Em seguida, enviei os vídeos para o Igor.
Ele não demorou nem um minuto para visualizar e responder:

“Vamos arrebentar!!!”

Soltei uma risada sozinha, imaginando a empolgação dele do outro lado da tela. Típico de meu irmão caçula — intenso, exagerado, mas sempre acreditando em nós.
E essa fé dele, de alguma forma, me dá forças.

Mas, como nada sai perfeito, no meio do movimento percebo um dos funcionários começando a instalar os freezers de forma completamente errada.
De imediato, minha expressão mudou.
Caminhei até ele e, com voz firme, quase cortante, falei:

Assim não!!!

Ele parou, assustado, enquanto os outros se entreolharam em silêncio.
Controle é essencial.
E aqui, no meu mercado, cada detalhe tem que ser do jeito certo — ou não será feito.

Próxima página - O acaso a meu favor ...Página 55

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

O acaso a meu favor - Página 53

 Continuação por Clara...

Como hoje a Verônica mesma mandou mensagem retribuindo o favor de ontem com uma folga, decidi que vou aproveitar o dia para colocar a casa em ordem e levar o Bentinho no veterinário. Preciso aproveitar esse raro momento de calma — se fosse pelo Augusto, ele com certeza arranjaria uma desculpa qualquer para me puxar pro turno da tarde. Só de pirraça. Mesmo sem necessidade. Só pelo prazer de mandar.

Mas hoje não. Hoje é meu. E do Bento.

Ele está ali agora, se espreguiçando todo, com a língua pra fora e aquele ar de quem acha que é dono do mundo. Eu não discuto. Ele manda mesmo.

A cada três meses, como orientação da Dra. Laís, o levo para os exames de controle. Desde aquela crise... eu nunca mais fui a mesma.

A obstrução urinária foi um susto que não desejo pra ninguém. Um ano atrás, eu nem percebi. Estava tão atolada no trabalho, tão imersa em sobreviver e dar conta de tudo, que simplesmente... não vi.
Não vi que ele bebia menos água.
Não vi que evitava a caixinha de areia.
Não vi o sangue.
Não vi o olhar apagado dele.

Fui perceber quando já era tarde demais.

Me lembro perfeitamente daquela madrugada. Bento gemia de dor e eu, em pânico, ligava pra todos os números de emergência possíveis. Quando a Dra. Laís atendeu, parecia que uma parte do desespero tinha se dissolvido só de ouvir a voz calma dela do outro lado da linha.

Ela me recebeu de moletom e cabelo preso, olhos inchados de sono, mas coração enorme.
Não me julgou. Não reclamou.
Simplesmente cuidou.

Fiquei sentada naquela cadeira desconfortável da recepção, com a alma em pedaços, achando que ia perder meu melhor amigo.
Meu companheiro de todas as horas.
O meu pequeno herói matador de baratas que me acompanha até no banheiro em sinônimo de segurança — Começo a rir com a lembrança da cena, pois mesmo ele se esfarelando de sono, se eu levanto na madrugada nem que seja para tomar uma água, lá está ele atrás de mim como uma sombra.

O mesmo gato que se aninha em mim nos dias tristes e que nunca pediu nada além de carinho e atenção — e que eu falhei em dar.

Me culpei tanto...
Me senti um monstro.
Mas Bento sobreviveu. Com força, teimosia e um miado rouco de quem ainda tinha muito o que viver.

Desde então, não descuido mais.

Hoje ele vai ao veterinário, vai receber carinho da Dra. Laís e, quem sabe, até ganhar um petisco — ou dois, se fizer aquele olhar pidão.
E eu... vou respirar. Vou cuidar dele. E cuidar de mim também.

Porque cuidar do Bento, de alguma forma, me lembra que eu também mereço ser cuidada. Mesmo que eu demore a aceitar isso.

Organizei a casa por cima, só o suficiente pra não sentir culpa na volta. Coloquei água fresca na planta da cozinha, troquei os panos, abri as janelas. O Bentinho me seguiu em silêncio por alguns cômodos, como quem supervisiona, mas sempre de um jeito charmoso e desatento, pulando nos móveis como se estivesse me ajudando.

Peguei a caixa de transporte no armário alto, e só o barulho dela sendo colocada no chão já fez ele se encolher todo.
— Ei, mocinho, nada de drama hoje — falei com a voz mansa, enquanto colocava uma mantinha limpa no fundo.

Com um pouco de conversa e dois sachês de chantagem, ele entrou sem brigar.

