quinta-feira, 9 de outubro de 2025

O acaso a meu favor - Página 65

Continuação por Verônica...lll

Pouco depois do meu pedido, ouvi batidas leves na porta. Um dos rapazes entrou, equilibrando várias marmitas nos braços.

— Dona Verônica... — disse, um pouco sem fôlego.

— Essa sacola mandaram entregar diretamente para a senhora. — completou, ajeitando os óculos no rosto.

— Pode deixar aí mesmo. — respondi, me levantando.

Fui até ele e reconheci de imediato o que havia pedido: três marmitas, cuidadosamente colocadas na mesma sacola — a minha, a de Igor e a da Clara.

— Obrigada. — disse, pegando o pacote. Antes que ele saísse, acrescentei:
— Guarde essa aqui para o Igor, por favor. Pode deixar na bancada, ele ainda vai demorar.

Ele assentiu, meio atrapalhado, e obedeceu prontamente.

Em menos de dez minutos, percebi que a maior parte da equipe havia saído para almoçar em casa. Até o Augusto tinha desaparecido.

— Todos pegaram suas marmitas? — perguntei, observando o rapaz que ainda organizava o que restava.

— Sim… sim, Dona Verônica. — respondeu, nervoso, como se cada palavra precisasse de permissão para existir.

Acenei para que continuasse o serviço, e ele correu a se ocupar de novo.

Respirei fundo. O silêncio no mercado começava a se instalar — um silêncio agradável, quase íntimo.

“Clara deve estar em alguma das seções ainda”, pensei.

Olhei ao redor, vi alguns funcionários almoçando discretamente nos fundos, e por algum motivo aquilo me trouxe certo alívio.

Peguei a marmita restante — a dela — e segui pelos corredores.
Não tinha um plano exato, apenas a desculpa perfeita.

E, no fundo, eu sabia o que estava fazendo.
Sabia, e mesmo assim continuei.

A cada passo, o som do salto no piso frio parecia denunciar o que eu me recusava a admitir:
Não era apenas gentileza.
Era necessidade.

Fui em direção aos corredores, procurando por quem, sem querer, vinha ocupando todos os meus pensamentos.

Quando dobrei o corredor, percebi que ela já não estava onde eu esperava.
Soltei um riso curto, quase inaudível.
Ou ela é hiperativa, ou boa demais no que faz... ou os dois.

Caminhei mais um pouco e a encontrei na seção de vinhos — a adega. Um lugar delicado, calmo, quase sagrado entre tantas gôndolas e caixas.

Ela estava de costas, sobre uma pequena escada, limpando as prateleiras com tanto cuidado que parecia tocar algo valioso. Lia os rótulos com atenção, franzindo o cenho de vez em quando, fazendo pequenas caretas que me arrancaram um sorriso involuntário.

Acabei rindo baixo — e, claro, ela ouviu.
Clara virou o rosto em minha direção, e o que veio a seguir foi o sorriso mais lindo do dia.

— Vejo que está bem interessada nos rótulos — comentei, tentando manter o tom leve, mas a voz saiu um pouco mais... sugestiva do que eu pretendia.

Ela desceu da escada — não muito alta, apenas o suficiente para alcançar as prateleiras superiores.
Ajeitou o uniforme, tirando uma pequena teia de aranha do ombro, e respondeu com um ar quase tímido:

— Eu gosto de estudar um pouco sobre eles. — disse. — Trabalho com vinhos, às vezes, quando faço uns bicos pra Dona Vanda.

Assenti devagar, observando-a.
Havia algo hipnótico na naturalidade dela. No jeito simples com que falava, como se o mundo não pesasse nas costas.

Demorei alguns segundos demais analisando aquela criatura.
Cada gesto, cada olhar.

Ela não fazia ideia do que causava em mim — ou fazia, e fingia não saber.

Percebo que demoro tempo demais parada ali, só observando. Então, para disfarçar o constrangimento e — talvez — o que realmente me trouxe até ela, acabo soltando:

— Vamos! Vem almoçar.

Minha voz sai mais firme do que eu esperava, quase uma ordem.
Ela se vira devagar, ainda com aquele pano na mão, e me olha confusa, como se não soubesse se deve obedecer ou rir da minha súbita autoridade.

— O que você fez pra gente comer hoje? — pergunta, arqueando uma sobrancelha e me lançando um sorriso travesso.

Reviro os olhos, cruzando os braços e tentando disfarçar o riso que insiste em escapar.

— Dessa vez não cozinhei pra você… — respondo com um leve desdém teatral, apenas para provocar. — Mas pedi algumas marmitas pra todos nós.

Ela solta uma risada curta, aquele tipo de riso que vem fácil, e que de algum modo me desmonta.
Por um instante, o corredor da adega parece menor, mais quente.

