domingo, 27 de julho de 2025

O acaso a meu favor - Página 46

 Por Clara...

Ao desligar o celular, ainda meio zonza, me sento na beira da cama. O corpo tá preguiçoso, mas a cabeça já começou a rodar com tudo que me espera dali a pouco.

Olho pro pé da cama e vejo o Bento, completamente estirado, do jeito mais dramático possível — patas pra cima, barriga exposta, como se o mundo não exigisse nada dele.

Solto uma risada baixa, daquelas nasais, sem nem conseguir evitar.

— Ai Bento, queria ser você por um dia... — murmuro.

Mas não sou. Então levanto.

Primeiro passo: rotina felina. Limpo a caixa de areia com um certo orgulho (e uma careta), troco a água, coloco ração nova. Ele nem se mexe. Só quando me abaixo pra dar aquele beijinho na cabeça dele é que abre um olho preguiçoso, como quem diz “Sério humana?”.

— Mal acostumado... — brinco, sorrindo.

Sigo pro banheiro. O banho é rápido, prático. Escovo os dentes debaixo do chuveiro mesmo, pensando na correria que já me espera. A mente corre, mas o corpo vai despertando.

Ao sair, pego o uniforme e quase solto um suspiro de gratidão.

Graças a Deus que lavei ontem. — penso, aliviada, enquanto visto a camisa e amarro o cabelo.

Olho no espelho. Ainda tô com cara de sono, mas os olhos já estão decididos.

Chego no mercado e já sinto o ar denso, como se o lugar tivesse absorvido toda a tensão da manhã. Empurro a porta com cuidado e entro. O som do movimento já me abraça: caixas sendo organizadas, o bip rápido do leitor de código, o vai e vem dos meninos no estoque.

Mas meus olhos vão direto pra ela.

Verônica está atrás do balcão, de pé, com uma pilha de notas fiscais numa mão e o celular na outra. Quando me vê, ela congela por um segundo.

Vejo rostos apressados, caixas se acumulando, e no meio do caos... ela.

Verônica.

Está ali, de pé, corpo rígido, olhos vasculhando tudo ao mesmo tempo. E nesse segundo, eu entendo tudo.

O alívio dela me atravessa.

Ela não sorri com a boca, mas os olhos suavizam como se, enfim, pudesse respirar. Me aproximo e apenas balanço a cabeça, como quem diz: “Tô aqui.” Ela responde com um olhar que mistura gratidão, cansaço e um pedido mudo de “fica.”

E eu fico.

Mas antes que eu assuma o caixa, cruzo com o Augusto. Ele já me viu, mas finge surpresa.

Se aproxima com aquele sorrisinho meio irônico, meio forçado. O tipo de sorriso que não chega nos olhos.

Uau... não achei que você viesse. — diz, como quem elogia, mas empurra veneno por trás.

— Pois é... — respondo, sem dar espaço. — Verônica precisava.

Ele levanta uma sobrancelha, disfarçando o incômodo.

— Claro, claro... sempre bom ver quem tá disposto a sair da cama na folga.

O tom é leve, mas a cutucada está ali.

Sorrio de lado, sem perder o compasso.

— Sempre bom ver quem ainda consegue se surpreender com responsabilidade, né?

Ele engole seco, mas não responde. Apenas entrega a chave do caixa com um movimento apressado e vira as costas.

Não digo mais nada. Só caminho até meu posto, com a cabeça erguida. Porque hoje eu não vim por ele.

Vim por ela. Por Verônica.

Sento no caixa com cuidado. Passo álcool nas mãos, ajeito o uniforme e respiro fundo. Por dentro, ainda tô tentando acordar direito, mas o corpo já entrou no ritmo.

Não vim pra salvar nada. Nem acho que tô fazendo algo grande. Só... não consegui dizer não.

Verônica precisava. E eu senti que devia estar aqui. Simples assim.

Levanto os olhos e vejo ela me olhando de longe. O rosto cansado, os ombros mais soltos agora. E por um instante, nossos olhares se cruzam.

Ela não diz nada. Mas o jeito como me olha me faz sentir que fiz a coisa certa.

E isso, pra mim, já é muito.

Não me vejo como indispensável. Nem acho que sou melhor que ninguém. Só quero ajudar quando posso, e hoje eu pude.

Talvez seja porque vejo nela algo que admiro — essa força de continuar, mesmo quando tudo tá caindo aos pedaços. E se ela, com tanto mais nas costas, não desiste... então eu também posso levantar da cama e vir somar.

Não vim pra brilhar, nem pra aparecer.

Vim porque me importo.

E isso, no fundo, é o que mais me move.

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O acaso a meu favor - Página 45

 Continuação por Verônica...

