Por Clara....
Estranhei quando vi o Augusto saindo com a mochila nas costas e o capacete na mão. Ele não saiu como de costume — parecia contrariado, meio pisando duro, como se o chão não fosse digno dos pés dele. Aquilo me incomodou, mas como já estava perto do horário de fechar, deixei pra lá. Virei pra Diana e falei:
— Di, vou ajudar os meninos no fechamento... qualquer coisa, me chama, tá?
Ela girou a cadeira e me olhou com aquele jeito atento dela, assentindo com a cabeça. Então fui. Tinha mercadoria espalhada por todo canto, prateleira pela metade, e aquela sensação de “vamos correr antes que a porta se feche”. Augusto geralmente cuida dessa parte, mas como foi embora mais cedo, decidi quebrar o galho.
Eu não tenho a força de um homem, mas tenho minha lógica. Peguei um carrinho de compras e pedi pros meninos colocarem as caixas ali, assim eu ia rodando pelo mercado, organizando tudo com método. Já deixei meu caixa contado — é o jeito de não travar ninguém na hora de fechar.
Nesse horário é sempre uma correria que só. A gente limpa, repõe, organiza, higieniza. Um olho na tarefa, outro no relógio, e o pensamento no banho que espera em casa.
Foi aí que tudo pareceu congelar por uns segundos.
Juliana entrou pela porta com uma expressão pálida, quase sem cor. Na mão, um papel amassado. O ambiente, que estava cheio de conversa solta, risadas, piadas entre uma caixa e outra... ficou mudo. O barulho dos passos dela ecoou pelo corredor até sumir na porta do escritório da Verônica.
Não sei o que tinha naquele papel. Mas sabia, só de olhar, que alguma coisa ia mudar depois daquilo.
Os minutos, depois que Juliana entrou naquele escritório, começaram a escorrer lentos... como se o tempo estivesse segurando a respiração junto comigo. Eu fingia que organizava as prateleiras, mas minha cabeça estava em outro lugar — ou melhor, em uma só pessoa: Verônica.
Tentava manter o foco, contar mentalmente as mercadorias, fazer o que precisava ser feito, mas a verdade é que a ansiedade começou a se espalhar pelo meu peito como se fosse ocupar todo o espaço. Meu coração batia forte demais, como se quisesse sair dali antes de mim.
Foi quando vi Juliana saindo da sala. Ela desceu o corredor de cabeça baixa, segurando aquele mesmo papel. Foi direto até uma prateleira, pegou um produto qualquer — nem lembro qual — e foi ao caixa, como se nada tivesse acontecido. Mas eu vi. Vi nos olhos dela. Tinha alguma coisa errada ali. Muito errada.
Foi só aí que Verônica apareceu.
Veio caminhando firme, como quem quer mostrar que está no controle, mas eu conheço seus gestos. Passou a mão pelos cabelos, puxando-os pra trás, do jeito que sempre faz quando está nervosa. O rosto dela tentava manter a compostura, mas os olhos... ah, os olhos dela estavam dizendo outra coisa. Coisa que ninguém ali pareceu perceber. Mas eu percebi.
Ela anunciou que podíamos encerrar as atividades, com a voz firme, mas um leve atraso nas palavras. Como se cada sílaba pesasse mais do que devia.
E eu fiquei ali, parada por um segundo, segurando uma caixa de leite, com a sensação de que alguma coisa, bem grande, estava prestes a desmoronar.
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Eu já estava desligando meu caixa quando vi Verônica se aproximando. O mercado estava quase vazio, os meninos se dispersando, o som da musica diminuindo. Ela andava com aquele passo determinado, mas havia um certo peso nos ombros. Quando chegou perto, me chamou em voz baixa, mas firme:
— Clara, espera um pouco antes de ir embora, por favor.
Assenti de imediato, sem nem perguntar o porquê. Só o jeito como ela disse já foi o suficiente pra minha garganta apertar.
Ela se afastou, foi até o fundo do mercado, trocou duas palavras com Diana e depois sumiu por um tempo no escritório. Fiquei ali perto do caixa, tentando fingir normalidade, organizando uns papéis que nem precisavam de organização. Mas por dentro... eu sentia o nervosismo crescendo como uma onda prestes a quebrar.
Quando ela voltou, os olhos estavam mais calmos, mas o rosto ainda trazia traços de tensão. Se aproximou de novo, agora com um ar mais suave, e disse, meio hesitante:
— Vou te levar em casa hoje, tudo bem?
Demorei um segundo pra responder. Aquilo pegou no meio do peito, como se fosse uma pergunta simples, mas cheia de significado escondido. Engoli em seco, tentando controlar o sorriso que ameaçava escapar. Ela estava ali, me oferecendo algo tão pequeno... mas ao mesmo tempo, tão pessoal.
— Tá... tudo bem sim. — respondi, baixinho.
Ela assentiu com a cabeça e fez um gesto quase imperceptível com os olhos, indicando que eu podia esperar perto da porta. E eu fui, sentindo as pernas meio bambas, como se o mundo inteiro tivesse mudado de tom só com aquela frase.
Enquanto eu aguardava, só conseguia pensar: o que foi que Juliana disse naquele escritório? E por que, mesmo em meio a tudo isso, Verônica olhou pra mim daquele jeito?
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