Clara se aproxima, ainda segurando o pano, e há algo em seu olhar — uma mistura de curiosidade e desafio — que me faz engolir em seco.

Ela me observa por um segundo a mais do que deveria, e tenho quase certeza de que percebeu o que me passa pela cabeça.

— Então tá — diz, por fim. — Se foi a senhora quem pediu, deve tá bom.

Reviro os olhos mais uma vez, fingindo impaciência, mas no fundo sorrindo com o canto dos lábios.

E, enquanto caminhamos lado a lado em direção à sala, percebo o quanto é perigoso esse simples gesto de dividir uma refeição com ela.
Perigoso, porque é íntimo.
E íntimo, porque quero que seja.




Próxima página - O acaso a meu favor ... Página 66

O acaso a meu favor - Página 64

Continuaçao Verônica...

Ao pensar, pensar e pensar… decidi criar alguma maneira de me desculpar pelo pequeno — e, convenhamos, nada profissional — gesto que tive mais cedo com Clara.

O dia passou num piscar de olhos. Clara, junto com os rapazes, foi impecável: em menos de três horas, conseguiram organizar, empilhar e precificar todas as mercadorias do novo açougue.
Reconheço — a equipe foi admirável. Mas ela… ela sempre se destaca.

Enquanto reviso alguns relatórios, percebo Clara em outra seção, concentrada, limpando e reorganizando as prateleiras. O jeito firme, o olhar atento, a calma quase irritante de quem faz tudo bem feito sem esforço algum.

Estamos a poucos dias de julho — a temida alta temporada em Caldas. Tenebrosa para os funcionários, que mal respiram, e lucrativa para nós, empresários.
Ironias do capitalismo, eu diria.

Olho para o relógio: 12h45. Hora do almoço.
Igor ainda não voltou, e pelo ritmo da ligação com Lia, duvido que volte tão cedo.

Pego o telefone e ligo para um dos muitos restaurantes da cidade, pedindo as marmitas para o pessoal que ficou e para os que irão dobrar o turno.

E é aí que o pensamento me atinge como um soco.
Não havia necessidade de colocar Clara hoje no segundo horário.

— Meu Deus... como sou horrível. — murmuro, entre um suspiro e um arrependimento mal disfarçado.

Mas, ao lembrar da cena mais cedo — dos olhos daquela mulher, a tal Elise, percorrendo Clara de cima a baixo —, sinto o sangue ferver outra vez.

Não posso permitir brechas.
Não com ela.
Não com ninguém.

Só de pensar naquela mulher olhando Clara daquela forma, meus punhos se fecham, e uma chama ácida me sobe pelo peito.

— Ridículo… — sussurro, tentando rir de mim mesma, mas o riso morre antes de nascer.

Não sei o que é pior: o ciúme em si, ou o fato de saber exatamente o que ele significa.

Ainda estava afundada nos meus próprios pensamentos quando ouvi três batidas leves na porta.

— Com licença… — a voz dela.

Clara.

Meu corpo reagiu antes da minha razão. Endireitei a postura, ajeitei o decote da minha blusa e limpei a garganta, como se o gesto pudesse apagar o que se passava na minha cabeça segundos antes.

Ela entrou com uma pasta nas mãos e um sorriso tímido — desses que parecem inocentes, mas carregam um perigo silencioso.

— O Augusto pediu pra eu trazer os comprovantes das últimas notas — disse, estendendo os papéis.

— Certo — murmurei, tentando soar natural, sem sucesso. Meus dedos roçaram nos dela ao pegar os documentos, e o toque breve pareceu tempo demais.

Por um instante, ficamos ali, caladas.
Os olhos dela se prenderam nos meus, e juro que o ar do escritório ficou mais pesado.

Havia algo naquele olhar... uma dúvida, talvez. Ou medo.
Mas também havia vontade.

E eu percebi — naquele segundo, com a mesma clareza com que se percebe o fogo prestes a escapar do controle — que ela sentia o mesmo.

Clara desviou o olhar primeiro, mordendo o canto do lábio como quem se censura. Eu, por outro lado, lutei para não sorrir.
A postura dela me entregava mais do que qualquer palavra: o jeito como segurava a pasta com força, como respirava rápido demais, como evitava erguer o rosto outra vez.

— Está... tudo certo por aqui? — perguntou, quebrando o silêncio.

— Está, sim. — respondi. — Só estou... cansada.

Ela assentiu, mas o olhar, ah, esse dizia outra coisa. Dizia “eu também”.

E, por um instante, senti vontade de confessar tudo — de admitir que meu cansaço não era dos relatórios, e sim dessa guerra silenciosa entre o que devo e o que quero.

Mas não disse nada.
Nem ela.

O som do relógio na parede foi o único a preencher o espaço entre nós. O tempo, cruel, esticava-se como se zombasse da nossa covardia.

