quinta-feira, 26 de junho de 2025

O acaso a meu favor - Página 22

 Por Verônica...

"Nem sei exatamente o que me deu naquele momento. Estava olhando as câmeras, e vi a Clara... ali, demorando mais do que devia. E pelo jeito, gostando da conversa com aquela mulher. Algo meio impulsivo tomou conta de mim, como se eu precisasse acabar com aquilo.

Não havia urgência. Nenhum problema real. Os cafés que ela organizava estavam em ordem, os preços, checados. Mas mesmo assim... senti uma vontade súbita de tirá-la dali. Um impulso que eu mesma não consegui entender.

Talvez tenha sido só zelo, talvez tenha sido só minha maneira de querer manter o controle de tudo. Mas, no fundo, não foi isso. E eu sei.

Não havia necessidade de ela buscar os preços comigo naquele momento — eu poderia muito bem ter delegado. Mas ainda assim, chamei. Quis que ela viesse até mim.
Talvez só quisesse afastá-la daquela mulher. Talvez eu só quisesse tê-la por perto.

É difícil admitir, mas aquele impulso foi meu. E eu ainda estou tentando entender por quê.


Ao ver que a minha resposta a calou, me bateu aquele leve arrependimento. Mas também, conhecendo a Clara como venho conhecendo, imaginei que ela reagiria com alguma brincadeira, talvez um comentário atravessado com aquele humor debochado dela. E, se eu for honesta comigo mesma… era isso que eu queria. Uma provocação, uma gracinha qualquer. Desde que fosse só pra mim.

Seguimos até o escritório em silêncio. Ela caminhava atrás de mim, e eu tentava manter a postura, o rosto sério — sério demais, talvez. Mas por dentro, eu estava num embaraço infantil. Me sentia ridícula e orgulhosa ao mesmo tempo. Que contradição insuportável essa menina me faz sentir.

Sentei à mesa, evitando encará-la de imediato. Quando finalmente levantei os olhos, lá estava ela: encostada na parede, braços cruzados, o corpo relaxado, mas os olhos… ah, os olhos dela estavam me analisando. Com aquele brilho divertido, quase maldoso, que me tira do sério e, de alguma forma inexplicável, me alegra também.

Ela não disse nada. E o silêncio dela me dizia mais do que qualquer resposta. Não era um silêncio bravo, magoado… Era um silêncio curioso, do tipo “tô tentando entender o que foi isso agora”.

E eu queria explicar. Queria dizer “desculpa, foi só um impulso idiota”, ou então admitir que me incomodou ver ela tão entretida com outra mulher. Mas nada saía. Em vez disso, fiquei ali, com cara de poucos amigos e coração desorganizado.

Foi então que ela deu um passo à frente, arqueando uma sobrancelha com aquele ar sapeca:

— Só pra entender… foi o café mesmo que te incomodou, ou foi o papo bom demais?

Quase revirei os olhos. Mas segurei. Dei um suspiro exagerado, e respondi da forma mais seca que consegui — pra me proteger, claro:

— Não vejo problema em você fazer seu trabalho. Desde que lembre onde ele começa... e termina.

Ela riu. Baixo, de canto. Um riso provocador e suave, do tipo que me desmonta.

— Entendi. Limite geográfico e afetivo, anotado.

Virei a cadeira levemente, para esconder o sorriso que escapava no canto da boca. Essa garota me tira do eixo.

E mesmo com vontade de colocar ela pra fora da sala, também me peguei desejando que ficasse mais um pouquinho.


Ao vê-la sair do escritório, meus olhos automaticamente buscaram pelas câmeras, como quem tenta continuar perto mesmo de longe. Eu me odiava um pouco por isso. Cada canto que ela passava, cada gesto simples como arrumar o uniforme ou prender o cabelo, me prendia a atenção de uma forma que… sinceramente, começava a me assustar.

Talvez eu esteja mesmo levando pra um lado pessoal demais. Nossas conversas na hora do almoço, os sorrisos sutis. Eu sei que não tem nada ali, ou pelo menos, não deveria ter. Ela é apenas uma funcionária. E eu sou a chefe. Deveria bastar essa linha pra colocar freio no que ando sentindo.

