segunda-feira, 30 de junho de 2025

O acaso a meu favor - Página 28

 Por Verônica...

Ao ouvir o pequeno apelido que acabei de ganhar  —, meu sorriso reagiu antes mesmo do meu corpo entender o que estava acontecendo. Foi automático. Quase bobo. Mas genuíno.

Ficamos ali por mais alguns minutos, em um silêncio que, surpreendentemente, não me incomodou. Era o tipo de silêncio raro, daqueles que não pesam, não apertam. Um silêncio que repousa, que se encaixa.

Mas, como tudo na vida, teve um fim. O som da porta abrindo, passos se aproximando, o tilintar do crachá no leitor. O restante dos funcionários começava a chegar para o turno da manhã. E, como quem acorda de um sonho discreto, Clara se levantou, bateu o ponto e foi para seu posto.

E eu? Fiquei. Sentada na minha cadeira, o cursor piscando na tela à minha frente, enquanto uma onda de sentimentos — sutis, estranhos, elétricos — dava pequenos choques dentro de mim.

Tudo isso... por causa de um apelido. Um nome dito sem querer. Um carinho jogado no ar.

“Vê”. Repeti mentalmente. E, pra minha própria surpresa, gostei de ouvir.

Não era só um som. Era a forma como ela disse. Como se já me conhecesse mais do que deveria, ou como se quisesse me alcançar em um lugar onde ninguém mais ousou tocar.

E o pior — ou talvez o melhor — é que me senti alcançada.

E isso, pra alguém como eu, é mais perigoso do que qualquer ladrão de mercado.

E, na mesma fração de segundos, o sentimento genuíno se transformou em preocupação. Um baque discreto, mas certeiro. Até ontem, eu estava cogitando me afastar. Mas com a quebra de pernas que acabei de sofrer — com aquele “Vê” escapando dos lábios dela como se fosse natural —, como faço isso agora?

Como me distancio de algo que já está perto demais?

Respiro fundo. Mas respiro mesmo, como se o que estivesse me sufocando fosse a simples falta de oxigênio. Como se bastasse encher os pulmões de ar para colocar tudo de volta no lugar. Mas não é isso. Não é ar que está faltando. É controle.

E quando começo a perder o controle — mesmo que em silêncio — sei que estou pisando em território perigoso.

 O mais irônico? Ninguém notaria. Nem ela. E talvez seja exatamente isso que mais me assusta. Porque por dentro, tudo já começou a mudar. E não sei se consigo, ou sequer quero, impedir.

"

Não foi só ela que me chamou ou me chama assim — esse apelido já saiu da boca de outras pessoas antes. Amigas, colegas, até alguma paixonite do passado. Mas na voz delas… soou brega demais. Como se não combinasse comigo ser chamada assim. Como se não pertencesse. Só que, da boca dela… foi diferente. Me atingiu de um jeito que incomoda — não pela palavra, mas pelo que ela desperta.

Começo a me perder em pensamentos, com a porta do escritório semiaberta e o ar-condicionado jogando um frio artificial que já nem sinto direito. A mente vai longe, mesmo com o movimento aumentando no mercado. Me pego presa naquele momento, naquele som…

Volto os olhos para a tela do computador, tentando me distrair com os pedidos do mês, com números frios e listas pragmáticas. Mas nem o cursor piscando diante de mim é capaz de tirar aquela palavra da minha cabeça.

"

Por muitos motivos, me forço a puxar a cabeça de volta para os problemas reais. Reais e urgentes. Problemas que, se ignorados, podem virar bolas de neve e afetar muita gente, muitos funcionários — inclusive Clara. E talvez por isso mesmo, pela proximidade dela com esses pequenos riscos, eu esteja ainda mais atenta.

Vejo duas jovens entrarem no mercado, uma delas com uma prancheta e a outra segurando uma pastinha simples. Conversam algo com Clara, que está no caixa com aparência mais serena do que o habitual. Seu sorriso não é forçado. Isso me faz suspirar fundo.

Olho para o relógio de pulso. 9h58. Deduzo rapidamente: são as entrevistas que agendei para às 10h. O alarme mental toca, me puxando do torpor emocional que ainda lateja. Aperto os olhos por um instante, como se isso fosse organizar o turbilhão, e me levanto.