A única solução, por ora, foi deixar o Augusto no caixa. Um imprevisto. Uma gambiarra emocional e operacional. Enquanto isso, eu tentava contato com alguma das meninas — qualquer uma que pudesse vir.

Mas a cada dez minutos, parecia que o mundo desabava um pouco mais:
Notas se acumulando, mercadorias chegando de outros setores, entregadores batendo na porta... E eu ali, no meio de tudo, com a sensação de que não tinha mais olhos nem ouvidos suficientes pra tomar conta de tanta coisa ao mesmo tempo.

Me sentia em mil lugares — e ao mesmo tempo, em lugar nenhum.

No meio desse caos, me agarro a um pensamento que me dá um mínimo de alívio: Igor volta hoje. Com a Lia.

E eu não vejo a hora. Não vejo a hora de dividir esse peso, de ter um apoio firme, alguém que entenda a responsabilidade que é administrar essa empresa. Alguém que não fuja. Que esteja no mesmo barco, remando na mesma direção.

Porque por mais que eu seja forte, tem dias — como hoje — que o cansaço fala alto. E eu só preciso de alguém que me ajude a continuar firme.

Estamos contando com a inauguração do açougue agora em julho. É a nossa chance de respirar. Um possível alívio financeiro, uma virada. A oportunidade de, finalmente, reajustar essa empresa de vez e colocá-la no rumo certo.

E é com esse pensamento — meio esperança, meio desespero — que me vejo dividida por dentro.

Me culpo. E como me culpo.

Mas hoje, com o coração apertado, coloco a empresa em primeiro lugar. Não porque quero. Mas porque preciso.

Procuro o número da Clara na agenda. Minhas mãos até sabem o caminho, mas meu peito hesita. Entro no escritório. Fecho a porta atrás de mim. O clique seco da maçaneta ecoa como um lembrete de que estou sozinha nessa decisão.

Fico ali por alguns segundos, parada. Em silêncio. Procurando coragem. Coragem pra ligar. Coragem pra pedir o que não deveria ser pedido. Coragem pra tirar alguém da sua folga — de novo — por conta da irresponsabilidade de outra.

Respiro fundo. O telefone na mão pesa mais do que parece. Porque hoje, mais do que nunca, sei o quanto custa liderar.

Respiro. E ligo.

O coração bate forte, como se cada toque do telefone fosse um lembrete de que eu não queria estar fazendo aquilo.

Primeiro toque.
Segundo.
Terceiro.

No quarto toque, ela atende.

A voz ainda carregada de sono. Suave. Baixa. Real.
E naquele instante, meu mundo encontra o melhor som que meus ouvidos poderiam ouvir.

Não percebo de imediato que estava prendendo a respiração. Só quando ela diz “Alô?” é que o ar finalmente sai, como se tivesse segurado o peso do universo nos pulmões.

Fico em silêncio por um segundo a mais. Talvez dois. Não por falta de palavras, mas por sentir demais.

Não sei se estou admirando a leveza daquela voz, mesmo sonolenta... ou se só estou tentando absorver o alívio de saber que, mais uma vez, posso contar com ela.

Demoro um pouco a responder. Não por fraqueza, mas porque naquele breve momento, tudo parou.

E pela primeira vez no dia, não me senti sozinha.

— Oi, Clara... — minha voz sai num tom quase baixo demais. Como se eu não quisesse acordá-la por completo.

Ouço o som dela se espreguiçando, e quando menos percebo, estou sorrindo. A imagem vem fácil à mente: Clara, embolada no lençol, os cabelos bagunçados, os olhos ainda pesados de sono...

E aquele som tão simples, tão humano, acalma por um instante a tempestade que vem me consumindo desde o início da manhã.

Verônica... tudo bem? — pergunta, com a voz arrastada, ainda sonolenta.

Me pego rindo, meio admirada. Mesmo meio dormindo, ela ainda se preocupa comigo.

— Juro que se eu pudesse, não estaria te incomodando a essa hora... — minha voz vacila. Um suspiro escapa. — Muito menos na sua folga.

Um silêncio curto, mas denso, atravessa nossa ligação. Desses que dizem tudo sem precisar dizer nada.

Mas logo vem a voz dela, mais desperta, com um tom atento:

Aconteceu alguma coisa? — Clara pergunta, agora em alerta.

Tento puxar o ar fundo, buscando equilíbrio antes de despejar tudo que está me pesando.

— Tá tudo sob controle... ou quase — respondo, tentando aliviar a tensão. — A Juliana não apareceu. Nenhuma notícia. O Augusto tá no caixa quebrando galho, eu tô tentando administrar mil coisas de uma vez…

Pauso por um instante.

— E eu sei que você deveria estar descansando agora, mas… eu realmente preciso de você.

Silêncio de novo. Mas dessa vez, mais leve.

Vê… me dá uns vinte minutos. Tô chegando.