Talvez eu precise mesmo começar a me afastar. Diminuir os encontros. Esfriar qualquer sinal de aproximação. Mas o problema é: como faço isso, se justamente esses pequenos momentos com ela são os que me aquecem no meio dessa rotina fria e solitária?

Com os outros funcionários, meu contato é direto, objetivo, quase sempre técnico. E sim — muitos têm medo de mim. A forma como me olham, como evitam conversas além do necessário, como se estivessem sempre esperando uma bronca. No começo me incomodava. Agora, confesso que prefiro assim. É mais fácil manter o controle quando ninguém se aproxima demais.

Mas a Clara... ela atravessou essa barreira sem nem perceber que ela existia. E eu permiti. Talvez até desejei.

Agora, sozinha na sala, me vejo encarando meu reflexo na tela preta do monitor desligado. O rosto sério, os olhos cansados, e o pensamento... totalmente voltado para ela.

Suspirei fundo, passando a mão no cabelo e me forçando a voltar ao trabalho. O problema de lidar com o inesperado, é que às vezes ele tem um sorriso bonito e um jeito de rir que te desmonta inteira.


Não sei ao certo por que agora estou deixando esses pensamentos fluírem… Talvez seja o silêncio do escritório, ou o fato de me permitir pequenas distrações quando penso nela. Respiro fundo, endireito a postura na cadeira, jogo os cabelos para trás como um ato quase automático de retomada de controle, e me concentro no que deveria estar fazendo: revisar os pedidos do mês.

Foco em manter as compras dentro do necessário, nada além do básico. O mês ainda está no começo, e depois das últimas movimentações e desligamentos, prefiro conter gastos. Hoje estamos com a equipe reduzida — um repositor de folga, o caixa também. Restamos apenas eu, Augusto, e… Clara.

É quando vejo um rapaz entrando no mercado. Casaco maior do que o necessário para um clima como o de hoje. Largo a caneta com suavidade sobre a mesa. Meus olhos se estreitam, não por paranoia, mas por precaução. O instinto que me acompanha desde que assumi essa função nunca falha. Mas meu reflexo imediato é outro: Clara.

Procuro por ela nas câmeras. Lá está, concentrada como sempre, arrumando a seção de grãos. Mas logo percebo algo em seu olhar — ela também reparou. Clara não é boba. Ela se ergue com calma, como quem apenas está cumprindo seu trabalho, mas seu corpo diz outra coisa: alerta.

Finge estar analisando um produto, mas seus olhos estão nele. Assim como os meus.

Desvio os olhos da tela e pressiono os lábios. Augusto está no fundo, repondo os freezers. Ele não percebeu nada. Claro que não. Não presta atenção em nada além de si mesmo.

Eu continuo observando, mas sem intervir ainda. Quero ver até onde isso vai. E, talvez, de forma ainda mais forte do que a preocupação com o rapaz, vem o incômodo latente de ver Clara se expor, ainda que com elegância, a algo que eu preferia evitar pra ela.

Sou invadida por aquele sentimento estranho novamente — o de querer protegê-la. Mesmo que isso me atrapalhe. Mesmo que eu não entenda ainda o porquê.

 Próxima página - O acaso a meu favor

quarta-feira, 25 de junho de 2025

O acaso a meu favor - Página 21

O acaso a meu favor - Página 21

 

Por Clara...

 Ao chegar no mercado naquela manhã, fui surpreendida pela notícia das demissões da Ju, do seu Paulo e do Luís. Me deu um aperto no peito, confesso. Fiquei em silêncio por alguns minutos, digerindo a informação com um nó na garganta. Foram colegas que, de certa forma, fizeram meus dias mais leves por aqui. Sempre tão presentes, tão humanos. É impossível não sentir falta. Mas, mesmo com a tristeza, não consegui sentir raiva ou julgamento pelas escolhas da Verônica. Pelo contrário, sei que ela está tentando reestruturar tudo e fazer o mercado caminhar de um jeito mais justo e profissional. Entendo que, por mais que doa, algumas mudanças são necessárias. Ainda assim… vai ser estranho depois que passar a rescisão não ver os rostos deles por aqui. 

