Por Verônica....
Era a última semana da Juliana no mercado. Já estava de aviso prévio, e eu, sinceramente, contava os dias. Não por rancor, mas por esgotamento. Meu limite com ela já tinha sido ultrapassado há tempo. Hoje, tudo o que eu queria era cumprir a formalidade, encerrar o capítulo, virar a página.
Mas quando ela entrou no escritório, com aquele papel na mão, rosto pálido e passos hesitantes, eu soube que não era um simples papel de atestado ou algo do tipo. O mundo pareceu parar por um instante. Peguei o papel. Era um exame de teste de gravidez. Positivo.
Não consegui dizer nada de imediato. Só respirei fundo. De novo, eu teria que engolir uma situação que não pedi. Não podia demitir. Legalmente, eticamente… estava de mãos atadas.
Saí do escritório com um nó na garganta. Pus a mão no cabelo, joguei pra trás, tentando manter a postura. Sabia que Clara estava observando. Sempre está.
Foi aí que decidi: "Vou levar ela pra casa hoje." Nem pensei muito. Só sabia que, naquele turbilhão, Clara era a única presença que não me pesava. Talvez até o contrário. Chamei, pedi pra esperar. E ela esperou, como sempre faz, sem perguntas.
O silêncio no carro era quase reconfortante — e ao mesmo tempo, doloroso. Me senti exposta de um jeito estranho. Cansada, vulnerável. Mas, ao mesmo tempo, havia algo ali que me mantinha firme. Clara.
— Você percebe tudo, não percebe, Clara? — perguntei, sem pensar. Era mais um reconhecimento do que uma pergunta.
— Nem tudo… mas o que me importa, eu percebo. — ela respondeu. Aquelas palavras... simples, mas certeiras. Como tudo nela.
Tive que respirar fundo pra manter a voz firme.
— Hoje foi um dia difícil. Mais do que costumo admitir… mas quando você tá por perto, parece que as coisas pesam um pouco menos.
Foi o máximo que consegui me permitir dizer. E já era muito. Muito mais do que costumo mostrar a alguém. Ela soltou uma risada nasal em sinal de nervosismo.
— Juliana entregou um papel hoje. Daqueles que viram a página… ou fecham livro.
Não contei o conteúdo. Ainda não. Ainda estava tentando processar.
— Você vai ficar bem? — ela perguntou. Com aquela voz baixa, quase doce, que me desmonta.
— Não sei, — admiti, olhando pra estrada — mas agora… agora só quero chegar em casa. Te deixar segura. Depois, eu penso no resto.
Não sei o porquê de ter me oferecido para levá-la em casa.
Talvez fosse culpa. Culpa por ter criado nela uma expectativa que agora não posso cumprir. Fiz uma promessa sem nunca ter dito em voz alta — a de que, com a saída da Juliana, as coisas melhorariam para ela.
Mas agora… tudo mudou. E eu não tenho como sustentar essa promessa.
E foi isso. O resto do caminho foi feito em silêncio. Um silêncio carregado de tudo o que não dissemos — e que talvez, um dia, a gente diga.
Quando parei o carro, ela me olhou antes de sair. Agradeceu. Me desejou boa noite. E naquele instante, o mundo inteiro se resumiu àquela troca curta, contida, mas cheia de coisa não dita.
Ela entrou. Eu fiquei ali. Mãos no volante, o corpo imóvel, o peito cheio demais.
Hoje, eu não consegui demitir ninguém. Mas perdi muito mais do que controle.
E talvez, tenha ganhado algo que ainda não sei nomear.
Ainda estava ali. Parada em frente ao prédio da Clara, com o motor desligado e os faróis apagados. Ela já tinha subido, já devia estar tirando os sapatos, talvez preparando um café, ou quem sabe sentada em silêncio, do jeito que eu vejo que ela gosta. E eu ali... travada.
O mundo parecia quieto demais. E eu também.
Apertei o volante com força sem perceber. Os dedos, tensos. O maxilar, travado. O peito... pesado.
Essa mania de me fazer forte o tempo todo... Às vezes parece que eu estou tentando segurar as paredes do mundo com as próprias costas. E mesmo quando alguém me oferece uma fresta de acolhimento, eu me saboto. Me fecho. Me tranco.
Soltei o ar devagar. Bati os dedos duas vezes no volante, como quem tenta despertar de um transe.
— Vamos lá... — falei baixinho, só pra mim, quase como um empurrão interno.
Girei a chave. O carro voltou a ronronar baixinho, como se perguntasse: "Tem certeza que quer voltar pra casa agora?"
Não, não tinha. Mas também não sabia o que fazer com tudo que sentia.
Engatei a marcha. Voltar era o único movimento possível. Porque parar, aqui, olhando pro prédio dela... me deixava exposta demais até pra mim mesma.
E enquanto dirigia, só uma coisa me rondava a cabeça: até quando vou conseguir fingir que Clara não me atravessa do jeito que atravessa?
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