segunda-feira, 18 de agosto de 2025

O acaso a meu favor - Página 52

 Por Clara...

Acordei com a luz da manhã filtrando pelas frestas da cortina. Não foi o despertador, nem o gato miando pela ração — foi uma notificação no celular. Estiquei o braço com preguiça e peguei o aparelho ainda com os olhos meio cerrados.

Mensagem da Verônica.

Endireitei no mesmo instante, como se meu corpo já soubesse que não dá pra ler nada dela de qualquer jeito. Desbloqueei a tela e li devagar:

— “Clara, bom dia!”
Sorri. Sempre me espanta como até o bom dia dela parece cuidadosamente pesado, como se tivesse passado por três revisões internas antes de sair.

— “Hoje não há necessidade de vir, está bem?”
Franzi a testa.
Ué?

— “Hoje o quadro está em perfeitas condições para você descansar.”

E ali, eu entendi. Ela lembrava. Ontem eu estava de folga. E mesmo tendo me chamado, agora queria compensar. Ela notou. Ela pensa em mim mais do que demonstra.

Li de novo.

— “Tenha um bom dia, e descanse!”

Soou como um comando... mas um comando com afeto. À moda dela, claro.
Ela se preocupa. Só não sabe muito bem como demonstrar.

Meu coração apertou. Fiquei um tempo olhando pra tela, com os dedos pairando sobre o teclado, sem saber exatamente o que responder. Cada palavra minha parece sempre correr o risco de passar do limite invisível que a gente finge que não existe.

Mas mesmo assim, escrevi:

— Bom dia, Verônica! Obrigada por avisar. Fico feliz em poder descansar um pouco mais hoje. E... obrigada por lembrar de ontem. Eu gosto de ajudar, sempre que precisar.

Pensei em colocar um “coração” no fim. Apaguei.

Substituí por:

— Tenha um ótimo dia também. E se precisar, tô por aqui. Mesmo de pijama.

Sorri. Era bobo, mas era meu jeito. Um meio-termo entre o profissional e o que... talvez, nem eu consiga nomear ainda.

Enviei. Encostei o celular no peito e fiquei ali, deitada, ouvindo o ronronar de Bento.
Mas minha cabeça, bom... já estava no mercado. Ou melhor — nela.

Olho pra bola de pelos enrolada nas minhas pernas. Ele dorme feito rei, dono absoluto do pedaço — e talvez de mim também. Dou um sorriso presunçoso.
Ando... diferente. Leve. Não é que a vida esteja fácil — nunca foi —, mas ultimamente algo em mim está mais calmo. Como se a tempestade que sempre morou no meu peito tivesse aprendido a chover menos.

Algumas coisas ainda testam meu limite, me cutucam por dentro, me desafiam. Ontem mesmo, aquele silêncio entre eu e Verônica no carro... aquilo disse mais do que qualquer conversa inteira. Mas, mesmo com essas pontas soltas, tem algo em mim que está mais desperto.

Não sei explicar ao certo. É como se, por muito tempo, eu estivesse apenas sobrevivendo — seguindo, cumprindo, existindo.
Mas agora... agora eu sinto.
Confuso, sim.
Mas real.

Essas pequenas trocas de olhar, a atenção dela em detalhes que ninguém mais nota, o jeito que fala tentando parecer distante, mas sempre escolhendo palavras com cuidado... tudo isso me atinge. Devagar, feito onda que não derruba, mas carrega.

Sinto que estou sendo forçada a viver, mas pela primeira vez, viver não dói.

Essas sensações, ainda que bagunçadas, têm um gosto estranho de liberdade.
Talvez seja isso: estou me permitindo sentir. E me sentir viva, mesmo sem saber o que vai acontecer depois.

Acaricio o gato com a ponta dos dedos, ele resmunga preguiçoso e muda de posição, me aquecendo ainda mais.

Fecho os olhos.
Não quero respostas agora. Só quero ficar aqui, com essa leveza nova que me visita sem pedir licença.

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