Por Verônica...
Ao ouvir o pequeno apelido que acabei de ganhar —, meu sorriso reagiu antes mesmo do meu corpo entender o que estava acontecendo. Foi automático. Quase bobo. Mas genuíno.
Ficamos ali por mais alguns minutos, em um silêncio que, surpreendentemente, não me incomodou. Era o tipo de silêncio raro, daqueles que não pesam, não apertam. Um silêncio que repousa, que se encaixa.
Mas, como tudo na vida, teve um fim. O som da porta abrindo, passos se aproximando, o tilintar do crachá no leitor. O restante dos funcionários começava a chegar para o turno da manhã. E, como quem acorda de um sonho discreto, Clara se levantou, bateu o ponto e foi para seu posto.
E eu? Fiquei. Sentada na minha cadeira, o cursor piscando na tela à minha frente, enquanto uma onda de sentimentos — sutis, estranhos, elétricos — dava pequenos choques dentro de mim.
Tudo isso... por causa de um apelido. Um nome dito sem querer. Um carinho jogado no ar.
“Vê”. Repeti mentalmente. E, pra minha própria surpresa, gostei de ouvir.
Não era só um som. Era a forma como ela disse. Como se já me conhecesse mais do que deveria, ou como se quisesse me alcançar em um lugar onde ninguém mais ousou tocar.
E o pior — ou talvez o melhor — é que me senti alcançada.
E isso, pra alguém como eu, é mais perigoso do que qualquer ladrão de mercado.
E, na mesma fração de segundos, o sentimento genuíno se transformou em preocupação. Um baque discreto, mas certeiro. Até ontem, eu estava cogitando me afastar. Mas com a quebra de pernas que acabei de sofrer — com aquele “Vê” escapando dos lábios dela como se fosse natural —, como faço isso agora?
Como me distancio de algo que já está perto demais?
Respiro fundo. Mas respiro mesmo, como se o que estivesse me sufocando fosse a simples falta de oxigênio. Como se bastasse encher os pulmões de ar para colocar tudo de volta no lugar. Mas não é isso. Não é ar que está faltando. É controle.
E quando começo a perder o controle — mesmo que em silêncio — sei que estou pisando em território perigoso.
O mais irônico? Ninguém notaria. Nem ela. E talvez seja exatamente isso que mais me assusta. Porque por dentro, tudo já começou a mudar. E não sei se consigo, ou sequer quero, impedir.
"
Não foi só ela que me chamou ou me chama assim — esse apelido já saiu da boca de outras pessoas antes. Amigas, colegas, até alguma paixonite do passado. Mas na voz delas… soou brega demais. Como se não combinasse comigo ser chamada assim. Como se não pertencesse. Só que, da boca dela… foi diferente. Me atingiu de um jeito que incomoda — não pela palavra, mas pelo que ela desperta.
Começo a me perder em pensamentos, com a porta do escritório semiaberta e o ar-condicionado jogando um frio artificial que já nem sinto direito. A mente vai longe, mesmo com o movimento aumentando no mercado. Me pego presa naquele momento, naquele som…
Volto os olhos para a tela do computador, tentando me distrair com os pedidos do mês, com números frios e listas pragmáticas. Mas nem o cursor piscando diante de mim é capaz de tirar aquela palavra da minha cabeça.
"
Por muitos motivos, me forço a puxar a cabeça de volta para os problemas reais. Reais e urgentes. Problemas que, se ignorados, podem virar bolas de neve e afetar muita gente, muitos funcionários — inclusive Clara. E talvez por isso mesmo, pela proximidade dela com esses pequenos riscos, eu esteja ainda mais atenta.
Vejo duas jovens entrarem no mercado, uma delas com uma prancheta e a outra segurando uma pastinha simples. Conversam algo com Clara, que está no caixa com aparência mais serena do que o habitual. Seu sorriso não é forçado. Isso me faz suspirar fundo.
Olho para o relógio de pulso. 9h58. Deduzo rapidamente: são as entrevistas que agendei para às 10h. O alarme mental toca, me puxando do torpor emocional que ainda lateja. Aperto os olhos por um instante, como se isso fosse organizar o turbilhão, e me levanto.
Ajusto a blusa, endireito os ombros e caminho em direção ao pequeno espaço reservado ao fundo do mercado para as entrevistas. Enquanto caminho, percebo Clara indicar com um gesto educado onde fica o escritório. As candidatas me notam e caminham em minha direção.
Volto a assumir a postura que esperam de mim. A dona, a que resolve, a que coordena tudo — e que não se perde por um apelido dito com doçura.
Pelo menos, é o que eu finjo muito bem.
Ao terminar as entrevistas, fecho o pequeno caderno de anotações que uso nesses momentos. Tento manter o tom imparcial, mas é inevitável quando a diferença de interesse entre as duas salta aos olhos. Uma das candidatas parecia estar ali por necessidade real — prestando atenção a cada palavra minha, como se quisesse absorver tudo. A outra... bom, talvez estivesse em busca de qualquer oportunidade, o que entendo, mas não posso me dar ao luxo de contratar alguém sem sangue nos olhos. Ainda mais agora.
Levanto, aperto a mão das duas com cordialidade e as acompanho até a porta. Ao vê-las saírem, o silêncio volta a tomar conta do escritório. Olho rapidamente para as câmeras e vejo Clara passando o código de um produto para uma senhora de cabelos grisalhos no caixa. Ela sorri, e mesmo que eu não ouça o som, sei exatamente como é a risada dela.
Respiro fundo e tento retomar o foco. Preciso de três operadoras de caixa fixas, e os repositores estão sobrecarregados com a falta de um dos meninos. Além disso, abrir o açougue até o fim do mês virou uma meta inadiável.
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