Chamei o nosso transporte pelo aplicativo e seguimos viagem caminho até a clínica. O rádio do carro tocava uma música leve, e o tempo nublado deixava a cidade com uma cara meio nostálgica, meio bonita. Em cada farol, eu olhava para o lado e falava alguma coisa com ele.

— Dessa vez é só exame, viu? Sem cateter, sem hospitalização. Palavra de honra. —  Dizia olhando para ele na caixinha de transporte.

Chegando na clínica, a recepcionista sorriu assim que me viu.
— Oi, Clara! Trouxe o reizinho hoje?

— Ele mesmo — respondi, sorrindo ao levantar a caixa de transporte. — Veio só dar o ar da graça.

Enquanto esperava, reparei como a recepção da Dra. Laís sempre tinha cheiro de lavanda e café. Um espaço pequeno, mas aconchegante. Um daqueles lugares onde até a espera parece gentil.

Quando a porta da sala de atendimento se abriu, o rosto da Dra. Laís surgiu com aquele mesmo sorriso afetuoso de sempre.

— E aí, Bento! Já fez drama ou deixou pra cá?

— Hoje foi bonzinho... mais ou menos — disse, colocando a caixa na mesa de exame. — Mas ele sabe que aqui tem petisco escondido, então não reclama muito.

Ela o examinou com cuidado, como se estivesse manuseando porcelana rara. Conversava com ele em voz baixa, como se fossem velhos amigos. E, em algum ponto, ela parou de falar com o gato e se virou pra mim:

— Sabe, Clara... ele tá bem. Muito bem, aliás. Os exames vieram ótimos. Você tem feito tudo certo.

Sorri. Mas não conseguir disfarçar minha insegurança.

— Obrigada... — respondi num sussurro. — Eu sempre acho que posso estar esquecendo alguma coisa, sabe?

Ela assentiu.
— Nós que temos muito amor por um serzinho com o olhar tão maroto assim...— Disse de uma maneira que me fez rir. —  sempre achamos isso.

E foi ali que percebi: há pessoas que cuidam de bichos, e há outras que cuidam da gente também, mesmo sem dizer diretamente. A Dra. Laís era uma dessas.

Pagamos, pegamos os exames impressos e, antes de sair, ela ainda me chamou:

— Ah, Clara... diga pro Bentinho que ele é um dos meus pacientes preferidos.

— Pode deixar. Mas acredito que ele já sabe. — Digo levantando a gaiola e o encarando através da grade. 

No caminho de volta, Bentinho dormia no banco do passageiro, ronronando baixinho.
E eu... me sentia em paz.

Próxima página - O acaso a meu favor ...Página 54

O acaso a meu favor - Página 52

 Por Clara...

Acordei com a luz da manhã filtrando pelas frestas da cortina. Não foi o despertador, nem o gato miando pela ração — foi uma notificação no celular. Estiquei o braço com preguiça e peguei o aparelho ainda com os olhos meio cerrados.

Mensagem da Verônica.

Endireitei no mesmo instante, como se meu corpo já soubesse que não dá pra ler nada dela de qualquer jeito. Desbloqueei a tela e li devagar:

— “Clara, bom dia!”
Sorri. Sempre me espanta como até o bom dia dela parece cuidadosamente pesado, como se tivesse passado por três revisões internas antes de sair.

— “Hoje não há necessidade de vir, está bem?”
Franzi a testa.
Ué?

— “Hoje o quadro está em perfeitas condições para você descansar.”

E ali, eu entendi. Ela lembrava. Ontem eu estava de folga. E mesmo tendo me chamado, agora queria compensar. Ela notou. Ela pensa em mim mais do que demonstra.

Li de novo.

— “Tenha um bom dia, e descanse!”

Soou como um comando... mas um comando com afeto. À moda dela, claro.
Ela se preocupa. Só não sabe muito bem como demonstrar.

Meu coração apertou. Fiquei um tempo olhando pra tela, com os dedos pairando sobre o teclado, sem saber exatamente o que responder. Cada palavra minha parece sempre correr o risco de passar do limite invisível que a gente finge que não existe.

Mas mesmo assim, escrevi:

— Bom dia, Verônica! Obrigada por avisar. Fico feliz em poder descansar um pouco mais hoje. E... obrigada por lembrar de ontem. Eu gosto de ajudar, sempre que precisar.

Pensei em colocar um “coração” no fim. Apaguei.

Substituí por:

— Tenha um ótimo dia também. E se precisar, tô por aqui. Mesmo de pijama.

Sorri. Era bobo, mas era meu jeito. Um meio-termo entre o profissional e o que... talvez, nem eu consiga nomear ainda.