E seu Paulo sendo quem é, justo no dia em que ia cobrir a folga de outro colega, resolve faltar. Eu já imaginava que isso poderia acontecer, não vou mentir. Conhecendo o jeitão dele, dava pra ver que essa saída já estava sendo pensada fazia tempo. O mais curioso foi ver o Augusto praticamente surtar — começou a ligar pra ele desesperadamente, como se fosse uma emergência de vida ou morte. Era nítido o pânico estampado no rosto dele, tentando de todas as formas contornar a situação sem quebrar a nova regra da Verônica. — Caso contrário, o gerente presente será o responsável por cobrir a ausência de qualquer funcionário, seja no caixa, seja como repositor. — Quase me escapou uma risada ao ver ele se equilibrando entre o orgulho e o medo de tomar uma chamada. A verdade é que, até pouco tempo atrás, ele mandava e desmandava por aqui… agora tá engolindo seco, tentando seguir as novas ordens.  

Vejo o carro da Verônica passar em frente ao mercado, e, como de costume, imagino que vá estacionar na vaga preferencial dela. Augusto, completamente alheio à movimentação, continua grudado no celular, tentando — sem sucesso — falar com seu Paulo. Quando ela entra pela porta, uma discreta euforia me percorre. É estranho, não sei bem explicar, mas algo nela sempre me tira do eixo.

Retira os óculos escuros que nunca faltam nas manhãs e, ao cruzar o olhar comigo, me lança um sorriso — mais largo que o de costume, mas ainda assim contido.

— Bom dia, Clara. — Sua voz firme e tranquila me alcança, e seus olhos permanecem fixos em mim por poucos segundos, que mais parecem minutos.

Assinto, meio sem jeito, temendo que qualquer palavra soasse fora de lugar. Ela, percebendo meu embaraço, apenas mantém o sorriso e segue com passos seguros em direção ao que suponho ser o escritório. E eu fico ali, com um leve calor nas bochechas, como se tivesse sido pega no flagra de um pensamento bobo.

 

Ao ver o fraco movimento, adentrei mercado adentro entrando no galpão pegar algumas mercadorias para repor a frente de caixa, estava com alguns buracos, então decidir matar o tempo trabalhando.

 

Ao notar o fraco movimento, resolvi entrar no galpão para buscar algumas mercadorias e repor os espaços vazios na frente de caixa. Havia várias prateleiras com buracos, então achei que seria uma boa forma de matar o tempo e me manter ocupada.

Vejo o Augusto indo na mesma direção que eu, e percebo que junto comigo ele começa a pegar algumas mercadorias. 

Então pergunto a ele: - Essas caixas é para repor a sessão de café? - Ele com cara de poucos amigos apenas afirma com a cabeça. Então continuo - Se quiser reponho pra você, já que a sessão fica de frente para o meu caixa.

Ele me analisa e então em um tom duvidoso me pergunta - Oque você quer garota?

Te ajudar, ingrato. - Penso comigo - Já que seu Paulo não veio, como sei que hoje é Quinta-feira, alguém precisa repor a sessão de legumes.

 

Vejo Augusto indo na mesma direção que eu e, claro, começa a pegar mercadorias também. Coincidência ou não, parecia até que estávamos em sintonia — só que não.

 

— Essas caixas aí são pra repor a sessão de café? — pergunto, mesmo sabendo a resposta.

 

Ele só confirma com a cabeça, daquele jeito simpático de sempre, como se sorrir custasse caro.

 

— Se quiser, eu reponho pra você. A sessão é de frente pro meu caixa mesmo, não vai matar ninguém.

 

Ele me encara como se eu tivesse oferecido veneno, não ajuda.

 

— O que você quer, garota? — solta, desconfiado.

 

Te ajudar, ingrato, penso, rolando os olhos por dentro.

Mas tudo bem. Já que seu Paulo resolveu desaparecer justo numa quinta-feira — porque claro, quinta é dia de legumes:

  — alguém precisa fazer o trabalho pesado. E, adivinha? Sobrou pra você.

 

Ele me olha como se não esperasse a resposta. Meio surpreso, meio irritado — o que, no caso dele, é praticamente a mesma expressão. Aí, do jeito dele, solta:

 

— Só vou aceitar porque teu amiguinho hoje resolveu, por vingança, faltar… depois da demissão que levou.

 

Dou uma risada nasal, curta, quase irônica. Não porque achei engraçado — longe disso —, mas porque era mais fácil rir do que entrar nessa conversa.

 

Sem dizer mais nada, pego um carrinho, encaixo as caixas dentro dele com calma e começo a caminhar em direção à sessão, onde, como sempre, ninguém repõe nada.