Quando finalmente deu um passo para trás, a distância pareceu maior do que realmente era.

— Qualquer coisa... estarei lá fora. — disse, quase num sussurro, antes de sair.

Fiquei observando a porta se fechar.
E, pela primeira vez, tive certeza do que venho tentando negar.

Ela sente.
Tanto quanto eu.
E talvez esse seja o verdadeiro problema.

Próxima página - O acaso a meu favor ...

O acaso a meu favor - Página 63

Por Verônica…

Hoje, juro... não sei o que está acontecendo comigo.
Um calor sem igual, um estresse fora do comum com esses relatórios, e ainda me vem uma mulherzinha de não sei onde... Brasília, não é? — tento forçar a memória da frase: “Vou poder te levar embora?”

Reviro os olhos, tentando me concentrar no que realmente importa, mas é impossível. A cena se repete na minha cabeça como um disco riscado.
A maneira como ela — Elise, era esse o nome, se não me engano — cumprimentou a Clara, toda sorrisos e intimidades não declaradas.

E o pior... foi a forma como Clara retribuiu.
Aquele abraço, aquele riso leve, aquela expressão que nunca vi quando está comigo.

Respiro fundo, tentando aliviar o nó no peito. Em vão.

Por que aquilo me incomoda tanto?
Ela é apenas uma funcionária.
Uma simples funcionária.

Mas meu corpo parece não ter entendido essa parte.
Cada vez que ela fala, meu olhar a procura.
Cada vez que ela sorri, algo em mim se contorce.


Finjo estar atenta a tudo que Igor me diz, porque sei que o assunto é importante.
Compradores, fornecedores, trocas de mercadorias, boletos, notas… — tudo ecoa como ruído distante. Tento me concentrar, mas cada palavra parece se dissolver no ar antes de chegar até mim.

Solto um suspiro mais intenso do que pretendia. O bastante para chamar a atenção do meu irmão, que pausa o que está dizendo e me lança um olhar de leve desconfiança.

— Está tudo bem, Verônica? — pergunta, franzindo o cenho.

Respiro fundo, forçando um sorriso profissional, daqueles que usei a vida toda para esconder qualquer fraqueza.
— Tudo, tudo… só me enrolei um pouco entre um assunto e outro. — respondo, ajeitando a lapiseira entre os dedos, como se o simples gesto pudesse me ancorar à realidade.

Mas sei que ele percebeu. Igor sempre percebe.

Tento voltar aos números, às tabelas, aos contratos... mas o que me vem à mente é o rosto dela.
Clara.

A voz dela ainda ressoa em algum canto da minha cabeça — e, se eu me permitir pensar demais, talvez o controle que tanto prezo se desfaça por completo.

Já estávamos há quase uma hora naquele escritório, e boa parte desse tempo me vi presa nos meus próprios pensamentos — especificamente, no ato impulsivo que tive com Clara.

— Acho que vamos dar uma pausa... — diz Igor, olhando o celular ao ouvir o toque da Lia.

Agradeço mentalmente à minha cunhada como se ela tivesse acabado de me salvar de um incêndio. Vejo Igor levantar-se, atender e sair pela porta, deixando-me sozinha. Finalmente, posso respirar.

Encosto-me na cadeira, fecho os olhos e tento organizar o caos dentro de mim.
O que está acontecendo comigo?

Como algo tão pequeno — um toque, um olhar, uma provocação — conseguiu me desarmar dessa forma?

Sinto o corpo esquentar de novo. Um calor irritante, desconfortável, que sobe até o rosto.

— Meu Deus, que calor! — murmuro, abanando as mãos, mais para espantar o turbilhão de pensamentos do que o clima em si.

Não posso dizer que é só desejo.
Porque, no fundo, há algo mais.
Carinho.
Preocupação.
Ciúmes, talvez.
E, acima de tudo, uma estranha admiração pela maneira como ela enxerga a vida — simples, leve, livre.

Mas apaixonada?
Isso, não! — digo em voz alta, para que o som das palavras me convença da mentira.

Ainda assim, o eco do que acabo de negar volta como um lembrete incômodo.
Porque, se eu não cuidar do que estou sentindo, não vai demorar para que o inevitável aconteça.

Solto o ar e me deixo cair na cadeira, permitindo que o peso dos pensamentos me domine. O teto parece girar devagar enquanto minha mente percorre uma lista de tudo que torna isso — nós — tão errado:
o mercado, a imagem, a empresa no exterior... e a Ana.

Fecho os olhos por um instante.
E percebo, com certo desespero, que nada disso é suficiente para me convencer a parar de pensar nela.

Próxima página - O acaso a meu favor ... Página 64

O acaso a meu favor - Página 74

  Continuação — O beijo… por Verônica O “quase” entre nossas bocas dura longos segundos — segundos que esticam o mundo, que dilatam o ar ao...