Ajusto a blusa, endireito os ombros e caminho em direção ao pequeno espaço reservado ao fundo do mercado para as entrevistas. Enquanto caminho, percebo Clara indicar com um gesto educado onde fica o escritório. As candidatas me notam e caminham em minha direção.

Volto a assumir a postura que esperam de mim. A dona, a que resolve, a que coordena tudo — e que não se perde por um apelido dito com doçura.

Pelo menos, é o que eu finjo muito bem.

Ao terminar as entrevistas, fecho o pequeno caderno de anotações que uso nesses momentos. Tento manter o tom imparcial, mas é inevitável quando a diferença de interesse entre as duas salta aos olhos. Uma das candidatas parecia estar ali por necessidade real — prestando atenção a cada palavra minha, como se quisesse absorver tudo. A outra... bom, talvez estivesse em busca de qualquer oportunidade, o que entendo, mas não posso me dar ao luxo de contratar alguém sem sangue nos olhos. Ainda mais agora.

Levanto, aperto a mão das duas com cordialidade e as acompanho até a porta. Ao vê-las saírem, o silêncio volta a tomar conta do escritório. Olho rapidamente para as câmeras e vejo Clara passando o código de um produto para uma senhora de cabelos grisalhos no caixa. Ela sorri, e mesmo que eu não ouça o som, sei exatamente como é a risada dela.

Respiro fundo e tento retomar o foco. Preciso de três operadoras de caixa fixas, e os repositores estão sobrecarregados com a falta de um dos meninos. Além disso, abrir o açougue até o fim do mês virou uma meta inadiável.

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domingo, 29 de junho de 2025

O acaso a meu favor - Página 27

 Por Clara...

Ao ver que era a Verônica e não o Augusto sentado na cadeira do escritório, minhas pernas viraram gelatina. Instantaneamente senti minhas orelhas esquentarem, aquele calor súbito que denuncia quando algo me pega desprevenida — e, geralmente, é ela quem causa esse efeito.

Era para eu ter um certo ressentimento dela, pela primeira impressão dura que me deixou, pela forma como me olhou no meu primeiro dia aqui, quase como se eu fosse um erro administrativo. Mas com o tempo... com o tempo dela aqui, das conversas no horário do almoço, dos olhares menos frios e mais atentos, das brincadeiras discretas — senti que ela tentava, à sua maneira, corrigir o erro daquela primeira vez.

E eu, mesmo tentando resistir, acabei me deixando tocar por isso. Por ela.

— Bom dia, Clara — disse, com uma euforia no tom que não combinava com o jeito controlado que costumava usar.

Eu sorri de volta, pequena, sem mostrar os dentes. Meu corpo respondeu antes que minha mente pudesse intervir: um “bom dia” quase sussurrado saiu dos meus lábios, e senti as bochechas queimando. Tentei esconder o nervosismo ajeitando a alça da mochila e desviando o olhar, como se o chão fosse mais interessante do que a mulher sentada à minha frente. Mas não era.

Ultimamente venho percebendo, que nada era mais interessante que Verônica.

Meio que minha fala sai um pouco gaga, porém acho que ela entendeu, pois acabou dando uma risada — aquela risada dela, que é baixa, mas sincera o suficiente para me desmontar.

— Eu pensei que... que fosse o Augusto... — tentei explicar, ainda parada na porta, como se meus pés tivessem se enraizado ali mesmo.

Na verdade, eu ia completar dizendo que estava preocupada com ele, por conta de ontem, da agressão e tudo mais... mas ela foi mais rápida, e do jeito que só ela consegue ser, me pegou de surpresa com uma pergunta que mais parecia uma armadilha — daquelas que a gente cai até querendo.

— Ah, então você preferiria que fosse o Augusto aqui do que eu? — perguntou, arqueando uma das sobrancelhas com um falso tom de indignação que me arrancou um arrepio inesperado na nuca.

Eu travei. Meu cérebro tentou desesperadamente encontrar uma resposta inteligente, casual, engraçada… qualquer coisa que não denunciasse o nó que ela causava no meu estômago.

— N-não foi isso que eu quis dizer... — gaguejei de novo, e senti minha vergonha crescer exponencialmente. — É que... eu... achei que ele que... que ia estar aqui hoje... só isso...

Ela manteve aquele meio sorriso nos lábios, como se tivesse acabado de ganhar um ponto num jogo que só ela sabia que estava sendo jogado.

