quarta-feira, 13 de agosto de 2025

O acaso a meu favor - Página 49

 Por Clara....

Estranhei quando vi o Augusto saindo com a mochila nas costas e o capacete na mão. Ele não saiu como de costume — parecia contrariado, meio pisando duro, como se o chão não fosse digno dos pés dele. Aquilo me incomodou, mas como já estava perto do horário de fechar, deixei pra lá. Virei pra Diana e falei:

Di, vou ajudar os meninos no fechamento... qualquer coisa, me chama, tá?

Ela girou a cadeira e me olhou com aquele jeito atento dela, assentindo com a cabeça. Então fui. Tinha mercadoria espalhada por todo canto, prateleira pela metade, e aquela sensação de “vamos correr antes que a porta se feche”. Augusto geralmente cuida dessa parte, mas como foi embora mais cedo, decidi quebrar o galho.

Eu não tenho a força de um homem, mas tenho minha lógica. Peguei um carrinho de compras e pedi pros meninos colocarem as caixas ali, assim eu ia rodando pelo mercado, organizando tudo com método. Já deixei meu caixa contado — é o jeito de não travar ninguém na hora de fechar.

Nesse horário é sempre uma correria que só. A gente limpa, repõe, organiza, higieniza. Um olho na tarefa, outro no relógio, e o pensamento no banho que espera em casa.

Foi aí que tudo pareceu congelar por uns segundos.

Juliana entrou pela porta com uma expressão pálida, quase sem cor. Na mão, um papel amassado. O ambiente, que estava cheio de conversa solta, risadas, piadas entre uma caixa e outra... ficou mudo. O barulho dos passos dela ecoou pelo corredor até sumir na porta do escritório da Verônica.

Não sei o que tinha naquele papel. Mas sabia, só de olhar, que alguma coisa ia mudar depois daquilo.

Os minutos, depois que Juliana entrou naquele escritório, começaram a escorrer lentos... como se o tempo estivesse segurando a respiração junto comigo. Eu fingia que organizava as prateleiras, mas minha cabeça estava em outro lugar — ou melhor, em uma só pessoa: Verônica.

Tentava manter o foco, contar mentalmente as mercadorias, fazer o que precisava ser feito, mas a verdade é que a ansiedade começou a se espalhar pelo meu peito como se fosse ocupar todo o espaço. Meu coração batia forte demais, como se quisesse sair dali antes de mim.

Foi quando vi Juliana saindo da sala. Ela desceu o corredor de cabeça baixa, segurando aquele mesmo papel. Foi direto até uma prateleira, pegou um produto qualquer — nem lembro qual — e foi ao caixa, como se nada tivesse acontecido. Mas eu vi. Vi nos olhos dela. Tinha alguma coisa errada ali. Muito errada.

Foi só aí que Verônica apareceu.

Veio caminhando firme, como quem quer mostrar que está no controle, mas eu conheço seus gestos. Passou a mão pelos cabelos, puxando-os pra trás, do jeito que sempre faz quando está nervosa. O rosto dela tentava manter a compostura, mas os olhos... ah, os olhos dela estavam dizendo outra coisa. Coisa que ninguém ali pareceu perceber. Mas eu percebi.

Ela anunciou que podíamos encerrar as atividades, com a voz firme, mas um leve atraso nas palavras. Como se cada sílaba pesasse mais do que devia.

E eu fiquei ali, parada por um segundo, segurando uma caixa de leite, com a sensação de que alguma coisa, bem grande, estava prestes a desmoronar.

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Eu já estava desligando meu caixa quando vi Verônica se aproximando. O mercado estava quase vazio, os meninos se dispersando, o som da musica diminuindo. Ela andava com aquele passo determinado, mas havia um certo peso nos ombros. Quando chegou perto, me chamou em voz baixa, mas firme:

Clara, espera um pouco antes de ir embora, por favor.

Assenti de imediato, sem nem perguntar o porquê. Só o jeito como ela disse já foi o suficiente pra minha garganta apertar.

Ela se afastou, foi até o fundo do mercado, trocou duas palavras com Diana e depois sumiu por um tempo no escritório. Fiquei ali perto do caixa, tentando fingir normalidade, organizando uns papéis que nem precisavam de organização. Mas por dentro... eu sentia o nervosismo crescendo como uma onda prestes a quebrar.

Quando ela voltou, os olhos estavam mais calmos, mas o rosto ainda trazia traços de tensão. Se aproximou de novo, agora com um ar mais suave, e disse, meio hesitante:

Vou te levar em casa hoje, tudo bem?

Demorei um segundo pra responder. Aquilo pegou no meio do peito, como se fosse uma pergunta simples, mas cheia de significado escondido. Engoli em seco, tentando controlar o sorriso que ameaçava escapar. Ela estava ali, me oferecendo algo tão pequeno... mas ao mesmo tempo, tão pessoal.

Tá... tudo bem sim. — respondi, baixinho.

Ela assentiu com a cabeça e fez um gesto quase imperceptível com os olhos, indicando que eu podia esperar perto da porta. E eu fui, sentindo as pernas meio bambas, como se o mundo inteiro tivesse mudado de tom só com aquela frase.

