Continuação da cena por Clara - Parte ll...
Ao sair do banheiro, a encontro mais relaxada. Está sentada no sofá, os ombros menos tensos, o olhar um pouco mais leve. Um sorriso involuntário me escapa — vê-la bem, mesmo que por instantes, ainda mexe comigo. Por reflexo, quase sem pensar, a convido para jantar. Ela aceita sem hesitar, como se ainda fôssemos nós, como se nada tivesse se quebrado entre aquele "oi" e esse agora.
Ela começa a arrumar a mesa com a naturalidade de quem já pertenceu àquele espaço. E eu vou para a cozinha, assumindo o comando da comida. Não trocamos muitas palavras. O silêncio não era hostil, mas tampouco era confortável. Era... suportável.
E aí, no meio daquele silêncio cheio de pratos e talheres, eu percebi: era isso o que sempre tínhamos tido antes do fim. Suportável. Nunca foi exatamente paz — era apenas uma ausência momentânea de guerra. Um cuidado constante em não pisar forte demais, em não falar alto demais, em não sentir demais.
Era como viver sobre uma superfície fina de gelo — e eu sempre soube que, um dia, isso iria romper.
Lembro com nitidez dos momentos em que tentei alcançá-la. Tentava chamar sua atenção com palavras brandas, com gestos, com um amor quase desesperado por salvar o que ainda restava. Tentava arrancá-la daquela ira que parecia morar em seu peito — mas, invariavelmente, quem acabava ferida era eu.
A cada tentativa de diálogo, a cada vez que me abria para dizer o que me doía, o retorno era o silêncio. Ou pior: o descaso, aquele olhar perdido que me dizia que minhas dores não tinham importância. Como se eu fosse invisível no meio do furacão que ela mesma carregava.
E hoje, olhando para tudo com a distância que a solidão permite, percebo que ficar sozinha foi, talvez, o maior presente que ela pôde me dar. Porque ali, naquele abandono, eu finalmente me libertei. Me libertei da necessidade constante de consertar o inquebrável, de entender o que não era meu para curar. Me libertei da guerra que, por tanto tempo, travava sozinha em nome de um “nós” que só existia na minha esperança.
Sentamos à mesa. A comida entre nós é simples, mas quente — quase reconfortante. Bento se enrola aos pés de Camila, como se ela nunca tivesse partido. Ela sorri com isso, pega um pedaço de pão, mas hesita antes da primeira mordida. Sinto no ar que ela quer falar. A respiração mais longa, o olhar que evita o meu, os dedos inquietos na borda do copo.
— Clara... — começa, finalmente. A voz dela é baixa, como se pisasse em território sagrado. — Sobre esses meses... sobre o sumiço...
Levanto os olhos devagar, sem pressa. Ela continua:
— Eu não sabia como voltar. Tinha medo do que você ia dizer. Medo de me encarar depois de tudo que eu...
— Camila. — a interrompo, sem levantar o tom, mas com firmeza. — Talvez hoje não seja o melhor dia pra isso.
Ela engole o resto da frase como se tivesse gosto amargo. Olha para o prato, balança a cabeça levemente, em silêncio. O clima muda, mas não explode. Só se torna mais denso, mais cheio de tudo o que não está sendo dito.
— Eu entendo. — ela murmura, quase para si mesma.
Continuamos a comer. Mastigamos o jantar, e com ele, todas as palavras engasgadas entre nós. Às vezes, nossos olhos se cruzam, mas nenhum de nós segura o olhar por muito tempo.
Terminamos o jantar em silêncio, cada um mergulhado no próprio prato, no próprio passado. Os talheres descansam agora sobre os pratos vazios, e Bento, já satisfeito com os carinhos e a presença, se acomoda num canto, observando tudo com olhos semicerrados.
Camila se levanta devagar, como quem entende que o tempo ali acabou — não só o do jantar, mas o do que restava entre nós. Ela começa a juntar os pratos com o mesmo cuidado com que, um dia, eu tentei juntar os pedaços de algo que ela mesma quebrou.
— Eu... — ela começa, mas para no meio da frase, com os olhos presos aos meus por um breve instante. Não há raiva, nem mágoa. Apenas cansaço e o eco do que já fomos.
Me levanto também, caminhando até a porta antes que as palavras voltem. Não quero mais explicações. Algumas coisas, quando ditas, só machucam mais.
Ela entende. Camila sempre soube ler silêncios melhor do que palavras.
— Obrigada por hoje — diz por fim, com uma honestidade rara, talvez pela primeira vez em muito tempo.
— Cuida de você — respondo, e minha voz sai firme, mesmo com o nó na garganta.
Ela sorri, triste. Um sorriso de despedida, de quem entende que o retorno talvez não seja mais possível — e que, no fundo, nunca foi.
Abro o portão. Ela passa por mim devagar, e antes de seguir pela calçada, se vira uma última vez. O olhar dela se prende no meu por alguns segundos que parecem eternos. Nenhum de nós diz nada.
Ela vai.
E, assim, eu fecho a porta. Sem pressa. Sem drama. Apenas fecho.
E pela primeira vez em muito tempo, sinto que algo dentro de mim também começa a se fechar — mas em paz.
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