E ali, naquela resposta simples, cheia de entrega, o peso no meu peito diminui. Não some, mas fica mais leve, porque sei que ela vem. Sei que posso contar.


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O acaso a meu favor - Página 44

Por Verônica...

Hoje decidi abrir o mercado junto com a turma da manhã. Quero acompanhar de perto a finalização da obra — e, principalmente, do açougue.

Junto com a ansiedade de ver tudo pronto, vem também o estresse por nem tudo sair como planejado. A entrega dos freezers e da câmara fria principal já deveria ter acontecido há três dias... e até agora, nada.

Consegui adiantar a entrega de algumas mercadorias que vão dar vida ao açougue e mostrar o que ele realmente é — mas nem tudo depende da nossa vontade. Existe toda uma logística por trás: outras entregas, motoristas que precisam voltar para suas casas, prazos que precisam ser cumpridos.

Tudo tem seu tempo. 

Ao abrir uma das portas, algo me salta aos olhos como um alerta: a ausência da operadora de caixa. Hoje, pelo menos, eu já sabia que não seria a Clara — está de folga. Mas... e a titular do turno?

Meus olhos percorrem o salão. Os repositores já caminham com agilidade para a ala onde batem o ponto, concentrados, organizados, prontos para mais um dia. O mercado está prestes a ganhar vida. Mas a minha cabeça só repete uma pergunta, insistente, quase martelando: Cadê a operadora de caixa?

Olho para o relógio. 7h10. O tempo parece ganhar peso, como se cada segundo atrasado aumentasse a pressão no meu peito. Volto o olhar para o Augusto — ele já está com o celular no ouvido, tentando contato com a funcionária escalada.

E aí, sem aviso, sinto o estresse subir feito uma onda, invadindo meu consciente, misturado com frustração, preocupação... e aquele medo silencioso de que o dia, mais uma vez, esteja começando com um pé fora do lugar. 

Abro o aplicativo de mensagens, aquele grupo que criei justamente para evitar desencontros: escalas, avisos, comunicados... tudo ali. Rolo a tela com pressa e abro a escala que o Augusto enviou ontem mesmo. E lá está: Juliana — das 7h00 às 15h00.

E, claro. Claro que tinha que ser ela.

Uma mistura de frustração e exaustão me atravessa. A Juliana. Justo ela. Já devia ter desconfiado.

Passo os olhos pela escala mais uma vez e vejo que uma das meninas novatas está de folga hoje, junto com a Clara. E a verdade me incomoda de imediato: seria um absurdo ligar para qualquer uma das duas em plena folga para cobrir a irresponsabilidade da Juliana. Não é justo. Nem profissional.

Mas o relógio não para. O mercado precisa abrir. E eu, mais uma vez, estou aqui — tentando consertar o que outros insistem em quebrar.

Em silêncio, faço uma oração. Não de desespero — mas de agradecimento. Gratidão por estar, enfim, me livrando dessa menina. Juliana já deu o que tinha que dar. E, se tudo correr como o previsto, em poucos dias não fará mais parte da equipe.

Respiro fundo, tento não deixar a irritação dominar, e sugiro ao Augusto:
— Liga pra Diana.

Diana é nova, entrou tem apenas uma semana. Mas lembro perfeitamente dela no dia da entrevista — o jeito firme, o olhar que misturava humildade com urgência. Ela precisava da vaga. E até agora, vem mostrando compromisso. Não me decepcionou... ainda. Mas também sei: uma semana é cedo demais pra dizer qualquer coisa.

Mesmo assim, em momentos como esse, é nas peças recém-chegadas que a gente precisa apostar. Porque tem gente que entra querendo fazer parte. E tem gente que, mesmo estando há meses, nunca fez questão.

Vejo no rosto do Augusto o que já está claro: a frustração também começou a tomar conta dele. Pela expressão, pelo suspiro pesado... já sei. Ele não conseguiu contato com a Diana.  

E nesse momento, a única solução que nos resta me engasga por dentro: Clara.

Ela, que está de folga. Ela, que já fez mais do que devia. Ela, que merecia descansar hoje.

Sinto um misto de raiva e frustração me subir como uma febre. Me revolta saber que mais uma vez vou ter que tirar a Clara do conforto da casa dela, do merecido descanso, pra cobrir o que outra pessoa tinha obrigação de fazer.

Isso me deixa possessa.

É como se, no fim das contas, quem é responsável acaba sempre pagando pelos erros dos outros. E, pior: a gente se acostuma com isso. Aprende a contar com os certos pra lidar com os errados.

Mas hoje… hoje isso está me engasgando de um jeito diferente.

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O acaso a meu favor - Página 74

  Continuação — O beijo… por Verônica O “quase” entre nossas bocas dura longos segundos — segundos que esticam o mundo, que dilatam o ar ao...