Continuação por Verônica...lll
Pouco depois do meu pedido, ouvi batidas leves na porta. Um dos rapazes entrou, equilibrando várias marmitas nos braços.
— Dona Verônica... — disse, um pouco sem fôlego.
— Essa sacola mandaram entregar diretamente para a senhora. — completou, ajeitando os óculos no rosto.
— Pode deixar aí mesmo. — respondi, me levantando.
Fui até ele e reconheci de imediato o que havia pedido: três marmitas, cuidadosamente colocadas na mesma sacola — a minha, a de Igor e a da Clara.
— Obrigada. — disse, pegando o pacote. Antes que ele saísse, acrescentei:
— Guarde essa aqui para o Igor, por favor. Pode deixar na bancada, ele ainda vai demorar.
Ele assentiu, meio atrapalhado, e obedeceu prontamente.
Em menos de dez minutos, percebi que a maior parte da equipe havia saído para almoçar em casa. Até o Augusto tinha desaparecido.
— Todos pegaram suas marmitas? — perguntei, observando o rapaz que ainda organizava o que restava.
— Sim… sim, Dona Verônica. — respondeu, nervoso, como se cada palavra precisasse de permissão para existir.
Acenei para que continuasse o serviço, e ele correu a se ocupar de novo.
Respirei fundo. O silêncio no mercado começava a se instalar — um silêncio agradável, quase íntimo.
“Clara deve estar em alguma das seções ainda”, pensei.
Olhei ao redor, vi alguns funcionários almoçando discretamente nos fundos, e por algum motivo aquilo me trouxe certo alívio.
Peguei a marmita restante — a dela — e segui pelos corredores.
Não tinha um plano exato, apenas a desculpa perfeita.
E, no fundo, eu sabia o que estava fazendo.
Sabia, e mesmo assim continuei.
A cada passo, o som do salto no piso frio parecia denunciar o que eu me recusava a admitir:
Não era apenas gentileza.
Era necessidade.
Fui em direção aos corredores, procurando por quem, sem querer, vinha ocupando todos os meus pensamentos.
Quando dobrei o corredor, percebi que ela já não estava onde eu esperava.
Soltei um riso curto, quase inaudível.
Ou ela é hiperativa, ou boa demais no que faz... ou os dois.
Caminhei mais um pouco e a encontrei na seção de vinhos — a adega. Um lugar delicado, calmo, quase sagrado entre tantas gôndolas e caixas.
Ela estava de costas, sobre uma pequena escada, limpando as prateleiras com tanto cuidado que parecia tocar algo valioso. Lia os rótulos com atenção, franzindo o cenho de vez em quando, fazendo pequenas caretas que me arrancaram um sorriso involuntário.
Acabei rindo baixo — e, claro, ela ouviu.
Clara virou o rosto em minha direção, e o que veio a seguir foi o sorriso mais lindo do dia.
— Vejo que está bem interessada nos rótulos — comentei, tentando manter o tom leve, mas a voz saiu um pouco mais... sugestiva do que eu pretendia.
Ela desceu da escada — não muito alta, apenas o suficiente para alcançar as prateleiras superiores.
Ajeitou o uniforme, tirando uma pequena teia de aranha do ombro, e respondeu com um ar quase tímido:
— Eu gosto de estudar um pouco sobre eles. — disse. — Trabalho com vinhos, às vezes, quando faço uns bicos pra Dona Vanda.
Assenti devagar, observando-a.
Havia algo hipnótico na naturalidade dela. No jeito simples com que falava, como se o mundo não pesasse nas costas.
Demorei alguns segundos demais analisando aquela criatura.
Cada gesto, cada olhar.
Ela não fazia ideia do que causava em mim — ou fazia, e fingia não saber.
Percebo que demoro tempo demais parada ali, só observando. Então, para disfarçar o constrangimento e — talvez — o que realmente me trouxe até ela, acabo soltando:
— Vamos! Vem almoçar.
Minha voz sai mais firme do que eu esperava, quase uma ordem.
Ela se vira devagar, ainda com aquele pano na mão, e me olha confusa, como se não soubesse se deve obedecer ou rir da minha súbita autoridade.
— O que você fez pra gente comer hoje? — pergunta, arqueando uma sobrancelha e me lançando um sorriso travesso.
Reviro os olhos, cruzando os braços e tentando disfarçar o riso que insiste em escapar.
— Dessa vez não cozinhei pra você… — respondo com um leve desdém teatral, apenas para provocar. — Mas pedi algumas marmitas pra todos nós.
Ela solta uma risada curta, aquele tipo de riso que vem fácil, e que de algum modo me desmonta.
Por um instante, o corredor da adega parece menor, mais quente.
Clara se aproxima, ainda segurando o pano, e há algo em seu olhar — uma mistura de curiosidade e desafio — que me faz engolir em seco.
Ela me observa por um segundo a mais do que deveria, e tenho quase certeza de que percebeu o que me passa pela cabeça.
— Então tá — diz, por fim. — Se foi a senhora quem pediu, deve tá bom.
Reviro os olhos mais uma vez, fingindo impaciência, mas no fundo sorrindo com o canto dos lábios.
E, enquanto caminhamos lado a lado em direção à sala, percebo o quanto é perigoso esse simples gesto de dividir uma refeição com ela.
Perigoso, porque é íntimo.
E íntimo, porque quero que seja.