Enviei. Encostei o celular no peito e fiquei ali, deitada, ouvindo o ronronar de Bento.
Mas minha cabeça, bom... já estava no mercado. Ou melhor — nela.

Olho pra bola de pelos enrolada nas minhas pernas. Ele dorme feito rei, dono absoluto do pedaço — e talvez de mim também. Dou um sorriso presunçoso.
Ando... diferente. Leve. Não é que a vida esteja fácil — nunca foi —, mas ultimamente algo em mim está mais calmo. Como se a tempestade que sempre morou no meu peito tivesse aprendido a chover menos.

Algumas coisas ainda testam meu limite, me cutucam por dentro, me desafiam. Ontem mesmo, aquele silêncio entre eu e Verônica no carro... aquilo disse mais do que qualquer conversa inteira. Mas, mesmo com essas pontas soltas, tem algo em mim que está mais desperto.

Não sei explicar ao certo. É como se, por muito tempo, eu estivesse apenas sobrevivendo — seguindo, cumprindo, existindo.
Mas agora... agora eu sinto.
Confuso, sim.
Mas real.

Essas pequenas trocas de olhar, a atenção dela em detalhes que ninguém mais nota, o jeito que fala tentando parecer distante, mas sempre escolhendo palavras com cuidado... tudo isso me atinge. Devagar, feito onda que não derruba, mas carrega.

Sinto que estou sendo forçada a viver, mas pela primeira vez, viver não dói.

Essas sensações, ainda que bagunçadas, têm um gosto estranho de liberdade.
Talvez seja isso: estou me permitindo sentir. E me sentir viva, mesmo sem saber o que vai acontecer depois.

Acaricio o gato com a ponta dos dedos, ele resmunga preguiçoso e muda de posição, me aquecendo ainda mais.

Fecho os olhos.
Não quero respostas agora. Só quero ficar aqui, com essa leveza nova que me visita sem pedir licença.

Próxima página - O acaso a meu favor ...Página 53

O acaso a meu favor - Página 51

 Continuação por Verônica...

Acordei com a cabeça mais leve do que fui dormir. Talvez não exatamente leve... mas funcional. Consegui separar o que era emocional do que era prático, e isso já me deu uma vantagem.
Tomei café sem pressa, respirei fundo e fui direto para o mercado.

Hoje, Igor chega com Lia. Noite movimentada pela frente — e nem falo do que ele traz nas malas, mas sim do que pode vir no olhar. Sinto que ele está diferente desde a última visita. Mais sério. Mais distante. Mas, por enquanto, foco no que posso controlar.

Cheguei cedo, antes de todos. O silêncio do mercado vazio é algo que me conforta. Passei direto pro escritório, abri o computador, organizei planilhas, respondi e-mails... tudo no automático. Até que um deles me chamou a atenção.

Assunto: “Oportunidade comercial — galpão Caldas”.

Cliquei.

As fotos carregaram devagar, como se me provocassem. E logo de cara, meu coração bateu diferente. Um galpão grande, bem localizado, em uma das avenidas principais na entrada de Caldas. A estrutura... o espaço... aquele tipo de lugar que você olha e já vê vida dentro. Movimento. Gente comprando, mercadoria rodando, o cheiro de pão saindo de uma padaria no fundo, a possibilidade de um segundo açougue... Um sonho se materializando em pixels.

Fechei os olhos por um segundo. Se por foto eu já consegui imaginar mil e uma possibilidades... imagina vendo aquilo ao vivo?

Mas aí, a realidade me puxou de volta com força.

Dinheiro. Ou melhor, a ausência dele.

Já tirei tudo o que podia de uma das contas para a construção do açougue. Investi pesado — estrutura, equipamentos, mercadoria. O mercado está no vermelho, e eu sei disso melhor do que ninguém. Apostei tudo o que tínhamos no caixa de segurança. Uma jogada ousada, arriscada... mas necessária. Porque manter o mercado de pé, não é mais sobre lucro. É sobre sobrevivência. Sobre salvar um legado, sobre cuidar de quem trabalha comigo, de quem depende disso pra viver.

Se der certo — e eu acredito que vai dar — o retorno vem. A reforma vai chamar mais clientes, a nova disposição das prateleiras vai ampliar as vendas, o novo açougue vai bater de frente com concorrente grande. E com isso, espero pagar não só o que devo, mas também apagar o rastro de dívidas e processos que ainda me cercam como sombras.

Fechei o e-mail. Anotei o número do corretor no canto de uma folha. Não sei se posso... mas também não sei se posso ignorar.

