quarta-feira, 13 de agosto de 2025

O acaso a meu favor - Página 48

 Por Verônica...

Quando ela me perguntou sobre o bilhete, por um instante senti o mundo desabar — como uma adolescente pega no flagra, o coração disparado, a mente um turbilhão de medo e vergonha. Mas me agarrei a um fio de força e assumi, do jeito que consegui. Por fora, parecia calma, quase indiferente, mas por dentro, meu peito batia tão forte que parecia querer explodir, igual à bateria de uma escola de samba na Sapucaí no auge do desfile.

Ao dizer que fui eu, senti como se tivesse jogado uma luz sobre um segredo pesado demais para carregar. Não sei exatamente o que deixei claro, talvez nem eu saiba direito... Só sei que ainda não tenho coragem para encarar tudo isso de frente.

Dispensei o Augusto mais cedo. Ele tentou me segurar, tentou me convencer a ficar, mas eu firmei: “Está tudo sob controle”. Ele relutou, resistiu, mas no fim teve que ir pra casa. Fiquei sozinha com os meninos. Os repositores mais novos... olha, pelo que tô vendo, eles estão pegando o jeito rápido, aprendendo as funções, cada dia mais seguros.

Observei o Luís e o Paulo hoje. Engraçado como cada um está lidando com a despedida de um jeito tão diferente. Um deles, nos últimos dias do aviso, está dando o melhor de si — como se quisesse sair deixando uma boa impressão, talvez até tentando consertar o que não fez antes. Já o outro... parece uma criança birrenta, emburrada por ter sido castigada. Faz tudo de qualquer jeito, largado, jogando as tarefas com desdém. Vive repetindo: “Se eu não fui o melhor, então deixo o melhor fazer.” — Só me restou rir por dentro. A cena que me vem é a de um senhor de idade cruzando os braços, fazendo birra igual menino mimado. Ridículo, mas quase cômico.

O Luís, acabei tendo que demitir. Falta de compromisso. É jovem, não o julgo, tem muito chão pela frente — mas não posso permitir que a responsabilidade de um pese nos ombros de outro. O dia que ele chegou bêbado... ali foi o fim da linha pra mim. Tentei relevar, mas tem limite. Aqui não é balada, é trabalho.

A Juliana... ah, a Juliana já virou um caso perdido. Tentei conversar, orientar, ajustar. Nada. Ela trabalha como se tudo tivesse que girar do jeito dela. Se não for assim, ela trava, boicota, dificulta. E eu estou cansada. Cansada de lidar com gente que acha que firmeza é opressão. Isso aqui não é creche, nem casa de caridade. É uma empresa. Tem custo, tem margem, tem meta, tem venda. E principalmente — tem despesa. Se não vende, não lucra. E se não tem lucro, eu não tenho como pagar o salário de ninguém.

Às vezes me pego pensando se eu tô sendo dura demais. Se não tô exigindo demais de gente que, às vezes, mal sabe o que quer da vida. Mas aí lembro que ninguém me deu colher de chá quando eu comecei. Tudo o que conquistei foi no braço, no suor, segurando a barra sozinha, muitas vezes com o coração em pedaços e o sorriso forçado no rosto.

Liderar não é só mandar. É carregar o fardo do que ninguém vê. É perder o sono por conta de conta que não fecha, de funcionário que falta, de produto que não chegou. É fingir que está tudo bem mesmo quando, por dentro, você só queria deitar e sumir um pouco. Mas não posso. Não posso porque tem gente que depende desse lugar, dessa empresa, dessa estrutura que meu pai levantou com tanto esforço. Tem família que vive com o que a gente gera aqui.

Às vezes, queria que entendessem isso. Que cada centavo conta. Que cada atitude afeta o todo. Que o mercado pode ser pequeno, mas o peso que ele carrega é imenso. Não é só comércio. É vida real. É salário, é aluguel, é conta de luz. É dignidade.

E eu... eu só queria, de vez em quando, poder respirar sem sentir que estou carregando o mundo nas costas. Mas não reclamo. Porque, apesar de tudo, sei do valor da nossa família. E sei que não cheguei até aqui pra recuar agora.

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quinta-feira, 7 de agosto de 2025

O acaso a meu favor - Página 47

 Por Clara....

Ao assumir o caixa, percebo uma movimentação mais intensa no mercado — tanto por causa da reforma quanto pelo aumento no número de clientes. Verônica havia ajustado o mix de produtos, priorizando os mais procurados no momento. Deu atenção especial aos itens sem glúten e zero lactose, atendendo à demanda que os clientes havia expressado com tanta clareza.

A procura por esses produtos foi tão intensa que não só esvaziou as prateleiras, como também zerou o estoque. Precisei da ajuda de um dos repositores durante toda a noite só para conseguir embalar as compras — não dava conta de atender e ensacar ao mesmo tempo.