Enquanto eu aguardava, só conseguia pensar: o que foi que Juliana disse naquele escritório? E por que, mesmo em meio a tudo isso, Verônica olhou pra mim daquele jeito?

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O acaso a meu favor - Página 48

 Por Verônica...

Quando ela me perguntou sobre o bilhete, por um instante senti o mundo desabar — como uma adolescente pega no flagra, o coração disparado, a mente um turbilhão de medo e vergonha. Mas me agarrei a um fio de força e assumi, do jeito que consegui. Por fora, parecia calma, quase indiferente, mas por dentro, meu peito batia tão forte que parecia querer explodir, igual à bateria de uma escola de samba na Sapucaí no auge do desfile.

Ao dizer que fui eu, senti como se tivesse jogado uma luz sobre um segredo pesado demais para carregar. Não sei exatamente o que deixei claro, talvez nem eu saiba direito... Só sei que ainda não tenho coragem para encarar tudo isso de frente.

Dispensei o Augusto mais cedo. Ele tentou me segurar, tentou me convencer a ficar, mas eu firmei: “Está tudo sob controle”. Ele relutou, resistiu, mas no fim teve que ir pra casa. Fiquei sozinha com os meninos. Os repositores mais novos... olha, pelo que tô vendo, eles estão pegando o jeito rápido, aprendendo as funções, cada dia mais seguros.

Observei o Luís e o Paulo hoje. Engraçado como cada um está lidando com a despedida de um jeito tão diferente. Um deles, nos últimos dias do aviso, está dando o melhor de si — como se quisesse sair deixando uma boa impressão, talvez até tentando consertar o que não fez antes. Já o outro... parece uma criança birrenta, emburrada por ter sido castigada. Faz tudo de qualquer jeito, largado, jogando as tarefas com desdém. Vive repetindo: “Se eu não fui o melhor, então deixo o melhor fazer.” — Só me restou rir por dentro. A cena que me vem é a de um senhor de idade cruzando os braços, fazendo birra igual menino mimado. Ridículo, mas quase cômico.

O Luís, acabei tendo que demitir. Falta de compromisso. É jovem, não o julgo, tem muito chão pela frente — mas não posso permitir que a responsabilidade de um pese nos ombros de outro. O dia que ele chegou bêbado... ali foi o fim da linha pra mim. Tentei relevar, mas tem limite. Aqui não é balada, é trabalho.

A Juliana... ah, a Juliana já virou um caso perdido. Tentei conversar, orientar, ajustar. Nada. Ela trabalha como se tudo tivesse que girar do jeito dela. Se não for assim, ela trava, boicota, dificulta. E eu estou cansada. Cansada de lidar com gente que acha que firmeza é opressão. Isso aqui não é creche, nem casa de caridade. É uma empresa. Tem custo, tem margem, tem meta, tem venda. E principalmente — tem despesa. Se não vende, não lucra. E se não tem lucro, eu não tenho como pagar o salário de ninguém.

Às vezes me pego pensando se eu tô sendo dura demais. Se não tô exigindo demais de gente que, às vezes, mal sabe o que quer da vida. Mas aí lembro que ninguém me deu colher de chá quando eu comecei. Tudo o que conquistei foi no braço, no suor, segurando a barra sozinha, muitas vezes com o coração em pedaços e o sorriso forçado no rosto.

Liderar não é só mandar. É carregar o fardo do que ninguém vê. É perder o sono por conta de conta que não fecha, de funcionário que falta, de produto que não chegou. É fingir que está tudo bem mesmo quando, por dentro, você só queria deitar e sumir um pouco. Mas não posso. Não posso porque tem gente que depende desse lugar, dessa empresa, dessa estrutura que meu pai levantou com tanto esforço. Tem família que vive com o que a gente gera aqui.

Às vezes, queria que entendessem isso. Que cada centavo conta. Que cada atitude afeta o todo. Que o mercado pode ser pequeno, mas o peso que ele carrega é imenso. Não é só comércio. É vida real. É salário, é aluguel, é conta de luz. É dignidade.

E eu... eu só queria, de vez em quando, poder respirar sem sentir que estou carregando o mundo nas costas. Mas não reclamo. Porque, apesar de tudo, sei do valor da nossa família. E sei que não cheguei até aqui pra recuar agora.

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quinta-feira, 7 de agosto de 2025

O acaso a meu favor - Página 47

 Por Clara....

Ao assumir o caixa, percebo uma movimentação mais intensa no mercado — tanto por causa da reforma quanto pelo aumento no número de clientes. Verônica havia ajustado o mix de produtos, priorizando os mais procurados no momento. Deu atenção especial aos itens sem glúten e zero lactose, atendendo à demanda que os clientes havia expressado com tanta clareza.

A procura por esses produtos foi tão intensa que não só esvaziou as prateleiras, como também zerou o estoque. Precisei da ajuda de um dos repositores durante toda a noite só para conseguir embalar as compras — não dava conta de atender e ensacar ao mesmo tempo.