No fundo, eu sei: meu problema nunca foi sonhar alto. Foi fazer isso com os pés no chão rachado.

Mas uma coisa é certa: se eu conseguir reerguer esse mercado, ninguém nunca mais para a empresa dos Moreli. 

Peguei o celular e olhei a hora. Eram exatamente 5h57. O mercado ainda dormia, mas minha mente já estava em plena atividade. Estava há tempos acordada, reorganizando mentalmente as tarefas do dia, mas foi nesse momento que senti aquela vontade quase involuntária de vê-la... ou pelo menos saber se ela estava bem.

Deslizei a tela e abri o aplicativo de mensagens. Clara. O nome dela apareceu no topo da lista — havia estado online pela última vez às 23h14. Me pergunto o que ela fazia acordada tão tarde... mas logo desvio o pensamento, tentando não cair no exagero.

A foto de perfil dela me arranca um sorriso involuntário. Está com um gato branco no colo, com manchinhas pretas nas orelhas e no topo da cabeça, e olhos de um azul tão forte que por um momento achei que fosse filtro, montagem, ou sei lá o quê. Mas não. É real. Ela, o gato, os dois naquela simplicidade bonita que dá vontade de entrar na foto e ficar ali um pouco.

Fiquei um tempo olhando pra tela antes de abrir a caixa de mensagem. Pensei e repensei cada palavra antes de digitar. Não queria parecer estranha. Ou mais envolvida do que deveria. Respirei fundo. Escrevi:

— Clara, bom dia!

Parei. Olhei. Simples. Direto. Educado. Mas talvez seco demais?

Continuei:

— Hoje não há necessidade de vir, está bem?
Preciso ser justa. Ontem tirei ela da folga, sem cerimônia. Merece descansar.

— Hoje o quadro está em perfeitas condições para você descansar.
Se fosse outro funcionário, admito: eu não teria me preocupado em justificar tanto.
Sorri sozinha. Ri de mim mesma. Estou sendo cuidadosa demais... só com ela.

Finalizei:

— Tenha um bom dia, e descanse!

Li de novo. Soou como uma ordem? Talvez. Mas é isso mesmo que quero. Que ela descanse. Que não se sinta pressionada. Que saiba que eu vi o esforço de ontem — e que, apesar de não saber dizer isso com facilidade, eu reconheço.

Pensei em colocar um emoji. Desisti. Ainda sou velha demais pra esses detalhes.
Cliquei em "enviar".

Guardei o celular e me inclinei pra frente, voltando à tela do computador.
Mas a cabeça... bem, a cabeça já não estava mais ali.

Próxima página - O acaso a meu favor ... Página 52

O acaso a meu favor - Página 50

 Por Verônica....

Era a última semana da Juliana no mercado. Já estava de aviso prévio, e eu, sinceramente, contava os dias. Não por rancor, mas por esgotamento. Meu limite com ela já tinha sido ultrapassado há tempo. Hoje, tudo o que eu queria era cumprir a formalidade, encerrar o capítulo, virar a página.

Mas quando ela entrou no escritório, com aquele papel na mão, rosto pálido e passos hesitantes, eu soube que não era um simples papel de atestado ou algo do tipo. O mundo pareceu parar por um instante. Peguei o papel. Era um exame de teste de gravidez. Positivo.

Não consegui dizer nada de imediato. Só respirei fundo. De novo, eu teria que engolir uma situação que não pedi. Não podia demitir. Legalmente, eticamente… estava de mãos atadas. 

Saí do escritório com um nó na garganta. Pus a mão no cabelo, joguei pra trás, tentando manter a postura. Sabia que Clara estava observando. Sempre está.

Foi aí que decidi: "Vou levar ela pra casa hoje." Nem pensei muito. Só sabia que, naquele turbilhão, Clara era a única presença que não me pesava. Talvez até o contrário. Chamei, pedi pra esperar. E ela esperou, como sempre faz, sem perguntas.

O silêncio no carro era quase reconfortante — e ao mesmo tempo, doloroso. Me senti exposta de um jeito estranho. Cansada, vulnerável. Mas, ao mesmo tempo, havia algo ali que me mantinha firme. Clara.

Você percebe tudo, não percebe, Clara? — perguntei, sem pensar. Era mais um reconhecimento do que uma pergunta.

Nem tudo… mas o que me importa, eu percebo. — ela respondeu. Aquelas palavras... simples, mas certeiras. Como tudo nela.

Tive que respirar fundo pra manter a voz firme.

Hoje foi um dia difícil. Mais do que costumo admitir… mas quando você tá por perto, parece que as coisas pesam um pouco menos.