Faltando duas horas para o fechamento, finalmente pude respirar. Acabei ficando com a Diana até o fim, e consegui convencer a Verônica de que ela ainda não estava pronta para encarar um movimento tão intenso. Mas, no fundo, a verdade era outra: por algum motivo que eu ainda não entendia, tudo o que eu mais queria... era estar ali. No mercado.

Com o movimento começando a acalmar, vi os pedreiros da obra se despedirem da gente no caixa com aquele bom humor cansado de fim de turno. Sorri de volta, tentando relaxar os ombros pela primeira vez em horas. Aproveitei a brecha e pedi licença à Diana para beber um pouco de água e ir ao banheiro. Ela assentiu com um aceno leve, e eu peguei minha garrafinha — aquela mesma — e segui pelo corredor estreito que levava aos fundos do mercado.

Lá atrás, entre o bebedouro e o banheiro, o silêncio era diferente. Mais íntimo. Mais meu. Desde o dia do bilhete, deixo a garrafinha sempre no mesmo canto. É um gesto bobo, quase infantil, mas vai que... vai que ela escreve de novo. Vai que eu não sonhei. Vai que ela, em algum lugar ali dentro, me viu.

A porta do escritório estava fechada — sinal de que ela devia estar ocupada. Mas, sinceramente, o que eu esperava? Que ela estivesse me esperando? Com aquele sorriso lindo, sereno, e o olhar confortavelmente cansado... mas ainda assim cheio de paciência quando o assunto era importante?
Sim. Talvez eu quisesse exatamente isso.

Talvez eu quisesse ser esperada.

Suspirei e continuei meu caminho até o banheiro. Fiz o que tinha que fazer ali, sem pressa, como quem tenta esticar o tempo num lugar onde, por algum motivo, começa a se sentir menos sozinha. Ao passar em frente à porta e vê-la ainda fechada, peguei minha garrafinha com um certo desânimo. Tinha algo no silêncio daquele corredor que me fazia sentir invisível. Segui em direção à entrada, pronta para voltar ao caixa e me juntar à Diana, quando ouvi o clique da maçaneta e, em seguida, meu nome ser chamado.

Paralisei. Como se um feitiço tivesse me atingido.

Por um segundo, achei que fosse coisa da minha cabeça — uma alucinação boba da mente cansada, faminta por atenção. Mas o som era real. A voz era dela. Verônica.

E naquele instante suspenso, tudo em mim quis acreditar que ela não me chamou por acaso.

 Virei devagar, tentando manter a expressão neutra, mesmo com o coração acelerado.

Verônica estava ali, parada na porta entreaberta do escritório, com as mangas da blusa levemente arregaçadas e os olhos cansados — mas atentos. Sempre atentos.

— Você tem um minuto? — perguntou, com a voz baixa, como se não quisesse interromper demais.

Assenti, me aproximando.

— Claro. Precisa de algo?

Ela deu um passo para o lado, abrindo mais espaço na porta, mas sem perder aquele cuidado que parecia pesar em cada gesto.

— Entra um instante, por favor.

O escritório estava do jeito de sempre: organizado, funcional, com a cadeira dela girada para o lado, como se tivesse acabado de levantar. Ela se encostou na beirada da mesa, enquanto eu permaneci de pé, segurando a garrafinha como se fosse meu calmante.

— Eu só queria saber como você está — disse, com um tom que tentava soar objetivo, mas deixava escapar uma preocupação real. — Hoje foi mais do que o esperado, e você ficou até o fim... sei que não é sua responsabilidade absorver tudo.

— Eu fiquei porque quis — respondi, mais rápido do que pretendia. — Achei melhor assim. E, sinceramente, não queria sair correndo. Gosto de estar aqui.

Ela assentiu devagar, o olhar abaixando por um instante.

— Eu notei. E por isso mesmo... se algum dia ficar demais, você pode me falar. Eu tô tentando manter o controle de tudo, mas às vezes não enxergo quem tá sobrecarregado até ser tarde demais.

Fiquei em silêncio por alguns segundos, absorvendo aquilo. Era uma preocupação profissional. Mas também havia algo mais. Algo que pairava no ar, sutil, mas vivo.

— Eu te aviso — falei por fim, suavemente. — Obrigada por perguntar.

Verônica sorriu de leve, aquele sorriso contido que não se entrega de primeira.

— Bom... era só isso. Pode voltar quando quiser. A Diana segura um pouco se precisar respirar mais.

Assenti, me virando para sair.

— Verônica?

Ela ergueu os olhos na mesma hora.

— O bilhete… foi você, né?

Um silêncio breve. Um segundo de hesitação. Depois, ela apenas respondeu:

— Foi.

E nada mais.

Eu saí do escritório sem olhar para trás, com a sensação de que algo havia sido dito — mesmo sem palavras.