Sem nem perceber, soltei as palavras como quem pensa alto, mais para mim mesma do que para ela:

— Qualquer pessoa é melhor que o Augusto pela manhã nesse mercado. — falei olhando para um ponto fixo qualquer à minha frente, só percebendo o que disse de verdade quando ouvi a gargalhada dela.

Uma risada leve, espontânea, dessas que escapam antes de qualquer filtro — e aquilo me fez sorrir também, mesmo querendo me esconder de vergonha.

— Mas não conta isso a ele — disse, voltando a olhá-la com um sorriso quase cúmplice. — É capaz dele me demitir.

Ela me lançou um olhar divertido, um tanto provocador, como se guardasse o segredo com gosto.

— Seu segredo está seguro comigo — respondeu, como quem faz uma promessa selada no ar.

Ficamos em silêncio por um segundo que pareceu mais longo do que deveria. Um daqueles silêncios que não incomodam, mas também não explicam nada. Apenas ficam ali, pairando entre a gente, como uma pergunta que ninguém tem coragem de fazer.

Quando penso que não posso me surpreender mais com essa mulher, ela vai lá e me prova o contrário. E faz isso sem esforço, como quem nem percebe o efeito que tem sobre mim.

— Senta aqui. — ela diz, apontando para a cadeira vazia ao seu lado, com um gesto quase casual. — Ainda tem vinte minutos pro seu horário começar.

Olho para ela meio sem acreditar, meio tentando entender o que está por trás desse convite simples. O tom era leve, mas tinha algo ali... algo na forma como ela disse, na forma como seus olhos me olharam rápido demais e desviaram depois. Ou talvez seja só coisa da minha cabeça.

Me aproximo devagar, puxo a cadeira e me sento com cuidado, como se estivesse entrando em um território novo. Eu não deveria estar aqui, eu sei. Mas algo dentro de mim quer muito ficar.

Ela me olha de um jeito que... me conforta. É diferente de tudo que já senti vindo dela antes — não tem autoridade, nem aquele ar de controle. Só um silêncio calmo, como se dissesse que estava tudo bem ali, entre nós duas.

Enquanto digita algo no computador, vejo seus olhos atentos na tela, os dedos rápidos no teclado. Me pego observando-a mais do que deveria, até que sua voz suave quebra o silêncio:

— Pode ligar esse computador à sua frente pra mim? — pede sem sequer desviar os olhos da tela.

Apenas obedeço, meio sem pensar, apertando o botão e vendo a luz da logo acender. Tudo normal... até a próxima ordem.

— E coloca numa rádio qualquer aí... que toque música brasileira clássica.

Reviro os olhos internamente. Ah, não. De novo não. A última semana foi praticamente uma trilha sonora de Elis Regina, Cartola, e Vinícius, repetida em loop. Eu até gosto, mas já decorei as respirações da Gal Costa.

— Música brasileira clássica? — pergunto, quase numa provocação. — Não tem nada com um pouco mais de batida, não?

Ela dá um sorrisinho rápido, ainda olhando para o monitor.

— E você gosta de estilo musical, bonita? — ela pergunta com um sorriso leve, divertido, meio provocador. — Menos funk, por favor.

Me permito rir de forma solta, daquele jeito que vem fácil quando estou confortável. Ela me pega desprevenida com esse tom brincalhão que tem usado ultimamente.

— Não, não é funk. — respondo ainda risonha. — Poxa, um sertanejinho não faz mal a ninguém. Além do mais, aqui é praticamente o berço do estilo. Tem que valorizar, né?

Ela vira o rosto na minha direção, tirando os olhos do monitor, e eu dou de cara com aquele par de óculos que, sinceramente... deixam ela ainda mais interessante. Sexy. É isso mesmo que estou pensando? Clara, foco. Mas é difícil com aquele olhar avaliador por trás das lentes, e o sorrisinho no canto da boca.

— Desde quando pessoa da sua região curtem sertanejo? — diz, arqueando uma sobrancelha.

A olho com um fingido olhar ofendido e, sem pensar muito, pego um papel em branco que estava por perto e dou uma batidinha leve em seu braço.

— Olha o preconceito! — exclamo, teatralmente indignada.