Foi o máximo que consegui me permitir dizer. E já era muito. Muito mais do que costumo mostrar a alguém. Ela soltou uma risada nasal em sinal de nervosismo.

Juliana entregou um papel hoje. Daqueles que viram a página… ou fecham livro.

Não contei o conteúdo. Ainda não. Ainda estava tentando processar.

Você vai ficar bem? — ela perguntou. Com aquela voz baixa, quase doce, que me desmonta.

Não sei, — admiti, olhando pra estrada — mas agora… agora só quero chegar em casa. Te deixar segura. Depois, eu penso no resto.

Não sei o porquê de ter me oferecido para levá-la em casa.
Talvez fosse culpa. Culpa por ter criado nela uma expectativa que agora não posso cumprir. Fiz uma promessa sem nunca ter dito em voz alta — a de que, com a saída da Juliana, as coisas melhorariam para ela.
Mas agora… tudo mudou. E eu não tenho como sustentar essa promessa.

E foi isso. O resto do caminho foi feito em silêncio. Um silêncio carregado de tudo o que não dissemos — e que talvez, um dia, a gente diga.

Quando parei o carro, ela me olhou antes de sair. Agradeceu. Me desejou boa noite. E naquele instante, o mundo inteiro se resumiu àquela troca curta, contida, mas cheia de coisa não dita.

Ela entrou. Eu fiquei ali. Mãos no volante, o corpo imóvel, o peito cheio demais.

Hoje, eu não consegui demitir ninguém. Mas perdi muito mais do que controle.
E talvez, tenha ganhado algo que ainda não sei nomear.

Ainda estava ali. Parada em frente ao prédio da Clara, com o motor desligado e os faróis apagados. Ela já tinha subido, já devia estar tirando os sapatos, talvez preparando um café, ou quem sabe sentada em silêncio, do jeito que eu vejo que ela gosta. E eu ali... travada.

O mundo parecia quieto demais. E eu também.

Apertei o volante com força sem perceber. Os dedos, tensos. O maxilar, travado. O peito... pesado.

Essa mania de me fazer forte o tempo todo... Às vezes parece que eu estou tentando segurar as paredes do mundo com as próprias costas. E mesmo quando alguém me oferece uma fresta de acolhimento, eu me saboto. Me fecho. Me tranco.

Soltei o ar devagar. Bati os dedos duas vezes no volante, como quem tenta despertar de um transe.

Vamos lá... — falei baixinho, só pra mim, quase como um empurrão interno.

Girei a chave. O carro voltou a ronronar baixinho, como se perguntasse: "Tem certeza que quer voltar pra casa agora?"

Não, não tinha. Mas também não sabia o que fazer com tudo que sentia.

Engatei a marcha. Voltar era o único movimento possível. Porque parar, aqui, olhando pro prédio dela... me deixava exposta demais até pra mim mesma.

E enquanto dirigia, só uma coisa me rondava a cabeça: até quando vou conseguir fingir que Clara não me atravessa do jeito que atravessa?

Próxima página - O acaso a meu favor ... Página 51

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

O acaso a meu favor - Página 49

 Por Clara....

Estranhei quando vi o Augusto saindo com a mochila nas costas e o capacete na mão. Ele não saiu como de costume — parecia contrariado, meio pisando duro, como se o chão não fosse digno dos pés dele. Aquilo me incomodou, mas como já estava perto do horário de fechar, deixei pra lá. Virei pra Diana e falei:

Di, vou ajudar os meninos no fechamento... qualquer coisa, me chama, tá?

Ela girou a cadeira e me olhou com aquele jeito atento dela, assentindo com a cabeça. Então fui. Tinha mercadoria espalhada por todo canto, prateleira pela metade, e aquela sensação de “vamos correr antes que a porta se feche”. Augusto geralmente cuida dessa parte, mas como foi embora mais cedo, decidi quebrar o galho.

Eu não tenho a força de um homem, mas tenho minha lógica. Peguei um carrinho de compras e pedi pros meninos colocarem as caixas ali, assim eu ia rodando pelo mercado, organizando tudo com método. Já deixei meu caixa contado — é o jeito de não travar ninguém na hora de fechar.

Nesse horário é sempre uma correria que só. A gente limpa, repõe, organiza, higieniza. Um olho na tarefa, outro no relógio, e o pensamento no banho que espera em casa.

Foi aí que tudo pareceu congelar por uns segundos.

Juliana entrou pela porta com uma expressão pálida, quase sem cor. Na mão, um papel amassado. O ambiente, que estava cheio de conversa solta, risadas, piadas entre uma caixa e outra... ficou mudo. O barulho dos passos dela ecoou pelo corredor até sumir na porta do escritório da Verônica.