 

Passei a manhã inteira repondo e limpando as prateleiras. Sem pressa, confesso. O movimento estava fraco e, pelo mês em que estamos, já era esperado — Caldas Novas praticamente esvazia fora de temporada.

 

“Caldas Novas…” — penso comigo — “Cheguei aqui e essa cidade me abraçou de um jeito estranho. Intenso. Não foi de uma vez, claro. Tiveram dias ruins, empresas péssimas, gente pior ainda… Mas a cidade em si? Um lugar cheio de oportunidades. Aqui, trabalho não falta. E tem mais — a cultura, as músicas de rua, os festivais espalhados pela cidade, e claro, as famosas águas termais.”

 

Na época, quando ouvi que era a única cidade do Brasil com águas quentes naturais, não dei muita bola. Achei que era só mais uma daquelas frases de panfleto turístico. Mas depois, com o tempo, entendi: essa cidade vive em cima dessas águas. Respira turismo, gira em torno disso. E mesmo eu, que nunca fui de mergulhar em nada, acabei ficando.

Sentada num banquinho meio torto, quase encaixada entre a gôndola e a prateleira de baixo, eu ia colocando os pacotes de café no lugar, quando escuto uma voz feminina me chamar logo atrás:

— Moça, você trabalha aqui?

Já vinha aquele impulso automático de revirar os olhos com esse tipo de pergunta — afinal, uniforme, crachá e tudo mais… Mas antes de qualquer reação, virei o rosto e... uau.

Uma mulher linda. Daquelas que fazem a gente até esquecer o que ia dizer. Cabelos castanhos claros, lisos e brilhosos, caindo com naturalidade até abaixo dos ombros. Trajava um vestido simples, mas elegante, e tinha um daqueles sorrisos que desarmam qualquer um.

Me levantei quase tropeçando no próprio pé, ajeitei a camiseta e respondi com um sorriso meio sem graça:

— Sim, sim, trabalho aqui. Você precisa de ajuda?

Naquele momento, não sabia se era o perfume dela ou o efeito colateral da cafeína dos pacotes que eu estava repondo… mas meu coração bateu meio torto.

— Na verdade, sim. — ela sorriu com doçura. — Estou procurando um café mais suave. Meu estômago não aguenta esses muito fortes. Você teria alguma sugestão?

Tentei disfarçar o nervosismo e a vontade de perguntar se ela queria o café ou meu número.

— Ah, claro, tem esse aqui — apontei para uma embalagem azul clara — ele é mais fraco, com torra média e sabor bem suave. A maioria dos clientes que gostam de algo mais leve costuma preferir ele.

Ela pegou o pacote, leu com atenção e comentou:

— Obrigada! Você tem um jeitinho calmo, é bom ser atendida assim. A maioria das pessoas só quer se livrar logo da gente.

Sorri meio boba. Até cogitei responder alguma gracinha, mas antes que minha coragem chegasse, ouvi o salto conhecido ecoando no piso encerado do mercado. Não demorou muito para Verônica surgir no corredor, como quem não queria nada — só que queria tudo.

— Clara — chamou meu nome com uma pontada de doçura forçada — você pode me ajudar com uma conferência de preços? Preciso disso pra agora.

Virei meio sem jeito, tentando disfarçar a decepção pelo corte abrupto na conversa. A moça bonita deu um sorrisinho educado para a Verônica, mas foi correspondida com um aceno quase imperceptível e nada simpático.

— Ah... claro, só um minuto. — respondi para a Verônica, e me virei para a cliente. — Qualquer coisa, pode me procurar, viu? Fico feliz em ajudar.

Ela agradeceu com o mesmo sorriso bonito e foi embora, enquanto eu seguia Verônica, que agora andava à frente com um silêncio ensaiado, quase barulhento.

— Algum problema com café? — perguntei, tentando quebrar o gelo.

— Nenhum — ela respondeu seca. — Só achei que você já tinha terminado essa reposição há tempos.

Era mentira. Ela sabia que ainda estava na metade. Mas a verdade é que ela não veio pelo café, e sim por algo que nem eu acreditava que nem ela ainda sabia explicar.