Ela ri — uma risada verdadeira, leve, sem pressa. Mas não me repreende. Pelo contrário, me olha de um jeito que quase me faz esquecer onde estou.

Pesquiso algumas músicas sertanejas antigas, já preparando a playlist para deixar no fundo enquanto o dia começa. Mas, antes que eu consiga dar play, ouço a voz dela se intrometer com aquele tom meio indignado, meio brincalhão que já estou começando a reconhecer.

— Ah, não... — começa, se virando na cadeira. — Aposto que você nem gosta das clássicas de verdade. Aqueles modões bons mesmo... Porque, claro, muito deles nem vivos são, né? — Ela revira os olhos com exagero, e continua antes que eu possa retrucar. — Mas eu tenho que escutar as músicas dos cantores que você gosta, que também já morreram! Isso é jogo sujo, Clara.

— Ah, não, Vê... só hoje vai?! — solto automaticamente, num tom meio manhoso, meio brincando.

Mas assim que percebo o que acabei de dizer — —, sinto o corpo inteiro congelar. Arregalo os olhos, como se a palavra pudesse voltar pra dentro de mim. Tento me justificar rápido, tropeçando nas palavras.

— Digo, Verônica... É que... foi no impulso, eu... desculpa.

Ela me encara por um segundo, e juro que vejo algo diferente em seu olhar. Não é julgamento. Nem deboche. É... surpresa, talvez. Curiosidade. E um brilho divertido, claro — como quem acabou de ganhar um presente inesperado.

Ela dá um sorrisinho de canto, daqueles que não mostram os dentes, mas dizem muita coisa.

— "Vê", é? — repete, com um ar leve, como se tivesse saboreando a palavra. 

Sinto minhas bochechas queimarem como se alguém tivesse acendido uma fogueira nelas.

— Eu juro que não foi de propósito. — digo nervosa, sem saber onde enfiar o rosto.

— Ainda bem. — ela responde, voltando os olhos pro computador. — Porque se fosse, ia ser ainda mais difícil eu fingir que não gostei. —  Essa parte eu não ouço ela dizer com clareza, mas ela sabe que eu ouvir.

E aí ficamos em silêncio. Um silêncio confortável, preenchido pelo som de alguma dupla antiga cantando sobre saudades e corações partidos. E, de repente, nenhuma música parece mais tão brega assim.

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O acaso a meu favor - Página 26

 Continuação por Verônica...

Ao mandar as mensagens para Clara, decido deixar o celular de lado e refletir sobre como anda minha vida nesses últimos meses aqui em Caldas. Percebo que estamos progredindo de alguma maneira, mesmo com as demissões, com a falta de recurso e novidade no mercado. Tenho em mente que o básico bem feito, é melhor que uma... …inovação mal executada. E é nisso que venho me apoiando: em tentar fazer o simples com excelência. A cada dia que passa, entendo um pouco mais sobre as pessoas daqui, sobre o ritmo dessa cidade que parece parada no tempo, mas que aos poucos vai me permitindo espaço.

O mercado, mesmo pequeno, se tornou meu maior desafio — não apenas como administradora, mas como mulher tentando sobreviver em meio a tantas expectativas e desconfianças.

Não consigo evitar pensar em Clara nesse processo. O jeito espontâneo dela, a forma como me olha às vezes, como se pudesse me desarmar com aquele meio sorriso distraído. Tentei não me apegar, manter distância. Mas como manter distância de algo que, mesmo sem querer, se aproxima mais a cada dia?

Não me incomodo com a solitude que escolhi viver todos os dias. Gosto da minha própria companhia, do silêncio que me organiza por dentro. E, sinceramente, duvido que exista alguém que acompanhe o ritmo acelerado dos meus pensamentos, minhas exigências, minhas manias. Mas... e se? E se essa pessoa existisse? …E se essa pessoa já estivesse por perto, se esgueirando pelas frestas do meu cotidiano, sem que eu tivesse me dado conta?

Não quero idealizar, muito menos correr. Mas e se... a minha solitude estivesse só preparando espaço para algo novo, algo que, por mais assustador que pareça, também pode ser leve?

Começo a rir dos meus próprios pensamentos e penso - Às vezes penso que estou perdendo o juízo. Ficar com o coração acelerado só por ver uma funcionária agir com coragem demais, ou se preocupar com alguém a ponto de mandar mensagem à noite, não é exatamente algo que eu faria — ou que eu deveria fazer. Talvez seja só o estresse, ou quem sabe... carência. Carência física, emocional, ou os dois misturados em um coquetel hormonal que me faz enxergar coisa onde não tem.