Não sei o que tinha naquele papel. Mas sabia, só de olhar, que alguma coisa ia mudar depois daquilo.

Os minutos, depois que Juliana entrou naquele escritório, começaram a escorrer lentos... como se o tempo estivesse segurando a respiração junto comigo. Eu fingia que organizava as prateleiras, mas minha cabeça estava em outro lugar — ou melhor, em uma só pessoa: Verônica.

Tentava manter o foco, contar mentalmente as mercadorias, fazer o que precisava ser feito, mas a verdade é que a ansiedade começou a se espalhar pelo meu peito como se fosse ocupar todo o espaço. Meu coração batia forte demais, como se quisesse sair dali antes de mim.

Foi quando vi Juliana saindo da sala. Ela desceu o corredor de cabeça baixa, segurando aquele mesmo papel. Foi direto até uma prateleira, pegou um produto qualquer — nem lembro qual — e foi ao caixa, como se nada tivesse acontecido. Mas eu vi. Vi nos olhos dela. Tinha alguma coisa errada ali. Muito errada.

Foi só aí que Verônica apareceu.

Veio caminhando firme, como quem quer mostrar que está no controle, mas eu conheço seus gestos. Passou a mão pelos cabelos, puxando-os pra trás, do jeito que sempre faz quando está nervosa. O rosto dela tentava manter a compostura, mas os olhos... ah, os olhos dela estavam dizendo outra coisa. Coisa que ninguém ali pareceu perceber. Mas eu percebi.

Ela anunciou que podíamos encerrar as atividades, com a voz firme, mas um leve atraso nas palavras. Como se cada sílaba pesasse mais do que devia.

E eu fiquei ali, parada por um segundo, segurando uma caixa de leite, com a sensação de que alguma coisa, bem grande, estava prestes a desmoronar.

...............................................................................................

Eu já estava desligando meu caixa quando vi Verônica se aproximando. O mercado estava quase vazio, os meninos se dispersando, o som da musica diminuindo. Ela andava com aquele passo determinado, mas havia um certo peso nos ombros. Quando chegou perto, me chamou em voz baixa, mas firme:

Clara, espera um pouco antes de ir embora, por favor.

Assenti de imediato, sem nem perguntar o porquê. Só o jeito como ela disse já foi o suficiente pra minha garganta apertar.

Ela se afastou, foi até o fundo do mercado, trocou duas palavras com Diana e depois sumiu por um tempo no escritório. Fiquei ali perto do caixa, tentando fingir normalidade, organizando uns papéis que nem precisavam de organização. Mas por dentro... eu sentia o nervosismo crescendo como uma onda prestes a quebrar.

Quando ela voltou, os olhos estavam mais calmos, mas o rosto ainda trazia traços de tensão. Se aproximou de novo, agora com um ar mais suave, e disse, meio hesitante:

Vou te levar em casa hoje, tudo bem?

Demorei um segundo pra responder. Aquilo pegou no meio do peito, como se fosse uma pergunta simples, mas cheia de significado escondido. Engoli em seco, tentando controlar o sorriso que ameaçava escapar. Ela estava ali, me oferecendo algo tão pequeno... mas ao mesmo tempo, tão pessoal.

Tá... tudo bem sim. — respondi, baixinho.

Ela assentiu com a cabeça e fez um gesto quase imperceptível com os olhos, indicando que eu podia esperar perto da porta. E eu fui, sentindo as pernas meio bambas, como se o mundo inteiro tivesse mudado de tom só com aquela frase.

Enquanto eu aguardava, só conseguia pensar: o que foi que Juliana disse naquele escritório? E por que, mesmo em meio a tudo isso, Verônica olhou pra mim daquele jeito?

Próxima página - O acaso a meu favor ... Página 50

O acaso a meu favor - Página 48

 Por Verônica...

Quando ela me perguntou sobre o bilhete, por um instante senti o mundo desabar — como uma adolescente pega no flagra, o coração disparado, a mente um turbilhão de medo e vergonha. Mas me agarrei a um fio de força e assumi, do jeito que consegui. Por fora, parecia calma, quase indiferente, mas por dentro, meu peito batia tão forte que parecia querer explodir, igual à bateria de uma escola de samba na Sapucaí no auge do desfile.

Ao dizer que fui eu, senti como se tivesse jogado uma luz sobre um segredo pesado demais para carregar. Não sei exatamente o que deixei claro, talvez nem eu saiba direito... Só sei que ainda não tenho coragem para encarar tudo isso de frente.

