O acaso a meu favor - Página 18
Por Verônica...
Ao sair daquele mercado, meus passos firmes ecoaram pela calçada — frios
como meu pensamento constante. Fui direto para casa. Meu irmão e a noiva
acharam prudente tirar alguns dias para descansar, e eu garanti, sem hesitação,
que poderiam me deixar sozinha. Eu lidaria com tudo.
Mesmo distante, não me permito deixar a empresa em San Diego fora do meu
controle. Ana, minha assistente de confiança, me atualiza diariamente.
Crescimentos, quedas, projeções... tudo chega até mim com precisão cirúrgica. É
assim que eu opero. Nada escapa ao meu domínio.
Ao chegar em casa, meu trabalho agora se concentra no antigo escritório
do meu pai. Um cômodo pesado, impregnado de memórias que não me dizem respeito
— o passado dele não interfere no que vim fazer aqui.
Analiso alguns relatórios sobre funcionários que, mesmo após todas as
mudanças que implementei, continuam resistindo às novas diretrizes da gestão.
Alguns, claramente, não têm capacidade de adaptação. Outros, talvez, apenas se
sentem ameaçados por uma liderança que não lhes dá espaço para mediocridade.
É impressionante como o ser humano é difícil de agradar. Reduzi a carga
horária, redistribuí funções com clareza, dei responsabilidades individuais
justamente para evitar a sobrecarga coletiva — uma estrutura pensada para
eficiência. Ainda assim, há quem prefira o caos à ordem, a confusão à
disciplina. Estão agindo como peças soltas... e peças soltas ou se ajustam, ou
são descartadas.
Faço anotações mentais enquanto leio os relatórios. Alguns nomes já me
são recorrentes. Vejo padrões — atrasos disfarçados de imprevistos, falhas
operacionais mascaradas por desculpas emocionais. O sentimentalismo é uma praga
silenciosa nos negócios. Meu pai foi vítima disso por tempo demais. Foi assim
que essa empresa quase afundou: confundindo gentileza com gestão.
Fecho a pasta com um estalo seco. Amanhã, três dessas pessoas serão
chamadas para conversar. E se não apresentarem algo sólido, sairão pela mesma
porta por onde entraram. Aqui não há espaço para quem sobrevive apenas por
pena.
Levanto-me e caminho pelo escritório. A janela antiga ainda range ao
abrir. Lá fora, a noite está densa, silenciosa, como se soubesse que algo está
para mudar. E está. Eu não atravessei fronteiras, não abandonei minha vida confortável
em San Diego para brincar de empresária de província. Vim para reconstruir — e,
se necessário, demolir tudo antes.
Meu irmão não sabe o peso das decisões que estou tomando em nome da
família. Ele confia em mim, cego pela familiaridade. Mas eu não me guio por
sangue, me guio por resultado. E o que precisa ser feito… será feito. Com
precisão. Sem remorso.
Por algum motivo estranho, penso em Clara. Sempre tão contida, tão
correta... até aquele episódio patético — e, por alguma razão, quase cômico — na
sessão de sucrilhos do mercado. Tudo aconteceu rápido demais: lembro de uma
caixa fora do lugar, meu salto deslizando no papelão amassado, e o súbito
desequilíbrio. Tentei me firmar, mas acabei puxando Clara junto, e as duas
fomos ao chão, entre pacotes de cereais e aquele cheiro artificial de milho
adocicado. A imagem ainda vem em flashes desorganizados — o estalo do salto,
seu olhar surpreso, nossos corpos batendo no chão com um impacto seco, e o
silêncio ridículo que pairou antes de uma gargalhada contida escapar dela... e,
contra toda lógica, quase de mim também.
Foi vergonhoso, claro. Mas houve algo ali — talvez a quebra do meu
controle habitual, talvez o toque involuntário de sua mão no meu braço — que
não me incomoda lembrar. Pelo contrário. Há uma estranha leveza nesse momento,
como se o mundo, por alguns segundos, tivesse saído do eixo de forma gentil.
Ainda não entendo por que essa memória insiste em me visitar. Mas quando ela
vem, não a expulso. Apenas deixo que fique… por um instante breve, antes de
voltar ao que importa.
A pequena discussão com Augusto não passará em branco. Ele acredita que
seu tom altivo e sua postura de “insubstituível” o blindam. Ledo engano. Estou
observando sua forma de administrar há tempo suficiente para conhecer cada
falha que ele tenta mascarar com segurança artificial. Seu jeito pretensioso de
se portar — como se o setor dependesse exclusivamente de sua presença — me
causa náuseas. Ele se esquece de que a lealdade que o sustentava vinha do meu
pai, não de mim.
Infelizmente, ainda não posso demiti-lo. É o gerente, e por enquanto
seria imprudente abrir uma brecha administrativa neste momento de transição.
Mas sua permanência é temporária. Uma peça instável pode ser útil em certas
jogadas, mas nunca se mantém no tabuleiro por muito tempo. Estou apenas
aguardando o movimento certo — e quando vier, Augusto cairá com a mesma frieza
que ele subestima em mim.
Ele acredita que tenho outras prioridades, que estou distraída com
números e reformas. Ele não percebe que observo — em silêncio, sim, mas não com
passividade. Há um tipo de controle mais poderoso do que o grito: aquele que se
impõe sem precisar ser anunciado.
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