Devo estar mesmo precisando de algo mais... íntimo. Um toque, uma distração, um corpo quente que não seja só o travesseiro. Só pode ser isso. Não tem lógica esse meu cérebro transformar um ato de coragem da Clara em cena de filme romântico. Mas então por que eu não consigo parar de lembrar o jeito que ela olhou pra mim antes de sair hoje? Será que tô mesmo ficando louca?

Nesse turbilhão de pensamentos, me vem à cabeça a Ana, que deixei em San Diego. Tivemos algo... casual. Talvez só algumas noites de distração. Não era ruim, pelo contrário — era prático, simples, direto. Aquele tipo de envolvimento que se encaixa bem quando tudo o que você quer é silenciar o corpo por umas horas. Nunca passou disso. Nunca quis que passasse, e acredito que ela também não. Só que agora, pensando com mais clareza, percebo que não sinto — ou nunca senti — nada além de atração física por ela. E isso, que antes era suficiente, hoje parece... vazio.

O que me incomoda é isso: o raso, o básico, o controlado… não está mais me preenchendo. Não sei se é o ambiente novo, a rotina intensa ou… Clara. Mas há algo nessa sensação que não consigo calar. E o pior? Nem sei se quero calar. Depois de fervilhar a cabeça com tantos pensamentos, decido dormir.

No dia seguinte, chego mais cedo que o habitual. Ainda com o corpo cansado da noite mal dormida e da cabeça cheia demais para suportar o silêncio de casa. Dispensei os serviços do Augusto — achei o mínimo que podia fazer depois da confusão de ontem. Pedi que se recuperasse, mesmo sabendo que ele preferiria estar aqui, fazendo questão de parecer indispensável. Mas hoje eu queria o mercado mais calmo. Mais... meu. E talvez, com sorte, um pouco dela também.

Organizo algumas planilhas no computador, mas meus olhos, de tempos em tempos, desviam para a câmera da entrada. Como se fosse um relógio bem programado, Clara aparece, alguns minutos antes do horário dela. Não era pontual por acaso. Quando vejo a cabeça dela surgindo pela porta, seus olhos procuram por alguém, e percebo a surpresa contida ao notar que sou eu quem está ali — e não o Augusto.

Viro a cadeira em sua direção devagar, sem pressa, quase como se esperasse esse momento. Sorrio, involuntariamente. Um sorriso mais leve do que estou acostumada a mostrar.

— Bom dia, Clara. — digo, com uma euforia quase desajeitada, que me escapa antes de eu conseguir controlá-la. Ela hesita um segundo, como se tentasse entender meu tom. E, por um instante, meu peito pesa — não sei se pela tensão de ontem ou por essa sensação estranha de estar começando o dia... bem.

Clara, sendo quem é, me devolve o cumprimento de maneira genuína, com aquele sorriso pequeno, quase envergonhado, que ela sempre tenta esconder, mas que insiste em aparecer. Vejo seu tom de pele mudar sutilmente — as bochechas ganham um leve avermelhado que, em outra pessoa, talvez passasse despercebido. Mas nela, não. Presumo que esteja com vergonha. E, bom... quem diria?

Ela ajeita a alça da mochila no ombro como se isso fosse esconder o desconforto que começa a tomar forma entre nós, mas eu finjo não notar. Ou melhor — noto cada detalhe, mas não demonstro. Aprendi a fazer isso muito bem. E ainda assim, Clara parece ser a única pessoa capaz de me fazer desejar, por alguns segundos, não esconder nada.

— Dormiu bem? — pergunto, como quem joga a isca na água calma.
Ela me encara por um segundo, talvez surpresa com o interesse, e então assente devagar, como se ainda estivesse tentando entender a que jogo estou jogando.

Não sei ao certo o que estou fazendo. Não sei quando isso tudo deixou de ser só profissional. Só sei que, mesmo que tenha começado como curiosidade, agora isso... me assusta um pouco.

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O acaso a meu favor - Página 74

  Continuação — O beijo… por Verônica O “quase” entre nossas bocas dura longos segundos — segundos que esticam o mundo, que dilatam o ar ao...