Dispensei o Augusto mais cedo. Ele tentou me segurar, tentou me convencer a ficar, mas eu firmei: “Está tudo sob controle”. Ele relutou, resistiu, mas no fim teve que ir pra casa. Fiquei sozinha com os meninos. Os repositores mais novos... olha, pelo que tô vendo, eles estão pegando o jeito rápido, aprendendo as funções, cada dia mais seguros.

Observei o Luís e o Paulo hoje. Engraçado como cada um está lidando com a despedida de um jeito tão diferente. Um deles, nos últimos dias do aviso, está dando o melhor de si — como se quisesse sair deixando uma boa impressão, talvez até tentando consertar o que não fez antes. Já o outro... parece uma criança birrenta, emburrada por ter sido castigada. Faz tudo de qualquer jeito, largado, jogando as tarefas com desdém. Vive repetindo: “Se eu não fui o melhor, então deixo o melhor fazer.” — Só me restou rir por dentro. A cena que me vem é a de um senhor de idade cruzando os braços, fazendo birra igual menino mimado. Ridículo, mas quase cômico.

O Luís, acabei tendo que demitir. Falta de compromisso. É jovem, não o julgo, tem muito chão pela frente — mas não posso permitir que a responsabilidade de um pese nos ombros de outro. O dia que ele chegou bêbado... ali foi o fim da linha pra mim. Tentei relevar, mas tem limite. Aqui não é balada, é trabalho.

A Juliana... ah, a Juliana já virou um caso perdido. Tentei conversar, orientar, ajustar. Nada. Ela trabalha como se tudo tivesse que girar do jeito dela. Se não for assim, ela trava, boicota, dificulta. E eu estou cansada. Cansada de lidar com gente que acha que firmeza é opressão. Isso aqui não é creche, nem casa de caridade. É uma empresa. Tem custo, tem margem, tem meta, tem venda. E principalmente — tem despesa. Se não vende, não lucra. E se não tem lucro, eu não tenho como pagar o salário de ninguém.

Às vezes me pego pensando se eu tô sendo dura demais. Se não tô exigindo demais de gente que, às vezes, mal sabe o que quer da vida. Mas aí lembro que ninguém me deu colher de chá quando eu comecei. Tudo o que conquistei foi no braço, no suor, segurando a barra sozinha, muitas vezes com o coração em pedaços e o sorriso forçado no rosto.

Liderar não é só mandar. É carregar o fardo do que ninguém vê. É perder o sono por conta de conta que não fecha, de funcionário que falta, de produto que não chegou. É fingir que está tudo bem mesmo quando, por dentro, você só queria deitar e sumir um pouco. Mas não posso. Não posso porque tem gente que depende desse lugar, dessa empresa, dessa estrutura que meu pai levantou com tanto esforço. Tem família que vive com o que a gente gera aqui.

Às vezes, queria que entendessem isso. Que cada centavo conta. Que cada atitude afeta o todo. Que o mercado pode ser pequeno, mas o peso que ele carrega é imenso. Não é só comércio. É vida real. É salário, é aluguel, é conta de luz. É dignidade.

E eu... eu só queria, de vez em quando, poder respirar sem sentir que estou carregando o mundo nas costas. Mas não reclamo. Porque, apesar de tudo, sei do valor da nossa família. E sei que não cheguei até aqui pra recuar agora.

Próxima página - O acaso a meu favor .... Página 49

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

O acaso a meu favor - Página 47

 Por Clara....

Ao assumir o caixa, percebo uma movimentação mais intensa no mercado — tanto por causa da reforma quanto pelo aumento no número de clientes. Verônica havia ajustado o mix de produtos, priorizando os mais procurados no momento. Deu atenção especial aos itens sem glúten e zero lactose, atendendo à demanda que os clientes havia expressado com tanta clareza.

A procura por esses produtos foi tão intensa que não só esvaziou as prateleiras, como também zerou o estoque. Precisei da ajuda de um dos repositores durante toda a noite só para conseguir embalar as compras — não dava conta de atender e ensacar ao mesmo tempo.

Faltando duas horas para o fechamento, finalmente pude respirar. Acabei ficando com a Diana até o fim, e consegui convencer a Verônica de que ela ainda não estava pronta para encarar um movimento tão intenso. Mas, no fundo, a verdade era outra: por algum motivo que eu ainda não entendia, tudo o que eu mais queria... era estar ali. No mercado.