Segui Verônica pelos corredores em direção ao fundo, ainda sentindo o leve calor no rosto pela interrupção repentina. O salto dela ecoava com firmeza, e eu tentava acompanhar seu ritmo, mesmo sentindo o ar meio pesado entre nós.

Antes de chegarmos à porta do estoque, resolvi quebrar o silêncio.

— Só uma coisa... o caixa ficou sozinho, como a Ju hoje tá de folga... Talvez seja bom dar uma olhada nas câmeras, só por precaução. — falei com a voz controlada, tentando parecer neutra, embora soubesse exatamente o que eu estava tentando evitar.

Ela parou de andar, virando o rosto levemente para mim, o suficiente para lançar aquele olhar que dizia mais do que qualquer frase.

— A sua preocupação é com o caixa... — ela começou com calma, mas com um tom que já entregava o veneno vindo. — ...ou está mais preocupada em voltar correndo pra dar atenção à moça do café?

Travei. Por um instante fiquei sem saber se ria, se respondia, ou se fingia que não entendi a provocação. Mas ela entendeu meu silêncio antes mesmo de eu abrir a boca.

— Relaxa, Clara. Eu olho as câmeras. Vai que ela resolve procurar outra sugestão de café e se perde nos corredores — disse com um sorrisinho enviesado nos lábios, já virando de novo para seguir caminho.

Fiquei parada por um segundo, absorvendo a indireta mais direta que já tinha recebido dela. Suspirei e a segui em silêncio.

Talvez o mercado tivesse câmeras em todos os cantos, mas era impossível não notar quando alguém estava vigiando a gente bem de perto. E no caso da Verônica... a lente era mais pessoal do que profissional.

 Próxima página - O acaso a meu favor

Página 22

O acaso a meu favor - Página 20

 O acaso a meu favor - Página 20


Por Verônica...

Os convites para almoçar, partindo de mim, tornaram-se frequentes. Não por hábito social — disso eu sempre mantive distância —, mas porque, curiosamente, havia algo de confortável naquele intervalo ao lado de Clara. Entre um comentário espirituoso e outro, ela conseguia, nos dias em que não estava tão elétrica, arrancar de mim pequenas risadas, ou pelo menos um certo alívio. Por instantes, me distraía do desgaste constante que é tentar reerguer um mercado que todos já davam por morto. Era como se, naquele espaço de tempo medido, o peso das responsabilidades deslizasse para fora dos ombros, ainda que por pouco.

 

Hoje, Clara está de folga. E, embora eu raramente me permita admitir esse tipo de coisa, o mercado parece mais silencioso — não no sentido físico, mas como se faltasse uma frequência habitual no ar. Uma ausência quase irritante.

 

Cheguei cedo, mas já com a paciência por um fio. Há dias em que minha tolerância se esgota antes mesmo do café esfriar. Chamei os três colaboradores que, desde o início, demonstram maior resistência à nova gestão. Não houve discursos. Quando se sentaram diante de mim, fui clara, objetiva — como deve ser: informei o desligamento imediato. Sem rodeios, sem explicações longas. Quem não acompanha o ritmo, atrasa a marcha. E eu não vim até aqui para tolerar freios.

 

Hoje, além dos dois repositores, uma operadora de caixa também foi dispensada. Não por impulso — nunca é. Mas por acúmulo.

 

Desde o início, ela demonstrava pouco apreço pelo ofício. Os deslizes se repetiam: desatenção constante, o celular como extensão das mãos, até mesmo durante o atendimento. Quando o movimento do mercado caía — e, inevitavelmente, isso acontece — eu a observava permanecer imóvel, como se uma vassoura não fosse parte do seu posto, como se manter o espaço limpo fosse uma gentileza opcional.

 

Sua aparência, quase sempre desleixada, transmitia mais desleixo do que cansaço. E havia algo de provocativo no hábito de lixar as unhas atrás do caixa, como se estivesse no sofá de casa, e não em horário comercial sob minha supervisão.

 

Dei uma advertência verbal. Chamei para uma segunda conversa, tentando, ainda, buscar algum traço de compromisso. Na terceira ocorrência, não tolerei mais. Quem não soma, não multiplica — e este mercado não é abrigo para hábitos que atrasam o todo.

 

Além disso, sei que muitos — moças e rapazes — dariam tudo por uma vaga estável nesta cidade. Lamentavelmente, alguns confundem estabilidade com impunidade. E esse tipo de erro custa caro.