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domingo, 27 de julho de 2025

O acaso a meu favor - Página 46

 Por Clara...

Ao desligar o celular, ainda meio zonza, me sento na beira da cama. O corpo tá preguiçoso, mas a cabeça já começou a rodar com tudo que me espera dali a pouco.

Olho pro pé da cama e vejo o Bento, completamente estirado, do jeito mais dramático possível — patas pra cima, barriga exposta, como se o mundo não exigisse nada dele.

Solto uma risada baixa, daquelas nasais, sem nem conseguir evitar.

— Ai Bento, queria ser você por um dia... — murmuro.

Mas não sou. Então levanto.

Primeiro passo: rotina felina. Limpo a caixa de areia com um certo orgulho (e uma careta), troco a água, coloco ração nova. Ele nem se mexe. Só quando me abaixo pra dar aquele beijinho na cabeça dele é que abre um olho preguiçoso, como quem diz “Sério humana?”.

— Mal acostumado... — brinco, sorrindo.

Sigo pro banheiro. O banho é rápido, prático. Escovo os dentes debaixo do chuveiro mesmo, pensando na correria que já me espera. A mente corre, mas o corpo vai despertando.

Ao sair, pego o uniforme e quase solto um suspiro de gratidão.

Graças a Deus que lavei ontem. — penso, aliviada, enquanto visto a camisa e amarro o cabelo.

Olho no espelho. Ainda tô com cara de sono, mas os olhos já estão decididos.

Chego no mercado e já sinto o ar denso, como se o lugar tivesse absorvido toda a tensão da manhã. Empurro a porta com cuidado e entro. O som do movimento já me abraça: caixas sendo organizadas, o bip rápido do leitor de código, o vai e vem dos meninos no estoque.

Mas meus olhos vão direto pra ela.

Verônica está atrás do balcão, de pé, com uma pilha de notas fiscais numa mão e o celular na outra. Quando me vê, ela congela por um segundo.

Vejo rostos apressados, caixas se acumulando, e no meio do caos... ela.

Verônica.

Está ali, de pé, corpo rígido, olhos vasculhando tudo ao mesmo tempo. E nesse segundo, eu entendo tudo.

O alívio dela me atravessa.

Ela não sorri com a boca, mas os olhos suavizam como se, enfim, pudesse respirar. Me aproximo e apenas balanço a cabeça, como quem diz: “Tô aqui.” Ela responde com um olhar que mistura gratidão, cansaço e um pedido mudo de “fica.”

E eu fico.

Mas antes que eu assuma o caixa, cruzo com o Augusto. Ele já me viu, mas finge surpresa.

Se aproxima com aquele sorrisinho meio irônico, meio forçado. O tipo de sorriso que não chega nos olhos.

Uau... não achei que você viesse. — diz, como quem elogia, mas empurra veneno por trás.

— Pois é... — respondo, sem dar espaço. — Verônica precisava.

Ele levanta uma sobrancelha, disfarçando o incômodo.

— Claro, claro... sempre bom ver quem tá disposto a sair da cama na folga.

O tom é leve, mas a cutucada está ali.

Sorrio de lado, sem perder o compasso.

— Sempre bom ver quem ainda consegue se surpreender com responsabilidade, né?

Ele engole seco, mas não responde. Apenas entrega a chave do caixa com um movimento apressado e vira as costas.

Não digo mais nada. Só caminho até meu posto, com a cabeça erguida. Porque hoje eu não vim por ele.

Vim por ela. Por Verônica.

Sento no caixa com cuidado. Passo álcool nas mãos, ajeito o uniforme e respiro fundo. Por dentro, ainda tô tentando acordar direito, mas o corpo já entrou no ritmo.

Não vim pra salvar nada. Nem acho que tô fazendo algo grande. Só... não consegui dizer não.

Verônica precisava. E eu senti que devia estar aqui. Simples assim.

Levanto os olhos e vejo ela me olhando de longe. O rosto cansado, os ombros mais soltos agora. E por um instante, nossos olhares se cruzam.

Ela não diz nada. Mas o jeito como me olha me faz sentir que fiz a coisa certa.

E isso, pra mim, já é muito.

Não me vejo como indispensável. Nem acho que sou melhor que ninguém. Só quero ajudar quando posso, e hoje eu pude.

Talvez seja porque vejo nela algo que admiro — essa força de continuar, mesmo quando tudo tá caindo aos pedaços. E se ela, com tanto mais nas costas, não desiste... então eu também posso levantar da cama e vir somar.

Não vim pra brilhar, nem pra aparecer.

Vim porque me importo.

E isso, no fundo, é o que mais me move.

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O acaso a meu favor - Página 74

  Continuação — O beijo… por Verônica O “quase” entre nossas bocas dura longos segundos — segundos que esticam o mundo, que dilatam o ar ao...