Com o movimento começando a acalmar, vi os pedreiros da obra se despedirem da gente no caixa com aquele bom humor cansado de fim de turno. Sorri de volta, tentando relaxar os ombros pela primeira vez em horas. Aproveitei a brecha e pedi licença à Diana para beber um pouco de água e ir ao banheiro. Ela assentiu com um aceno leve, e eu peguei minha garrafinha — aquela mesma — e segui pelo corredor estreito que levava aos fundos do mercado.

Lá atrás, entre o bebedouro e o banheiro, o silêncio era diferente. Mais íntimo. Mais meu. Desde o dia do bilhete, deixo a garrafinha sempre no mesmo canto. É um gesto bobo, quase infantil, mas vai que... vai que ela escreve de novo. Vai que eu não sonhei. Vai que ela, em algum lugar ali dentro, me viu.

A porta do escritório estava fechada — sinal de que ela devia estar ocupada. Mas, sinceramente, o que eu esperava? Que ela estivesse me esperando? Com aquele sorriso lindo, sereno, e o olhar confortavelmente cansado... mas ainda assim cheio de paciência quando o assunto era importante?
Sim. Talvez eu quisesse exatamente isso.

Talvez eu quisesse ser esperada.

Suspirei e continuei meu caminho até o banheiro. Fiz o que tinha que fazer ali, sem pressa, como quem tenta esticar o tempo num lugar onde, por algum motivo, começa a se sentir menos sozinha. Ao passar em frente à porta e vê-la ainda fechada, peguei minha garrafinha com um certo desânimo. Tinha algo no silêncio daquele corredor que me fazia sentir invisível. Segui em direção à entrada, pronta para voltar ao caixa e me juntar à Diana, quando ouvi o clique da maçaneta e, em seguida, meu nome ser chamado.

Paralisei. Como se um feitiço tivesse me atingido.

Por um segundo, achei que fosse coisa da minha cabeça — uma alucinação boba da mente cansada, faminta por atenção. Mas o som era real. A voz era dela. Verônica.

E naquele instante suspenso, tudo em mim quis acreditar que ela não me chamou por acaso.

 Virei devagar, tentando manter a expressão neutra, mesmo com o coração acelerado.

Verônica estava ali, parada na porta entreaberta do escritório, com as mangas da blusa levemente arregaçadas e os olhos cansados — mas atentos. Sempre atentos.

— Você tem um minuto? — perguntou, com a voz baixa, como se não quisesse interromper demais.

Assenti, me aproximando.

— Claro. Precisa de algo?

Ela deu um passo para o lado, abrindo mais espaço na porta, mas sem perder aquele cuidado que parecia pesar em cada gesto.

— Entra um instante, por favor.

O escritório estava do jeito de sempre: organizado, funcional, com a cadeira dela girada para o lado, como se tivesse acabado de levantar. Ela se encostou na beirada da mesa, enquanto eu permaneci de pé, segurando a garrafinha como se fosse meu calmante.

— Eu só queria saber como você está — disse, com um tom que tentava soar objetivo, mas deixava escapar uma preocupação real. — Hoje foi mais do que o esperado, e você ficou até o fim... sei que não é sua responsabilidade absorver tudo.

— Eu fiquei porque quis — respondi, mais rápido do que pretendia. — Achei melhor assim. E, sinceramente, não queria sair correndo. Gosto de estar aqui.

Ela assentiu devagar, o olhar abaixando por um instante.

— Eu notei. E por isso mesmo... se algum dia ficar demais, você pode me falar. Eu tô tentando manter o controle de tudo, mas às vezes não enxergo quem tá sobrecarregado até ser tarde demais.

Fiquei em silêncio por alguns segundos, absorvendo aquilo. Era uma preocupação profissional. Mas também havia algo mais. Algo que pairava no ar, sutil, mas vivo.

— Eu te aviso — falei por fim, suavemente. — Obrigada por perguntar.

Verônica sorriu de leve, aquele sorriso contido que não se entrega de primeira.

— Bom... era só isso. Pode voltar quando quiser. A Diana segura um pouco se precisar respirar mais.

Assenti, me virando para sair.

— Verônica?

Ela ergueu os olhos na mesma hora.

— O bilhete… foi você, né?

Um silêncio breve. Um segundo de hesitação. Depois, ela apenas respondeu:

— Foi.

E nada mais.

Eu saí do escritório sem olhar para trás, com a sensação de que algo havia sido dito — mesmo sem palavras.

Próxima página - O acaso a meu favor ...Página 48

O acaso a meu favor - Página 74

  Continuação — O beijo… por Verônica O “quase” entre nossas bocas dura longos segundos — segundos que esticam o mundo, que dilatam o ar ao...