Faltando duas horas para o fechamento, finalmente pude respirar. Acabei ficando com a Diana até o fim, e consegui convencer a Verônica de que ela ainda não estava pronta para encarar um movimento tão intenso. Mas, no fundo, a verdade era outra: por algum motivo que eu ainda não entendia, tudo o que eu mais queria... era estar ali. No mercado.

Com o movimento começando a acalmar, vi os pedreiros da obra se despedirem da gente no caixa com aquele bom humor cansado de fim de turno. Sorri de volta, tentando relaxar os ombros pela primeira vez em horas. Aproveitei a brecha e pedi licença à Diana para beber um pouco de água e ir ao banheiro. Ela assentiu com um aceno leve, e eu peguei minha garrafinha — aquela mesma — e segui pelo corredor estreito que levava aos fundos do mercado.

Lá atrás, entre o bebedouro e o banheiro, o silêncio era diferente. Mais íntimo. Mais meu. Desde o dia do bilhete, deixo a garrafinha sempre no mesmo canto. É um gesto bobo, quase infantil, mas vai que... vai que ela escreve de novo. Vai que eu não sonhei. Vai que ela, em algum lugar ali dentro, me viu.

A porta do escritório estava fechada — sinal de que ela devia estar ocupada. Mas, sinceramente, o que eu esperava? Que ela estivesse me esperando? Com aquele sorriso lindo, sereno, e o olhar confortavelmente cansado... mas ainda assim cheio de paciência quando o assunto era importante?
Sim. Talvez eu quisesse exatamente isso.

Talvez eu quisesse ser esperada.

Suspirei e continuei meu caminho até o banheiro. Fiz o que tinha que fazer ali, sem pressa, como quem tenta esticar o tempo num lugar onde, por algum motivo, começa a se sentir menos sozinha. Ao passar em frente à porta e vê-la ainda fechada, peguei minha garrafinha com um certo desânimo. Tinha algo no silêncio daquele corredor que me fazia sentir invisível. Segui em direção à entrada, pronta para voltar ao caixa e me juntar à Diana, quando ouvi o clique da maçaneta e, em seguida, meu nome ser chamado.

Paralisei. Como se um feitiço tivesse me atingido.

Por um segundo, achei que fosse coisa da minha cabeça — uma alucinação boba da mente cansada, faminta por atenção. Mas o som era real. A voz era dela. Verônica.

E naquele instante suspenso, tudo em mim quis acreditar que ela não me chamou por acaso.

 Virei devagar, tentando manter a expressão neutra, mesmo com o coração acelerado.

Verônica estava ali, parada na porta entreaberta do escritório, com as mangas da blusa levemente arregaçadas e os olhos cansados — mas atentos. Sempre atentos.

— Você tem um minuto? — perguntou, com a voz baixa, como se não quisesse interromper demais.

Assenti, me aproximando.

— Claro. Precisa de algo?

Ela deu um passo para o lado, abrindo mais espaço na porta, mas sem perder aquele cuidado que parecia pesar em cada gesto.

— Entra um instante, por favor.

O escritório estava do jeito de sempre: organizado, funcional, com a cadeira dela girada para o lado, como se tivesse acabado de levantar. Ela se encostou na beirada da mesa, enquanto eu permaneci de pé, segurando a garrafinha como se fosse meu calmante.

— Eu só queria saber como você está — disse, com um tom que tentava soar objetivo, mas deixava escapar uma preocupação real. — Hoje foi mais do que o esperado, e você ficou até o fim... sei que não é sua responsabilidade absorver tudo.

— Eu fiquei porque quis — respondi, mais rápido do que pretendia. — Achei melhor assim. E, sinceramente, não queria sair correndo. Gosto de estar aqui.

Ela assentiu devagar, o olhar abaixando por um instante.

— Eu notei. E por isso mesmo... se algum dia ficar demais, você pode me falar. Eu tô tentando manter o controle de tudo, mas às vezes não enxergo quem tá sobrecarregado até ser tarde demais.

Fiquei em silêncio por alguns segundos, absorvendo aquilo. Era uma preocupação profissional. Mas também havia algo mais. Algo que pairava no ar, sutil, mas vivo.

— Eu te aviso — falei por fim, suavemente. — Obrigada por perguntar.

Verônica sorriu de leve, aquele sorriso contido que não se entrega de primeira.

— Bom... era só isso. Pode voltar quando quiser. A Diana segura um pouco se precisar respirar mais.

Assenti, me virando para sair.

— Verônica?

Ela ergueu os olhos na mesma hora.

— O bilhete… foi você, né?

Um silêncio breve. Um segundo de hesitação. Depois, ela apenas respondeu:

— Foi.

E nada mais.

Eu saí do escritório sem olhar para trás, com a sensação de que algo havia sido dito — mesmo sem palavras.

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O acaso a meu favor - Página 74

  Continuação — O beijo… por Verônica O “quase” entre nossas bocas dura longos segundos — segundos que esticam o mundo, que dilatam o ar ao...