 

Ainda assim... apesar das decisões corretas, há algo estranho neste dia. Um incômodo sutil.

 Talvez seja só o eco da ausência de Clara — ou o silêncio que ela costumava, inadvertidamente, preencher.

 

Voltando a atenção aos ex funcionários a minha frente, vejo a expressão de surpresa e indignação tomar conta do rosto de um deles, que agora vem me confrontar por causa da minha decisão.

— Servi esse mercado por anos… — ele esbraveja. — Na época do seu pai, ajudei quando isso aqui não passava de um mercadinho de esquina barato. E é assim que você me agradece?

 

Meu olhar, já frio, se tornou ainda mais gélido. Tenho gratidão pelo tempo em que serviu ao meu pai com profissionalismo, sim. Mas não perdoo o modo como, mais tarde, aproveitou-se da gestão frouxa do meu irmão para disfarçar caprichos e deslizes como se fossem meros contratempos.

 

— Não acredito que está fazendo isso comigo, Verônica.

Inclinei levemente a cabeça, analisando cada palavra com a calma de quem não se deixa arrastar por sentimentalismos. Ele engoliu seco, mas continuou.

— Seu pai ele me considerava parte desse  mercado.  — Continua  — Fiz o que foi preciso, sacrifiquei fins de semana, abri mão de férias.

 

E de maneira cortante disse calculadamente.

 

— E em troca você se sentiu autorizado a contornar regras, manipular inventários e justificar gastos que não eram da empresa — rebati, cortante. — Isso não é lealdade. É conveniência.

Houve um momento em que ele pareceu diminuir de tamanho diante de mim. A arrogância se dissipava como o resto de dignidade no fundo de um copo quebrado. Meu silêncio final pesava mais do que qualquer grito.

 

— Cheguei aqui com o intuito de corrigir cada erro cometido pela minha família — disse, sem levantar a voz, olhando ainda pela janela.

 

Houve um instante de silêncio. Eu sabia que ele me ouvia, mesmo sem resposta.

 

— Mas você, junto de alguns colegas, se opôs a cada mudança que visava restaurar a integridade dessa empresa. Preferiram manter os erros como meio — continuou —, de disfarçadamente porem a culpa na desculpa de estarem apenas "fazendo o que sempre funcionou".

 

Virei-me lentamente, encontrando seu olhar.

 

— A verdade é que vocês estavam confortáveis demais com a desordem.

 

Ele não respondeu. Apenas baixou os olhos, como se, pela primeira vez, sentisse o peso da própria consciência. Mas arrependimento tardio não pesava na minha balança.

 

— Não vim aqui para agradar. Vim para corrigir.

Não dei margem para que a situação se prolongasse. Os dispensei com a mesma frieza com que uma lâmina corta um laço já desgastado — informei que havia trabalho a ser feito. E havia mesmo.

 

Retornei à minha mesa, organizei os papéis, respirei fundo. Era hora de fazer os anúncios das vagas que agora estavam abertas. Este mercado precisava de sangue novo — uma geração disposta a transformar o "novo" em oportunidade, em crescimento real. Pessoas que não vissem o cargo como um favor, mas como um campo fértil para despertar talentos adormecidos, para se aprimorarem através do desafio, e não da zona de conforto.

 

O passado, por mais que doa ou incomode, já tinha sido arquivado. Agora, eu construía o futuro — com alicerces firmes e gente capaz de sustentá-lo.

 

Pretendo oferecer bons benefícios àqueles que permanecerem e abraçarem as novas diretrizes, assim como aos novos integrantes que farão parte desta equipe a partir de agora. Quero deixar para trás o passado de uma empresa limitada, estagnada, e transformá-la em uma organização inovadora — onde o talento se destaca, independentemente do cargo.

 

Mesmo sendo apenas um mercado, meu objetivo é claro: expandir a rede o mais rápido possível. E para isso, precisarei de pessoas comprometidas, de futuros gerentes, de líderes em potencial. Quem estiver disposto a crescer junto, terá espaço e reconhecimento.

Próxima página - O acaso a meu favor

Página 21

O acaso a meu favor - Página 74

  Continuação — O beijo… por Verônica O “quase” entre nossas bocas dura longos segundos — segundos que esticam o mundo, que dilatam o ar ao...